OS VIVOS, OS MORTOS E OS OUTROS


Folha da Manhã, 31 de março de 2020
Os vivos, os mortos e os outros
Edgar Vianna de Andrade
            Até pouco tempo atrás, eu considerava o filme “A noite dos mortos vivos”, de George Romero (1968) como o marco divisor de dois paradigmas de zumbis: o zumbi sobrenatural e o zumbi resultante de contágio. A data marcava a passagem do zumbi sobrenatural, portanto personagem de terror, para o zumbi natural, personagem de ficção científica. Considero agora, provisoriamente, o ano de 1954, quando o escritor e roteirista estadunidense Richard Matheson (20/02/1926 – 23/06/2013) lançou o livro “Eu sou a lenda”. Ele também escreveu vários contos que ganharam as telas, como “O incrível homem que encolheu”, “Peitos gelados” e “Encurralado”, um dos primeiros filmes de Spielberg.
            Tenho um exemplar de “Eu sou a lenda”, mas nunca o li. Ele gerou três filmes: “Mortos que matam” (“The last mano an Earth” – 1964), de Ubaldo Ragona e Sidney Salkow, tendo Vincent Price no papel principal; “A última esperança da Terra” (The omega man” – 1971), de Boris Sagal, com Charlton Heston no papel principal; e “Eu sou a lenda (A am legend – 2007), com Will Smith e com a brasileira Alice Braga.
            Os pontos de apoio do livro e dos filmes são os seguintes: uma epidemia de âmbito mundial com origem desconhecida ou causada por uma guerra biológica; a morte de quase toda a humanidade; um cientista sobrevivente por sua imunidade; alguns vivos ainda não contaminados; uma legião de zumbis ou vampiros que deambulam pelo mundo, contaminando os últimos sobreviventes; e a esperança de uma vacina produzida pelo cientista a partir de seu sangue.
            Em “Mortos que matam”, Dr. Robert Morgan é o sobrevivente imune por conta de uma mordida de morcego no Panamá, segundo suposição sua. Ele caminha pelas ruas desertas de uma grande cidade (pode ser qualquer uma) em busca de alimento e combustível. As saídas só podem ser durante o dia, pois os zumbis não suportam a luz do sol ou uma intensa luz artificial. Essa característica está presente em todos os filmes. Os zumbis não perderam totalmente a consciência. Eles falam o nome do cientista e tentam invadir sua casa. De vez em quando, Morgan vai a uma igreja visitar o caixão em que repousa sua mulher morta. Ela e sua filha foram contaminadas. Aparece uma mulher estranha. Ela não é imune nem zumbi. Sua missão é contatar Morgan e abrir caminho para que seus companheiros o matem, o que parece estranho, pois querem matar a vacina ambulante. Mas ele acaba morrendo pelas mãos dos zumbis.
            Em “A última esperança da Terra”, o médico Robert Neville sobrevive a uma guerra química entre União Soviética e China, algo bizarro no auge da Guerra Fria entre Estados Unidos e URSS. Um agente contaminante dizima a humanidade, restando o médico imune, um grupo de sobreviventes contaminados e uns poucos vivos sem imunidade. Neville vaga pelas ruas completamente desertas durante o dia, pois, durante a noite, o grupo de vivos infectados sai do seu esconderijo na caça a Neville. Este vive num apartamento alto de um edifício e atira nos contaminados para matar.
            Se o primeiro filme é o mais sombrio dos três por levar o espectador a presumir o fim da humanidade, este segundo seria o mais apropriado para os dias atuais porque os contaminados tornam-se albinos e formam uma seita autodenominada de “família”. Eles não creem na ciência e na tecnologia, defendendo um retorno ao obscurantismo. Não há muita diferença entre o discurso deles e o do grupo mais conservador que apoia Bolsonaro.
            Como no livro, aparece uma mulher não-contaminada, mas sem imunidade à procura de Neville como salvador dos sobreviventes ainda sãos. Ele carece de amor e sexo. Ela não tanto. Mas rola nudez e intimidade entre os dois. Neville é, enfim, morto pela “família”, mas deixa o seu sangue para salvar os sobreviventes da contaminação.
            “Eu sou a lenda” é bastante conhecido. Neville (Smith) sobrevive a uma pandemia por sua imunidade. Ele perde a mulher a filha pequena. Embora mate os zumbis humanos e caninos, seu objetivo é fabricar uma vacina a partir do seu sangue para curar os mortos-vivos. Esses são altamente ferozes numa cidade em que as florestas e animais selvagens voltaram a dominar. Aparece uma mulher e seu filho não contaminados, mas não imunes. Neville morre nos dentes dos zumbis, mas a mulher e seu filho fogem em direção aos humanos não contaminados com o material para a vacina.
            Os dois primeiros filmes não estão disponíveis nas plataformas, mas “Eu sou a lenda” está. Na verdade, Richard Matheson mudou o paradigma dos zumbis, talvez motivado pela Segunda Guerra Mundial. Esse paradigma impregna os filmes de zumbis da atualidade.

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