DIQUES, COMPORTAS E BARRAGENS


Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 15 de março de 2020
Diques, comportas e barragens
Arthur Soffiati
           Por mim, os rios sempre deveriam correr livres, sem barragens e sem diques. Acredito que a vegetação marginal controlaria a pulsação entre cheia e estiagem. As áreas de expansão nas cheias não seriam ocupadas pelos humanos e não haveria danos a lavouras, criações e construções. Os castores nos precederam na construção de diques. Com seus poderosos dentes, eles cortam árvores e as empilham em leitos de rios, formando represas. Deveríamos considerar os castores como os pioneiros na prática das barragens, mas os ecólogos explicam que as represas construídas por eles enriquecem o ambiente, conservando umidade e aumentando a biodiversidade. 

Projeto de Saturnino de Brito para São Paulo. Não executado
            Por mais que eu ame os rios livres, tenho plena consciência de que não podemos mais dispensar os diques, as barragens e outras estruturas hidráulicas. Não podemos acusar o ocidente de ter iniciado o processo de domesticação dos rios. Há 3.200 anos a.C., a primeira civilização da história, no sul da Mesopotâmia, só floresceu por desenvolver meios de domesticar as águas dos rios Tigre e Eufrates. Numa zona pantanosa, foi necessário drenar, construir diques para conter as cheias que atingiam as cidades, instalar comportas para regular a distribuição hídrica e outros artifícios mais. 

Dique de pedra na margem direita do rio Paraíba do Sul
            A civilização egípcia desenvolveu aprimoradas tecnologias de distribuição de água do rio Nilo por meio de canais de irrigação e de comportas para conquistar as áridas areias do deserto e torná-las férteis. Os camponeses criaram sistemas de distribuição de húmus do Nilo. O mesmo pode ser dito em relação às civilizações índica, chinesa e sua satélite no Sudeste Asiático. Os romanos construíram aquedutos magníficos. Até mesmo a sociedade neolítica avançada que se desenvolveu na ilha de Marajó antes da chegada dos europeus, criou lagoas para retenção de águas depois das cheias. Nelas, o povo praticava a piscicultura e a irrigação. 

Inundação da restinga por rompimento do dique São João, na margem direita do Paraíba do Sul, em São João da Barra
          Nenhuma civilização, contudo, ofendeu mais os rios que a ocidental. Recente relatório da ONU concluiu que fizemos interferências danosas em 2/3 dos rios do mundo. A proposta da ONU é revitalizar os rios da melhor forma possível. Os europeus trouxeram para o Brasil a concepção de domar os rios. Gilberto Freyre denunciou nosso descaso com os rios em 1937. O engenheiro campista Saturnino de Brito é um expoente da intervenção nas áreas úmidas, mas ele já vislumbrava formas menos impactantes de lidar com os rios. Seu projeto para São Paulo era muito avançado para a década de 1920, contemplando áreas marginais desimpedidas para reduzir o impacto das cheias. Ele tinha ideias inteligentes para reservar água na caatinga já no final do século XIX, assim como para o norte fluminense. Seu último escrito, em 1929, aborda a questão das enchentes no Rio de Janeiro, propondo soluções avançadas.
Alagamento da margem esquerda do Paraíba do Sul em Campo Novo
            Seguimos o caminho mais fácil, mais barato (na aplicação dos recursos, não no desvio deles) e menos inteligente para a construção de diques. Em companhia de colegas e amigos, vistoriei os pontos de rompimento de diques e de alagamentos pelas enchentes do verão de 2020. Primeiramente, observamos a obsolescência dos diques no fim dos rios Muriaé e Paraíba do Sul. De todos, o melhor é o que se estende na margem direita do Paraíba do Sul entre Itereré e imediações da cidade de Campos. A construção dele começou no século XIX. O material usado foi a pedra, e o distanciamento do leito médio do rio deixa uma vasta área para expansão das águas. Ele já passou por revisões e reformas, porém em pequena escala, permanecendo sólido. 

Meandro do rio Muriaé, dique retilíneo de Boianga, BR-356, localidade de Três Vendas e inundação
            O da margem direita dentro da cidade de Campos parece demonstrar fadiga. A defesa civil reza para que o rio não se aproxime da cota de transbordo. Entre Campos e São João da Barra, o dique de terra já se rompeu várias vezes. No verão de 2020, o dique São João, em Cajueiro, foi rompido pela força do rio e alagou imensa área. Na margem esquerda do baixo Paraíba do Sul, o dique-estrada formado pela RJ-194 está em petição de miséria. Ele já se rompeu algumas vezes. Neste ano, uma avaria quase criou uma brecha para a invasão das águas. Em Campo Novo, em direção a Gargaú, não há dique suficiente para deter o avanço das águas, que tomaram vastas extensões de terra e deixaram moradores ilhados. No rio Muriaé, por fim, o dique de Boianga se rompeu pela terceira vez, que eu me lembre, e ameaçou novamente a localidade de Três Vendas. As obras do DNIT na BR-356 ignoram a realidade socioambiental. 

Braço principal do Paraíba do Sul barrado por força do mar 

Braço principal do Paraíba do Sul aberto por força do rio
            Quando as enchentes se vão, os órgãos responsáveis (cujas competências não são muito claras) apenas refazem os danos e tudo volta a ser como antes. Será que basta? Não caberia repensar os diques e as estradas em vez de tapar o buraco? De todos os rompimentos, o único aplaudido foi o do que se formou por conta da natureza no braço de Atafona do rio Paraíba do Sul. A natureza continua sendo melhor do que nós. Vivemos novos tempos, mas a ficha ainda não caiu para o povo e principalmente para os governantes. O novo normal climático exige soluções adequadas e inteligentes. Já não basta apenas socorrer os atingidos e depois esquecer tudo o que aconteceu. Não basta enfrentar os novos eventos climáticos com formas antigas. Mas, tudo indica que continuaremos a proceder de modo conservador diante dos novos fenômenos.   









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