MEU PÉ, MEU POBRE PÉ


Meu pé, meu pobre pé
Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provocações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer… dormir: não mais.
Dizer que rematamos com um sono a angústia
E as mil pelejas naturais-herança do homem:
Morrer para dormir… é uma consumação
Que bem merece e desejamos com fervor.
Dormir… Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois quando livres do tumulto da existência,
No repouso da morte o sonho que tenhamos
Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita
Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.
Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,
O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,
Toda a lancinação do mal-prezado amor,
A insolência oficial, as dilações da lei,
Os doestos que dos nulos têm de suportar
O mérito paciente, quem o sofreria,
Quando alcançasse a mais perfeita quitação
Com a ponta de um punhal? Quem levaria fardos,
Gemendo e suando sob a vida fatigante,
Se o receio de alguma coisa após a morte,
–Essa região desconhecida cujas raias
Jamais viajante algum atravessou de volta –
Não nos pusesse a voar para outros, não sabidos?
O pensamento assim nos acovarda, e assim
É que se cobre a tez normal da decisão
Com o tom pálido e enfermo da melancolia;
E desde que nos prendam tais cogitações,
Empresas de alto escopo e que bem alto planam
Desviam-se de rumo e cessam até mesmo
De se chamar ação.
Monólogo de Hamlet, Shakespeare

Sou diabético. Tive de amputar o pé esquerdo. O médico me disse que eu tomasse cuidado com os pés quando me diagnosticou com diabetes. Fiquei apavorado. Passei a tomar todas as precauções. Comprei sapatos confortáveis e resistentes para evitar que uma topada causasse algum ferimento. Deixei de cortar as unhas dos pés. Passei a frequentar um podólogo, que me tratava com excessiva atenção. Evitei todos os ferimentos. Mas meus esforços de nada valeram.
Não fumo, nunca fumei. O cigarro concorre muito para agravar o estado do diabético. Apesar de tudo, parece que a circulação periférica foi reduzida e lesionou os nervos, afetou a anatomia dos ossos dos meus pés, sobretudo o do esquerdo, lado em que eu já havia sofrido fratura da fíbula. Será que ela contribuiu? O médico não se arriscou a confirmar. Apenas diagnosticou uma neuropatia diabética. Várias pequenas isquemias. Eu já sofri isquemia cerebral. Terei propensão à isquemia? Agora é tarde. Perdi meu pé esquerdo.  Meu pobre pé. Gangrenado e amputado. Não o perdi aos poucos, com a amputação de dedos. Cortei tudo na altura da parte inferior da perna.
Manchas vermelhas, pontos doloridos, facilidade para formação de bolhas e calosidades, joanetes. Não tenho pé chato. Posso muito bem constatar isso. Mas eu estava notando baixa pulsação nos pés. Sem a irrigação de sangue necessário, eles ficavam frios, a pele fina, arroxeada, seca, brilhosa. Corri ao médico várias vezes. Nunca me descuidei, mas perdi o pé esquerdo. Meu pobre pé. Agora, temo pelo pé direito.
Tudo começou com uma pequena úlcera na sola do pé. Procurei o médico. Ele tentou antibióticos para combater bactérias. Depois que ele me alertou para o risco do pé diabético, passei a usar sapatos fechados. Sabemos que os pés transpiram. Em meio fechado, a transpiração facilita a proliferação de bactérias. Elas agravaram a úlcera. Não desconfio do meu médico. Acho que ele fez o possível para evitar a amputação, mas não foi possível.
Sei que é ilegal manter um membro amputado em casa. Ele deve ser incinerado ou sepultado em caixões especiais. O destino de um membro amputado é semelhante ao destino de uma pessoa morta. Tudo bem. Acho acertado. Mas antes que meu pé fosse para o cemitério, dei um jeitinho bem brasileiro para me despedir dele.
Meu pé, meu pobre pé, hoje separado de mim... Agora, ele está nas minhas mãos. Estranho minhas mãos segurando meu pé fora de mim. O pé vem a ser um grande engenho da natureza. Ele já está presente, de maneira latente, em varias espécies de peixe. Estudei esse assunto como pude, embora não seja especialista. Sou fascinado pelas extremidades humanas por entender que elas contrariam a simetria bilateral externa do nosso corpo. Se traçarmos uma linha passando pelo nariz, pelo externo e pelo púbis, pela vulva notaremos que o corpo tem duas partes iguais: dois olhos, duas orelhas, duas glândulas mamárias em homens e mulheres, dois braços, duas mãos, duas pernas, dois pés, dois testículos, dois lábios da vulva. Por dentro, também há alguma simetria bilateral: dois pulmões, dois rins... A linha central divide o único nariz em duas narinas e a boca em dois lados iguais. Sei que há ligeiras diferenças entre um lado e outro, mas elas são praticamente imperceptíveis aos olhos.
Agora, examinemos a mão. Ela tem cinco dedos diferentes entre si. Para acompanhar a simetria, o dedo médio devia separar dois dedos de mesmo tamanho à direita e à esquerda. O mesmo com o pé. O que se considera um pé harmônico tem dedos que decrescem como uma escadinha ou como uma flauta de Pã. Da minha parte, vejo mão e pé como ferramentas altamente sofisticadas e, ao mesmo tempo, reminiscências primitivas da natureza. Eles se aproximam mais da estrela-do-mar, com sua simetria radial, do que dos mamíferos. Delírio meu.
As extremidades animais sempre me fascinaram. Elas não existem nos peixes. Talvez exista um projeto delas nos peixes. Dizem que o primeiro peixe a sair da água (que nome os cientistas lhe deram? Creio que foi Tiktaalik. Não tenho certeza. Não tenho como fazer essa consulta agora no Google) já tinha extremidades articuladas, com protótipo de pulsos e de dedos. Ele passeava na terra para obter alimento e voltava pra água. Genial invenção e também muito perigosa. Segundo os paleontólogos, os primeiros anfíbios tinham oito, sete dedos nas extremidades. Depois, esse número fixou-se em cinco. Por quê? Não sei. Um deles diz, com gracejo, que foi para tocar piano e usar teclado de máquina de escrever e computador.
As primeiras cobras tinham patas articuladas. Elas foram abandonadas. Algumas embutiram as patas e passarem a se arrastar ou a movimentá-las por dentro do corpo, como se as patas estivessem calçadas com luvas e sapatos. As aves transformaram as mãos em asas. Algumas, como a cigana, ainda guardam vestígios de mãos nas extremidades das asas. Alguns mamíferos aquáticos abandonaram parcial ou totalmente as extremidades. As focas transformaram os pés em nadadeiras, e as mãos têm os dedos ligados por membranas. Também as lontras. Mas as baleias e os golfinhos transformaram tudo em nadadeiras. Os morcegos fizeram como as aves: as mãos sustentam asas. Tudo isso é muito estranho.
Muito estranho também é eu estar sentindo coceira na sola do pé amputado. Estou coçando agora o local, mas não está adiantando. O pé não está mais no meu corpo. À noite, também sinto pulsações nas pontas dos dedos e nos calcanhares. Parece que o coração bate nestes pontos. Seriam neurônios? Neurocientistas dizem que o cérebro continua a reconhecer o membro amputado por algum tempo. Meu lado esquerdo sempre foi problemático. Caí de uma altura considerável e quebrei a fíbula esquerda (antigamente, era perônio. Foi preciso quebrar esse osso para aprender seu novo nome) bem perto do pé. Depois, tive um AVC isquêmico que me afetou o lado esquerdo. Ele me deixou sequelas da boca ao pé. Recuperei-me e estava disfarçando bem minhas dificuldades quando tive de amputar o pé. Também do lado esquerdo. Hoje, nem mesmo uma prótese vai disfarçar a ausência do pé.
Foi uma perda muito grande para mim. Há quem se conforme com a perda de um membro, como aquele jogador da Chapecoense. Ele agradece a Deus por ter levado só a sua perna. Não posso agradecer por ter conservado meu corpo sem o pé esquerdo. As extremidades humanas são, para mim, uma obra colossal que custou milhões de anos para ser construída. Não houve pressa da natureza para construí-la. Se houvesse, elas se pareceriam com os nossos prédios, que caem com facilidade. Não assim com mãos e pés, com todo o corpo humano. Houve muitos testes, muitos ajustes, muita paciência para se chegar a essa perfeição. Mas também há defeitos. Por causa do meu pâncreas defeituoso, perdi o pé esquerdo com todos aqueles ossinhos miraculosos.
Um tio me ensinou seus nomes. Tarso, metatarso e dedo. Depois, falange, falanginha e falangeta. Hoje, a arquitetura do pé é bem mais complexa. Na verdade, sempre foi. A gente é que aprendia de forma simplificada na escola. Agora, o nome certo é falange distal em lugar de dedos. São cinco falanges distais com tuberosidades, bases e cabeça, falanges médias também com cabeça e base, falanges proximais com corpo, base e cabeça. Cada osso parece um corpo humano. Tem cabeça, corpo de base. Existe o osso sesamoide medial e lateral  com o metatarso atrás, também ele com cabeça, corpo e base, o cuneiforme médio, intermédio e lateral, o osso navicular, o tarso, cuboide, o tálus e o calcâneo. Já estamos perto da perna, da tíbia e fíbula, osso que quebrei e que ficou em mim depois da amputação.
Meu pé, meu pobre pé será arrancado das minhas mãos daqui há pouco. Dizem que cabelos e unhas continuam a crescer depois que a gente morre. Será que as unhas do meu pé morto estão crescendo ainda? Não dá pra perceber. Elas crescem muito lentamente. Os pelos que nascem nos dedos e em cima do pé não estão mais aqui. Meu médico disse que eles pararam de crescer antes mesmo da amputação porque não havia mais a devida irrigação sanguínea.
Estranho as pessoas dizerem minha cabeça, minhas orelhas, minha boca, meu braço, minhas mãos, meus pés. Num livro que li do chileno Juan Emar, ele diz que sofreu um procedimento cirúrgico para descolar o telefone de sua orelha. Antes da cirurgia, ele cortou o fio do telefone para se libertar do aparelho. O corte fez verter sangue do fio. Embora o autor tenha desenvolvido uma literatura do absurdo, o que ele escreveu sobre o fone grudado na sua orelha com o fio sangrando faz sentido. Ou o telefone é um animal ou a orelha é um objeto inanimado.
A orelha não pode ser minha, pois não é um objeto que exista fora de mim. Não posso cortar minha orelha para dar ou vender. Dar até posso. Van Gogh cortou sua orelha e a enviou para a namorada. Mas certamente vão considerar este gesto doentio e macabro. As orelhas que estão em mim sou eu. Meu pé é eu. Não uma parte desatarrachável do corpo que posso tirar, dar e vender. Ao ser amputado, meu pé vai como uma parte minha. Morri alguns avos quando separam o pé de mim. Serei sepultado alguns avos quando o pé for sepultado. Este engenho fabuloso que está presente nas pessoas e em muitos animais vai virar esqueleto antes de mim. Os muitos ossos da sua estrutura vão aflorar quando os tecidos, os músculos, os nervos, a pele se deteriorarem. Será que meu pé resistirá sofrendo algum processo de mumificação natural?
Lembrei de uma múmia que existia no Museu Nacional do Rio de Janeiro cujo corpo não foi enrolado por inteiro, como um bloco. Tratava-se da múmia de uma moça. Os braços, as pernas, os dedos das mãos e dos pés foram envolvidos separadamente. Dava pra ver até os seios dela. Conheci um professor que era apaixonado por ela. Chamava-se Victor Stawiarski. Perdi-o de vista. Era muito alegre e engraçado. Deve ter morrido com os dois pés.
Certa vez, quando eu ainda estava na Universidade, deram-me a disciplina antropologia para ministrar. Argumentei que eu não tinha formação. Não consegui me livrar. Que eu me virasse, foi a resposta do coordenador. Estudei os fundamentos da ciência e escolhi alguns temas. Moda foi um deles. As alunas prevaleciam nas turmas. Não estou afirmando que mulher só gosta de moda. Mas eu precisava me sentir mais seguro numa área de conhecimento que eu não dominava. Foi um sucesso. As moças participaram ativamente, opinando sobre o que eu apresentava no PowerPoint. Eu queria mostrar como nossa cultura de massa impõe o tipo físico para ser modelo, sobretudo feminino. A mulher deve ter magreza anoréxica, com pouco busto, pernas finas, rosto pálido semelhante a de um zumbi.
De vez em quando, eu introduzia uma artista de cinema ou televisão para elas fazerem o contraste. Uma vez, exibi uma foto de Camila Pitanga com os seios nus e descalça. Os homens logo adoraram. Percorri seu corpo em detalhes, da cabeça aos pés. Gostei dos pés femininos, delicados, pequenos. Externei minhas sensações. Uma moça ponderou que pé de homem é muito feio e que pé de moça é mimoso. Ela usou este adjetivo. Concordei. Mas lembrei de pés femininos calejados, sofridos, maltratados pelo tempo e pelo trabalho.
Certa vez, num barbeiro que era salão de beleza popular também, uma mulher aparentemente pobre, de rosto enrugado, corpo arredondado, pernas arqueadas, de meia idade entrou e perguntou se era possível fazer as unhas. Uma das duas moças presentes respondeu que tinha uma cliente para as quatro horas, mas que, até lá, seria possível tratar das unhas da senhora. Com toda a naturalidade que há de existir neste mundo, a manicure perguntou: “pé e mão?”. “É”, respondeu a outra. Mais que depressa, a manicure encheu uma bacia de água quente com espuma e mergulhou aqueles pés encarquilhados de sua cliente nela. Enquanto tratava das unhas das mãos, aqueles horríveis pés ficavam de molho. Depois de certo tempo, tomou um a cada vez e os raspou com um ralo, com uma fisionomia de quem iria assobiar descontraidamente uma canção. Em seguida, enfiou entre os dedos chumaços de algodão para afastá-los e passou a pintar as unhas com esmalte vermelho. De vez em quando, eu olhava de esguelha aquela cena patética com medo de envergonhar a ambas. No entanto, nenhuma das duas conferia a mim a menor importância. Parecia-lhes fazer a operação mais natural que possa existir. A manicurada com aqueles dedos arreganhados. A manicure segurando aqueles pés sem qualquer pejo. Fiquei a me perguntar, mais uma vez em muitas na minha vida, como as pessoas podem considerar natural ter pés e exibi-los sem qualquer cerimônia.
            Mas, no geral, reparo e admiro a delicadeza dos pés femininos. Acho estranho ter as extremidades das extremidades do corpo, mãos e pés, pintadas. Sou de uma geração em que homem não pintava unhas, nem mesmo com base. Hoje, existem homens que frequentam salão de beleza, pintam mãos e pés sem nenhum constrangimento.
            Eu tinha tanta vergonha dos meus pés quando criança que, nem na praia, eu os exibia. Acompanhava meus pais calçando sandálias, que mostravam apenas os dedos e os calcanhares. Todos diriam que é tolice. Hoje, também digo, mas não sei de onde nasceu aquela vergonha. Parece até que meus pés desnudos mostravam a nudez de todo meu corpo.
            Eu queria ficar mais tempo com meu pé amputado. Ainda tenho várias reflexões a fazer, mas o enfermeiro chegou para levá-lo. Ele vai ser colocado numa urna para natimortos e sepultado no túmulo da minha família. Quanta ironia. Um pé desgarrado do corpo sendo tratado como criança falecida. Num último arroubo, beijei a sola dele. Nunca pensei que chegaria a fazer isso um dia. Restou-me apenas um pé que devo proteger. Adeus, meu pé, meu pobre pé.

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