DRENAGEM PLUVIAL DE SÃO FRANCISCO DE ITABAPOANA

Drenagem pluvial de São Francisco de Itabapoana

Arthur Soffiati
Os estirões finais dos rios Paraíba do Sul e Itabapoana foram tomados como limites do munícipio de São Francisco de Itabapoana, até 1995 integrante do município de São João da Barra, um dos três mais antigos da Capitania de São Tomé, depois Distrito dos Campos Goitacás e atualmente Norte Fluminense. O município de São Francisco de Itabapoana era conhecido como Sertão de São João da Barra. Seu território é formado, na maior parte, pela extremidade setentrional da restinga de Paraíba do Sul e por grande parcela da unidade de tabuleiros entre os rios Paraíba do Sul e Itapemirim. Na restinga, o substrato é arenoso. Nos tabuleiros é argiloso. Em ambos, não existem formações pedregosas. Essa ausência caracteriza a costa marinha que se estende da margem esquerda do rio Macaé à margem direita do rio Itapemirim.
Sendo baixos, os terrenos de restinga acumulam água mas sua porosidade a absorve. A saturação, contudo, pode criar alagamentos. O escoamento da água de chuva para o mar, na restinga, efetua-se pelos rios Paraíba do Sul e Guaxindiba, contando também com o longo canal Engenheiro Antonio Resende, aberto pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) para escoar o excedente hídrico da lagoa do Campelo para o mar, utilizando a foz do rio Guaxindiba. Tal obra transformou o rio Guaxindiba em afluente do canal Engenheiro Antonio Resende. A extensão de praia entre a foz do Paraíba do Sul e a foz do Guaxindiba carece de escoadouros naturais para o mar. 

Território corresponde ao município de São Francisco de Itabapoana em mapa de Manoel Martins do Couto Reis de 1785 (Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011)
Já os tabuleiros contam com mais sistemas naturais de drenagem, embora o terreno argiloso seja pouco poroso, acumulando águas pluviais nas áreas planas. De sul para norte, existem córregos que desembocam no mar, na seguinte sucessão: Manguinhos, Barrinha, Buena, Tatagiba, Guriri, Doce e Salgada. Quando eram íntegros, todos eles tinham comunicação permanente ou periódica com o mar. Os tabuleiros eram revestidos de florestas estacionais semideciduais, na verdade uma variação da Mata Atlântica adaptada a uma dupla sazonalidade. Na estação seca, esse tipo de floresta perde entre 20 e 50% das folhas. Na estação úmida, volta a ficar totalmente verde. Graças a elas, esses pequenos cursos d’água tinham seu regime hídrico regulado. E existiam muitas áreas planas que formavam pântanos, ecossistemas riquíssimos.
A imensa floresta, que encantou os viajantes naturalistas europeus Maximiliano de Wied-Neuwied (Viagem ao Brasil. São Paulo: Edusp, 1989.) e Auguste de Saint-Hilaire (Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1974.), em 1815 e 1818, respectivamente, foi progressivamente removida com o fogo e com o corte para o fornecimento de lenha, madeira e abertura de terras para a agropecuária. Vindo do Espírito Santo, o diplomata e naturalista suíço Johann Jakob von Tschudi atravessou o antigo Sertão de São João da Barra, em meados do século XIX, e também se encantou com as viçosas matas: “quatro horas ainda marchamos pelo caminho através da mata virgem, cuja monotonia era interrompida cá e lá por uma ou outra fazenda” (Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980.).
Mas ele faz um registro iconográfico de uma queimada e, hospedado na fazenda do traficante de escravos André Gonçalves da Graça, observa: “A indústria madeireira parece render consideráveis lucros, pois as matas da propriedade são ricas em madeiras preciosas e o transporte é muito fácil, pois a fazenda fica a uma légua da costa apenas, de onde são exportadas. Na maioria das fazendas, porém, as madeiras preciosas são queimadas junto com as comuns, nas roças, pois ninguém observa um trabalho sistemático na derrubada dos matos; separam, apenas, as madeiras imediatamente utilizáveis e queimam o resto. Nas florestas brasileiras há um sem número de essências preciosíssimas, conhecidas apenas parcialmente na Europa (Idem).
O Brasil já não era mais colônia de Portugal quando Tschudi passou pelo Sertão de São João da Barra, mas perdurava ainda o que os historiadores denominam de “síndrome da inesgotabilidade”, ou seja, a crença segundo a qual os recursos naturais eram tão abundantes que jamais se esgotariam com a exploração, ainda que predatória. Observemos que esta atitude ainda vigora no Brasil e em outros países americanos. Ela chamava a atenção dos europeus, que já haviam devastado suas matas. No Brasil, contudo, as devastações de matas tropicais luxuriantes espantavam os europeus, motivando críticas por parte deles, como foi o caso de Saint-Hilaire (idem).
            Na restinga, o substrato arenoso, os ventos e a salinidade são fatores limitantes para o desenvolvimento de florestas. Passando por ela, Tschudi apenas anotou: “As dunas estéreis da praia são limitadas aí, como também a Norte, por uma estreita faixa de vegetação arbustiva baixa, coberta pela areia solta. Nessa vegetação prevalece a pitangueira cujo fruto, de um vermelho amarelado, e de um gosto um tanto acre, porém muito agradável, estava justamente amadurecendo (Idem).
            Existe um terceiro ecossistema vegetal nativo em São Francisco de Itabapoana não registrado por Tschudi: o manguezal. Trata-se de um complexo que se desenvolve, habitualmente, em estuários, ou seja, em foz de rios no mar. A mistura da água doce com a salgada, cria um ecossistema denominado estuário, existente em todos os rios do mundo que deságuam no mar. O manguezal, contudo, só se desenvolve em estuários intertropicais. Em São Francisco de Itabapoana, eles se desenvolvem na foz dos rios Paraíba do Sul (o maior e mais diversificado deles), Guaxindiba e Itabapoana. Certamente, estavam presentes nos córregos de Manguinhos (onde restam resquícios deles), Barrinha, Buena, Tatagiba, Guriri, Doce e Salgada.
            Maximiliano de Wied-Neuwied fez um pequeno registro do manguezal do rio Paraíba do Sul: “(...) atravessamos o segundo braço do rio, remando, então, por um pequeno canal, entre duas ilhas, cujas águas, ensombradas de todos os lados pelas florestas altaneiras, são quase estagnadas, motivo pelo qual cheias de jacarés. Enquanto a canoa avançava devagar, não tirávamos os olhos deles. As raízes descobertas e arqueadas do Conocarpus e da Avicennia, emergindo dos troncos a considerável altura, formavam na margem estranho emaranhado (Idem).”
            O desmatamento processado pelo fogo ou pelo corte, reduziu a floresta estacional semidecidual a tufos de vegetação ínfimos. O maior deles está agora protegido oficialmente pela Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba. Esse descomunal desmatamento facilitou a erosão e o assoreamento dos córregos e mesmo dos dois grandes rios que limitam o município. A vegetação de restinga foi removida em grande parte pelos núcleos urbanos de Santa Clara e Guaxindiba. O manguezal do rio Paraíba do Sul está sendo suprimido pela vila de Gargaú e pela criação de gado. Como as ilhas de restinga recebem revestimento de argila transportada pelo rio Paraíba do Sul, o substrato se torna consistente para o pisoteio do gado. O manguezal da foz do rio Itabapoana está sendo desmatado pela vila de Barra do Itabapoana. Os outros pequenos manguezais foram eliminados, restando apenas o do rio Guaxindiba/canal Engenheiro Antonio Resende, mesmo assim sofrendo pressões.
            O regime hídrico dos rios e córregos foi profundamente alterado pela supressão da floresta estacional. Posteriormente, eles foram represados por proprietários rurais em vários pontos do seu curso para reservação de água. As rodovias estaduais e municipais contribuíram sobremaneira para esse represamento. E não se pode esquecer a ação das Indústrias Nucleares Brasileiras (INB), que revolveram o solo e o subsolo de quase todo o município à procura de terras raras. Os córregos sofreram intensos impactos ambientais com a mineração. Os córregos de Buena, Tatagiba, Doce e Salgada perderem sua foz, enquanto que o de Guriri teve sua calha estreitada e atulhada. Carecemos ainda de um estudo sobre as transformações causadas pela atuação da INB no município.
            Entre Gargaú e Santa Clara, os alagamentos não contam com escoadouros naturais para o mar, como já se registrou. O substrato arenoso facilita a absorção de água. Mas devemos considerar que existe um limite para a porosidade provocado pela saturação líquida. Deve-se considerar também o revestimento da areia com argila, pedra e asfalto. Pode-se contar com o canal Engenheiro Antonio Resende, todo ele rasgado no âmbito da restinga. Em casos de chuvas torrenciais e prolongadas, as águas acumuladas nas praias podem ser canalizadas para o canal Engenheiro Antonio Resende, mas deve-se rebaixar o dique de areia deixado na sua margem direita e que resulta dos trabalhos do DNOS para abri-lo. Aplainado o terreno, as águas acumuladas podem fluir mais facilmente para o canal, seja naturalmente, seja com a abertura de valas. Além do mais, seria criada uma considerável área para expansão do manguezal. De modo algum poder-se-ia permitir que essa área fosse usada para empreendimentos imobiliários, como aconteceu na margem do canal de Guaxindiba. 

Vala aberta para o escoamento de águas pluviais para o mar por meio de bombeamento
A sede do município instalou-se e expandiu-se sobre as lagoas Salgada e da Roça. A Salgada fazia parte do complexo da lagoa de Macabu, que foi ligada ao rio Paraíba do Sul pelo canal de Cacimbas, no século XIX, para escoamento da produção do Sertão de São João da Barra, principalmente lenha e madeira. Na década de 1970, o DNOS cortou o canal de Cacimbas perto da ainda vila de São Francisco pelo canal de drenagem Engenheiro Antonio Resende. No entanto, restou um pequeno segmento do canal de Cacimbas entre a lagoa de Macabu e o canal Engenheiro Antonio Resende que poderia ser usado para drenagem da cidade de São Francisco de Itabapoana. Ele deve estar muito assoreado e talvez até ignorados pelo poder público. Da lagoa Salgada, restaram fragmentos, enquanto a cidade avança sobre a lagoa da Roça. Talvez seja possível localizar e restaurar esse segmento de canal para escoar as águas acumuladas no meio urbano para o canal Engenheiro Antônio Resende.
Os antigos afluentes do rio Guaxindiba deveriam ser desentupidos, assim como o próprio rio Guaxindiba, para facilitar o escoamento das águas acumuladas pela chuva. O poder público terá dificuldades nessa empreitada pela resistência de proprietários rurais, que ergueram barramentos ao longo do rio para reservar água. Cabe lembrar que o Guaxindiba nasce nas cercanias de Morro do Coco e drena o interior do município de São Francisco de Itabapoana. 

Legenda: 1- antigo rio Guaxindiba; 2- canal Engenheiro Antonio Resende; 3- canal de Guaxindiba
O córrego de Manguinhos precisa ser reativado. Na orla, parece melhor ser construída uma ponte de madeira sobre sua foz que um conjunto de manilhas. Uma ponte de madeira que suporte o peso de automóveis permite melhor o escoamento de água para o mar e, se for arrastada por uma cheia, fica mais barato para a prefeitura construir uma nova. 

Água de cheia fluindo pelo córrego de Manguinhos para o mar (2020). Foto Simone Pedrosa
Também o córrego de Barrinha perdeu a sua foz. Hoje, ele se assemelha a uma cobra que teve a cabeça cortada. O córrego não termina mais no mar. Embora diminuto, ele tem muitas barragens. Sua função de drenagem é importante por correr numa área baixa em que as águas pluviais se acumulam com facilidade. Aliás, os terrenos de tabuleiros apresentam muitas depressões que acumulam água de chuva.
O córrego de Buena foi barrado pelas Indústrias Nucleares Brasileiras para acumular água doce que permitisse a lavagem de terras raras, o que é chamado de fase úmida na separação de terras comuns de terras raras. O manguezal em sua foz ficou sem a contribuição salutar das marés. O Estado do Rio de Janeiro determinou a demolição da barragem, mas não foi o suficiente para a entrada das marés. Franqueada em caso de necessidade, a foz do córrego de Buena pode contribuir muito para a drenagem pluvial. 

Foz do córrego de Buena barrada por ação humana
O caso mais grave é o do córrego de Tatagiba, também conhecido pelo nome de Baixa do Arroz na sua nascente. A foz do Tatagiba deixou de existir pelo revolvimento de terra efetuado pela INB. Para que suas águas de cheia alcancem o mar, é preciso abrir uma vala. Desbloquear essa foz seria muito oneroso em termos financeiros e ambientais. Melhor valer-se da sangria efetuada no córrego a fim de escoar o excedente hídrico para o mar. 

Mapa mostrando o trecho final do córrego de Tatagiba, assinalado pelo número 1
            A situação ambiental do córrego de Guriri também é crítica. Além do desmatamento de sua bacia e do assoreamento dela, o curso principal sofreu vários barramentos por represas para o acúmulo de água e também por estadas municipais e pelas rodovias RR-224 e RJ-196. Por sua vez, a INB revolveu as terras de suas margens. Com chuvas fortes, o acúmulo de água ainda abre sua foz, mas trata-se de um fenômeno raro. 

Foz do córrego de Guriri aberta em tempos de enchente
            Os antigos córregos Doce e Salgada, ao norte de Guriri, foram de tal forma adulterados, que se transformaram em lagoas alongadas com os nomes originais. Com chuvas intensar, a lagoa Doce ainda consegue abrir caminho para o mar. A lagoa Salgada, por sua vez, não consegue romper a barragem representada pela antiga RJ-196 e pela crista da praia, elevada por ação da INB. Entende-se, porém, que essas duas lagoas devem ser mantidas para o acúmulo de água doce. Não se pode drenar todo o território municipal. Algumas áreas devem ser destinadas à reservação de água, já que as estiagens têm sido mais inclementes e prolongadas que os episódios de enchentes.
            Por fim, o rio Itabapoana, que foi tomado como divisa entre os Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo. Ele foi intensamente mutilado pelo desmatamento, erosão assoreamento, canalizações, eliminações de banhados marginais, represas para a geração de energia e barramento por rodovias. As chuvas de janeiro de 2020 mostraram como a junção da RJ-196 com a ES-040 criaram uma represa. Sobre o rio, foi construída uma ponte com vão correspondente à largura do rio. Ele encheu e transbordou. O vão da ponte mostrou-se insuficiente para a passagem da água. O transbordamento ocorreu com mais intensidade na margem esquerda do rio, sobre o substrato arenoso da restinga de Marobá. Se a engenharia de estradas tivesse instalado bueiros dimensionados sob a ES-060, a água de transbordamento poderia fluir mais facilmente em direção à foz. A jusante da rodovia, canais abertos entre os bueiros e o leito do rio facilitariam mais ainda o escoamento. Mas certamente não haveria manutenção desse sistema simples. Como não existem diques na foz, a vila de Barra do Itabapoana está sujeita a transbordamentos. 

Junção das rodovias RJ-196 e ES-060, barrando o rio Itabapoana em tempo de enchente (2020)
Enfim, São Francisco Itabapoana não está preparado para enfrentar as mudanças climáticas (muita chuva e muita seca). Poucos lugares do mundo se preparam para as surras do clima, como a Holanda, por exemplo. Sempre que ocorrem enchentes e estiagens severas, o poder público e a população atendem aos atingidos pontualmente. Depois que a crise passa, tudo é esquecido até que ela ocorra de novo. Como em todo o Brasil e mesmo em quase todo o mundo, não estamos nos preparando para os novos tempos. Novos e terríveis tempos. Continuamos a agravar a origem dos problemas, aquecendo mais ainda o planeta. Aqui em baixo, continuamos a tocar a vida como no passado. Os tempos são outros. Precisamos nos preparar para eles porque a economia continuará a agravar as mudanças climáticas.
O que São Francisco de Itabapoana necessita fazer, assim como Campos e outros municípios da região (talvez em todo o mundo), é formular um plano de drenagem para reduzir o impacto das chuvas (nunca pensar que algum plano resolva o problema 100%) e um plano de reservação de água. Os transbordamentos, enchentes e alagamentos de que todo mundo reclama não são aproveitados para armazenamento de água. Passadas as chuvas, a água acumulada se infiltra no solo, vai para o mar ou é evaporada pelo sol.
Esta é a pequena contribuição de um eco-historiador que julga conhecer minimamente o município de São Francisco de Itabapoana.

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