MANGUEZAIS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
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Portal do Farol, 17 de outubro
de 2020
Manguezais do Estado do Rio de
Janeiro
Arthur Soffiati
Até
que algum capixaba ou paranaense reclame, o Rio de Janeiro é o estado que conta
com a maior área de manguezais da região sudeste, como informa a reportagem “A
saga dos manguezais”, publicada em “O Globo” de 12 de outubro de 2020. A maior
área de manguezal do Espírito Santo encontra-se na baía de Vitória, enquanto
que a maior do Paraná cresceu dentro da baía de Paranaguá.
A
matéria jornalística colhe informações do “Atlas dos Manguezais”, do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), edição de 2018. O
Brasil conta com uma área de manguezal equivalente a 1,3 milhão de hectares, ou
seja, uma extensão correspondente a um milhão e trezentos mil campos de
futebol. O estado do Rio de Janeiro conta com 13,7 mil hectares, sendo que a
maior parte se encontra no interior da baía da Guanabara: 74 quilômetros
quadrados. A baía de Sepetiba tem 29 Km². Em terceiro lugar vem a baía da Ilha
Grande, com 8 Km² quilômetros, enquanto que o delta do Paraíba do Sul tem 6
Km². As estimativas foram feitas a partir de imagens de satélite, que mostram
quantidade e ocultam qualidade. Para avaliar a qualidade é preciso o
insubstituível exame no terreno.
Minha
primeira indagação emerge da expressão “Complexo do Paraíba do Sul”. Qual o
significado dela? Estuário (ponto em que a água do rio se encontra com a água
do mar) ou os rios e lagoas próximos ao degrado rio? A segunda indagação
refere-se à atenção dada à metade meridional do Rio de Janeiro. Considerou-se
apenas a baia de Guanabara, a baía de Sepetiba e a baía da Ilha Grande. Em
outras palavras, da baía de Guanabara a Parati, no extremo sul fluminense. A
metade setentrional – ou seja, as regiões dos Lagos e Norte Fluminense – foram
simplesmente ignoradas.
Não sou biólogo nem geógrafo. Sou
apenas um historiador que estudou e ainda estuda, entre outros temas, a relação
das sociedades humanas com o ecossistema costeiro manguezal. A esse respeito,
publiquei o livro “Os manguezais do sul do Espírito Santo e do norte do Rio de
Janeiro com alguns apontamentos sobre o norte do sul e o sul do norte”, 2ª
edição. (Campos dos Goytacazes: Essentia, 2014).
. Conheço relativamente os
manguezais do sul fluminense, da baía de Sepetiba e da baía da Guanabara.
Conheço melhor os manguezais da região dos Lagos e acredito conhecer com
intimidade os manguezais que se estendem do rio Macaé ao rio Itapemirim, já no
Espírito Santo. Em relação a todos eles, não me contentei com imagens de
satélite.
No
sul fluminense, afundei os pés na lama de alguns manguezais. A distância entre
as nascentes desses rios, na Serra do Mar, e a linha costeira é pequena, não
permitindo que eles contem com cursos longos. Portanto, seus estuários também
não são expressivos e só permitem o desenvolvimento de pequenos manguezais.
Pode ser que somando todos os manguezais do sul fluminense, o total coloque a
região em terceiro lugar, mas cabe também examinar as condições desses
manguezais. Tirando os da Ilha Grande, que não conheço, os que estão no
continente sofrem o assédio da urbanização e de empreendimentos turísticos.
Existem marinas em toda extensão da costa sul-fluminense.
Na
baía de Sepetiba, os manguezais também estão estropiados. Mesmo assim, os
pesquisadores sempre encontram elementos que merecem ser pesquisados, como fez
a bióloga Flávia Rebelo Mochel num pequeno manguezal da baía de Sepetiba (Endofauna do manguezal. São Luís:
Editora da Universidade Federal do Maranhão, 1995). Os manguezais são
resilientes, mas todos os manguezais que eu visitei na baía de Sepetiba me
pareceram excessivamente poluídos e degradados. Na lama deles, eu não
arriscaria a afundar os pés, embora já tenha vivido aventuras perigosas no
mundo da lama.
Em 1966,
acompanhei um curso de ecologia ministrado por Segadas Vianna, que havia
chegado do Canadá, se bem me lembro, depois de concluir seu doutorado. Suas
aulas práticas eram na Barra da Tijuca, então um mundo encantado não muito
diferente daquele que Armando de Magalhães Corrêa descreveu em seu livro “O
sertão carioca” (CORRÊA, Armando Magalhães. O Sertão Carioca. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1936).
No ano seguinte, fiquei acampado por quinze dias naquele lugar paradisíaco por
conta do serviço militar. Lembro muito bem de que eu complementava a
alimentação com frutos de restinga, que eram encontrados em abundância. Os
manguezais eram íntegros e fascinantes. Eles ocupavam área muito maior que a
atual.
Trinta
anos depois, voltei à Barra da Tijuca e não mais reconheci o lugar em que
passei dias maravilhosos. A urbanização arrasou uma restinga frágil. Jamais
caberia uma urbanização tão pesada e anárquica como a que lá ocorreu. As limpas
lagoas foram cercadas por arranha-céus, condomínios fechados e favelas. Quem
desejar uma aula prática sobre desigualdades sociais visite a Barra da Tijuca.
Quem quiser conhecer a criminalidade, a violência e as milícias visite a Barra
da Tijuca. Quem desejar conhecer impactos sociais visita a Barra da Tijuca. O
manguezal é um ecossistema com grande resiliência, mas as condições ambientais
da Barra da Tijuca são ultrajantes. Todas as lagoas estão poluídas no seu
limite de resiliência. Na verdade, a poluição já ultrapassou esse limite.
E
a gente navega a baía de Guanabara estarrecido. A área dos manguezais pode até
ter aumentado em Guapimirim, mas que sejam examinados os pequeninos rios que
ainda desembocam na baía. A poluição deles por esgoto e lixo ultrapassa
qualquer limite. Examinemos as margens da baía. Enormes lixões ainda existem
por ali. Lembremos o grande derramamento de óleo causado pela Petrobras em
2000. Os especialistas asseguram que o óleo é letal para o manguezal. Na Guerra
do Golfo (1991), o petróleo foi usado por Saddam Hussein como arma contra a
coalização anti-Iraque. Se sua área foi reduzida, as espécies ensinaram os
cientistas a arte de resistir. Existe inclusive um estudo sobre os mecanismos
desenvolvidos pela “Avicennia maritima” para sobreviver (BÖER, Benno. Anomalous pneumatophores and adventitious roots of
Avicennia marina (Forssk.) Vierh. Mangroves two years after the 1991 Gulf War
oil spill in Saudi Arabia. Marine Pollution Bulletin nº. 27. 1993).
Na
baía de Guanabara, que sofre um processo estrutural e contínuo de degradação já
denunciado por Pedro Soares Caldeira (O corte do mangue: breves considerações sobre o antigo e atual estado da Baía do Rio de
Janeiro, consequências da destruição da árvore denominada mangue, método
bárbaro da pesca e decadência desta indústria. Rio de Janeiro:
Tipografia Imp. e Const. de J. Villeneuve & C., 1884), Magalhães Correa na década de
1930 (Águas cariocas: a Guanabara como natureza. Rio de Janeiro: Outras Letras,
2016) e Dorothy de Araújo e Norma Crud (Os
manguezais do recôncavo da baía de Guanabara. Rio de Janeiro: Fundação
Estadual de Engenharia do Meio Ambiente, 1979), os pescadores são unânimes em
afirmar que a pesca é uma atividade em declínio.
Atravessemos
a serra do Inoã, que separa a baía de Guanabara da Região dos Lagos. Entramos
em Maricá, com seu complexo de lagoas interligadas. Há contato do complexo com
o mar e, em vários pontos, desenvolvem-se manguezais, embora pequenos em
virtude dos exíguos espaços disponíveis para o ecossistema.
Pequeno manguezal numa das lagoas de Maricá |
Em
direção leste, atingimos o complexo lagunar de Saquarema, onde também existem
manguezais. A salinidade aumenta em direção à lagoa de Araruama, uma das
maiores do Brasil e hipersalina. Uma das crenças populares é a de que mangue
gosta de sal. Sim, gosta. O sal afasta plantas concorrentes de água doce. Mas a
tolerância das plantas de mangue à salinidade tem limites. Por isso, é
impressionante encontrar exemplares de siribeira (Avicennia schaueriana) e de mangue-de-botão na lagoa de Araruama em
vários pontos. Existe o Parque Ecológico Dormitório das Garças Walter Bessa
Teixeira para proteger um pequeno bosque com essas espécies no Porto dos
Carros, às margens da lagoa de Araruama.
Em
Búzios, uma surpresa nos aguarda: típicos manguezais de franja ou borda, ou
seja, manguezais que não se desenvolvem em estuários, como é comum, mas na
enseada do munício, entre o rio Una e a Ponta da Sapata. A enseada é protegida
da forte energia marinha, o que permite o desenvolvimento de manguezais sem a
necessidade de uma fonte visível de água doce na sua retaguarda. O mais famoso
manguezal de franja do estado é o conhecido Mangue de Pedra.
A
partir do rio Una, que ainda é pequeno, começam a se suceder os maiores rios do
estado. Numa Região dos Lagos ampliada que eu convencionei, desembocam os rios
São João, das Ostras e Macaé, todos eles, como é de se esperar, com manguezais
nos estuários. O rio Macaé separa duas províncias geológicas e botânicas. Na
sua margem direita, a costa é toda pedregosa, com pequenas restingas entre uma
proeminência pedregosa e outra. Na foz do rio São João, a restinga capturou uma
ilha e a transformou num tômbolo.
Pelo
prisma da botânica, o rio Macaé marca o limite meridional de distribuição da Avicennia germinans, uma espécie de
siribeira cujos limites meridionais foram se deslocando de acordo com a
pesquisa. Jimenez e Lugo situaram esse limite no Espirito Santo (JIMENEZ, Jorge
A. e LUGO, Ariel E. Avicennia germinans
(L) L. Black mangrove. United State Forest Service Silviculture n. 4,
1985). Posteriormente,
Norma Crud e Dorothy de Araujo fixaram esse limite no rio Paraíba do Sul
(FEEMA. Relatório técnico sobre
manguezal. RT 1123. Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente: Rio
de Janeiro, 1980). Por fim, Norma Crud reconheceu o rio Macaé como limite
(MACIEL, Norma Crud e SOFFIATI NETTO, Aristides Arthur. Novos limites para a
distribuição geográfica de Avicennia
germinans (L.) Stern -
Avicenniaceae e Montrichardia arborecens (L.)
Schott - Araceae, no Rio de Janeiro,
Brasil. Anais do IV Simpósio de
Ecossistemas Brasileiros, vol. IV. Águas de Lindóia: Aciesp, 1998). Há
poucos quilômetros ao sul, no rio das Ostras, a siribeira que ocorre é a Avicennia schaueriana. Todos os
pesquisadores que consultei são unânimes em reconhecer que só encontram esta
segunda espécie de metade do estado do Rio de janeiro para baixo.
O
manguezal do rio Macaé apresenta grande interesse para quem estuda anomalias em
plantas. O impacto da urbanização e do óleo na água, pelo que se supões, causou
deformações em exemplares de siribeira. Já existem estudos sobre tais anomalias
(LUGO, A. E.; CINTRÓN, G.; GOENAGA, C. El ecosistema del manglar bajo
tensión. Anales del Seminario sobre el Estudio Científico e Impacto Humano en el
Ecosistema de Manglares. Cali,
Colômbia: Unesco, 1980; SNADEKER, S.C.; JIMENEZ, J.A. e BROWN, M.S. Anomalous aerial roots in Avicennia
germinans (L.) in Florida and Costa Rica. Bull. Mar. Sci nº 31 (2). 1986,
467-470; MACIEL,
Norma Crud e SOFFIATI NETTO, Aristides Arthur. Raízes aéreas em Avicennia
germinans (L.) Stern – Avicenniaceae, com emissão de subpneumatóforos.
Rio Macaé, Macaé, RJ, Brasil. Anais do IV Simpósio de Ecossistemas Brasileiros.
Águas de Lindóia: Aciesp, 1998).
Mas
não há motivos para exaltar os manguezais da Região dos Lagos. Muitos estão
ameaçados, enquanto que outros estão degradados, como o de Macaé. Lá, a
urbanização caminha para a sua supressão. Caminhando pela restinga de
Jurubatiba, como fiz nos anos de 1980, não se encontra, sequer, um pé mangue.
Todavia, Renato Herz, valendo-se de imagens de satélite, encontrou um manguezal
considerável na lagoa de Carapebus (Manguezais do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1991).
Somente no fim dessa restinga, em Barra do Furado, três pequenos manguezais se
formaram. Dois são antigos, com origem ainda não elucidada. Um deles, o menor
de todos, é um verdadeiro enigma. O terceiro é novo. Acompanhei sua formação de
perto. Hoje, ele já é frequentado pelo caranguejo-uçá.
Seguindo
adiante, mais uma zona comprida representada por estreita faixa de areia
ligando a restinga de Jurubatiba à restinga de Paraíba do Sul, a maior do
estado do Rio de Janeiro. No final dela, encontra-se uma relíquia na lagoa do
Açu, antigamente um rio que perdeu a competência de manter sua foz aberta por
interferência do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS). Era o belo
rio Iguaçu, hoje lagoa do Açu. Resistiu nela um manguezal ribeirinho, hoje
manguezal de bacia ou enclausurado. Quatro espécies são encontradas nele: o
mangue vermelho, o mangue branco, a siribeira e o mangue de botão. Esta última
aprecia salinidade, mas não é uma verdadeira espécie de mangue. Ocorre na
restinga também. A salinidade aumenta no Cabo de São Tomé, acidente geográfico
de referência já no século XVI. Além da maior população de mangue-de-botão do
estado, o complexo lagunar abrange a lagoa Salgada, mais hipersalina que a de
Araruama. Suspeito da existência de marismas em suas margens e espero um
ecólogo para examiná-la. A formação de estromatólitos recentes projetou a lagoa
Salgada no mundo. O conjunto forma um dos recantos mais privilegiados do estado
em termos de biodiversidade. Navegar a lagoa do Açu é navegar num mundo
encantado. Embora o conjunto esteja protegido pelo Parque Estadual da Lagoa do
Açu – PELAG, os perigos sempre existem.
O
próximo passo nos coloca na foz do rio Paraíba do Sul, onde se desenvolveu um
típico manguezal ribeirinho. A água doce na composição do estuário favorece a
invasão de plantas não-exclusivas de manguezal, como a samambaia-do-brejo (Acrostichum aureum), o mololô (Annona glabra), o algodoeiro da praia (Talipariti pernambucense), o
rabo-de-galo (Dalbergia ecastaphyllum),
a amendoeira (Terminalia catappa),
aroeira (Schinus terebinthifolius) e
a aninga (Montrichardia linifera). Esta última confere ao manguezal um aspecto
amazonense. O Paraíba do Sul já foi tomado como o limite meridional de
distribuição dessa espécie de aninga. Ela foi confundida por muito com a
Montrichardia arborecens. Uma comunicação de Norma Crud mostrou que a espécie
alcança a lagoa de Gruçaí, outrora um dos braços do delta do Paraíba do Sul
(MACIEL, Norma Crud e SOFFIATI NETTO, Aristides Arthur. Novos limites para a
distribuição geográfica de Avicennia
germinans (L.) Stern -
Avicenniaceae e Montrichardia arborecens (L.)
Schott - Araceae, no Rio de Janeiro,
Brasil. Anais do IV Simpósio de
Ecossistemas Brasileiros, vol. IV. Águas de Lindóia: Aciesp, 1998). Cabe
agora discutir o que vem a ser complexo do Rio Paraíba do Sul, conforme
menciona a matéria jornalística que ensejou estes comentários. É a foz atual
dele, com dois ou três braços ou inclui mais os três braços do passado?
Outro
aspecto da foz do rio Paraíba do Sul é o substrato argiloso ao lado do lamoso.
O transporte de sedimentos argilosos pelo rio na formação da planície é
responsável por esta característica. Daí, proprietários rurais terem desmatado
grandes extensões do manguezal para a criação de gado. No manguezal do Paraíba
do Sul, a boiada solta pelo ministro Ricardo Salles realmente passou. Mas os
bois ainda não atuaram como bombeiros porque a umidade é acentuada e não deixa
incêndios ocorrerem.
Pastagem de bois no manguezal do rio Paraíba do Sul
Seguindo em direção ao Espírito Santo, encontramos manguezais significativos no pequeno rio Guaxindiba, sempre confundido com o rio Guaxindiba que deságua na baía da Guanabara, e no rio Itabapoana, cuja inteira extensão foi usada como divisa entre Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais.
Área
do manguezal do rio Itabapoana
Não
há, nesse artigo, nenhuma intenção ufanista de exaltar os manguezais das
Regiões dos Lagos e Norte Fluminense. A intenção é mostrar que eles também
existem a lesta da baía da Guanabara e que contém particularidades não
encontradas nos manguezais a Guanabara e Parati. Essas particularidades não
podem ser percebidas em imagens de satélite. Não é a área ocupada pelos
manguezais o que importa, mas a natureza deles. Isso só é possível com um conhecimento
próximo ao ecossistema.
De
todos os manguezais que apontei a leste da baía da Guanabara, destaco três para
o conhecimento de leigos, imprensa e cientistas: o Mangue de Pedra, em Búzios,
o mangue da lagoa do Açu e o mangue do Paraíba do Sul. O do Açu fica quase
inteiramente nos limites do município de Campos, com apenas uma parte mínima no
município de São João da Barra. O do Paraíba do Sul tem a maior parte dentro do
município de São Francisco de Itabapoana, com algumas manchas no município de
Campos dos Goytacazes.
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