ÁGUA

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 24 de outubro de 2020 
Água
Arthur Soffiati

Depois do ar, a água é o segundo elemento mais essencial aos organismos aeróbicos. Se eles não podem ficar mais que alguns minutos sem respirar, podem, contudo, passar alguns dias sem água. Quanto a nós, humanos, dizem os cientistas que podemos prescindir da água por cerca de 15 dias. Nunca fiz esta experiência. Nosso organismo é formado por três quartos de água, assim como o planeta Terra. Antes que emergissem os organismos aeróbicos, a água já existia. Ela é formada por dois gases existentes na atmosfera: hidrogênio e oxigênio. Um átomo de hidrogênio e dois de oxigênio. A água sempre evaporou, mas não se decompunha no ar nos dois elementos gasosos de modo a oferecer oxigênio livre para mudar a atmosfera. Supõe-se que o oxigênio livre na atmosfera, antes dos organismos aeróbicos, existisse na proporção de 1%, teor por demais reduzido para formar uma camada de ozônio que filtrasse a radiação ultravioleta. Foi nas profundezas das águas oceânicas, compostas por dois terços de oxigênio, que bactérias protegidas da radiação solar desenvolveram esse milagre (para nós) denominado fotossíntese: alimentar-se da radiação solar filtrada pelas águas oceânicas, absorvendo gás carbônico e liberando oxigênio. A atmosfera original mudou e a vida aeróbica prosperou. A vida anaeróbica se escondeu na escuridão até hoje. Nunca direi que as bactérias aeróbicas criaram um mundo perfeito, mas construíram uma atmosfera espetacular para a vida dependente do oxigênio. Esse gás, ao combinar-se com a radiação ultravioleta, forma a camada de ozônio, composta por três átomos de oxigênio, que filtra a própria radiação letal à vida aeróbica. As plantas aquáticas e terrestres são as herdeiras diretas das bactérias aeróbicas. Elas também realizam a troca gasosa. Absorvem gás carbônico e liberam oxigênio na maior parte do tempo. Gerações e mais gerações de animais alimentaram-se do oxigênio livre nas águas (peixes com guelras) e no ar (anfíbios, répteis, aves e mamíferos). Nós, como mamíferos, dependemos muito da água. Os primeiros grupos humanos, em sua maioria, criavam assentamentos próximos a fontes de água doce. Como nosso organismo não dessaliniza a água, podemos encontrar assentamentos humanos junto ao mar, em praias e ilhas, mas sempre com água doce por perto. As sociedades neolíticas precisavam muito da água para regar plantas cultivadas e rebanhos de animais domesticados. As civilizações tiveram de lidar com o excesso ou com a escassez de água. Os sumérios lidaram com o excesso e tiveram de drenar brejos para conquistar terras. Os egípcios, ao contrário, enfrentaram a escassez e tiveram de irrigar terras desérticas a partir do rio Nilo. De todas as civilizações, a que lida com a água de maneira destrutiva é a ocidental, cujas raízes estão fincadas na Europa. De lá, ela saiu para conquistar o mundo e impor sua visão de mundo. Na concepção ocidental, a natureza é (ou era) inesgotável. Marx, que fez uma crítica radical do capitalismo, sistema nascido no ocidente, considerava a água como bem abundante. Junto com o ar, a água não poderia ser capturada pelo capital. A água transformou-se em mercadoria de diversas formas. No geral, não se bebe ou não se deve beber água bruta. Ela deve ser tratada e distribuída por redes. Não se deve devolver água servida ao ambiente sem tratamento. As empresas que tratam a água e o esgoto lucram com esse bem outrora considerado abundante. Observam elas que a cobranças é sobre o tratamento, não sobre o bem. Mas a água transformou-se em mercadoria monopolizada ou não. A água é usada para irrigação dos grandes empreendimentos rurais, agora chamados de agronegócio. O uso da água é descomunal. Retirada pontualmente de rios, ela é lançada a locais muito distantes. Voltam ao lençol freático contaminadas por fertilizantes químicos e agrotóxicos. São dispersadas de tal forma que os mananciais originais se tornam escassos para o atendimento a uma necessidade básica de animais e humanos, também animais. E a água de rios e lagos não é mais pura como antes. A economia a contaminou com esgoto, lixo e produtos químicos. Seu tratamento está se tornando cada vez mais caro. Dois terços dos rios do mundo estão barrados para a geração de energia elétrica, reduzindo a vasão e dificultando ou impedindo a circulação necessária de seres vivos aquáticos. As transposições não só reduzem vasão como também estão favorecendo a penetração de sal na foz. No rio Tejo, o sal já alcançou 70 quilômetros rio acima. Na estação seca, o solo está se tornando mais árido a cada ano. A umidade relativa do ar está ficando mais aguda, favorecendo incêndios. A água dos mananciais, já poluída, está escasseando. Os racionamentos estão se tornando frequentes. A corrida pela água se agrava e mostra que a natureza tem limites não reconhecidos pela economia vigente.

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