LIXO DE RUA
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 16 de setembro de 2020
Lixo de
rua
Edgar
Vianna de Andrade
A
rigor, o título da crítica é o mesmo do filme dirigido por J. Michel Muro, em
1987, com roteiro de Roy Frumkes, nos Estados Unidos. Ele foi colocado na
prateleira do gênero “terror”, sempre carente de critérios. Na verdade,
trata-se de uma comédia cáustica ao estilo de “Feios, sujos e malvados”, do
genial Ettore Scola, lançado em 1976. Suspeito até que o filme de Scola
inspirou o de Muro, tais as semelhanças entre ambos. A questão é que o título
original do filme de Muro é “Street trash”. Talvez pelo título ele tenha sido
considerado um filme trash, que não é um gênero. Trash é uma palavra muito
ampla para caracterizar um gênero. Drama, comédia, suspense, terror podem
figurar na categoria trash. Da minha parte, tanto “Street trash” quanto “O pneu
assassino” poderiam ser exibidos no cineclube para discussão.
“Street
trash” é ambientado num ferro velho cujo dono é um homem extremamente obeso e
estuprador. Trabalha para ele uma descendente de japoneses sempre assediada. Os
carros deteriorados servem de abrigo a um contingente de pessoas
marginalizadas, desempregadas, miseráveis, sujas, inescrupulosas, bem ao estilo
de Scola. Em “Feios, sujos e malvados”, uma família miserável vive numa favela
italiana com muitos membros que se trapaceiam. Em “Street trash”, só há uma
relação de parentesco e nenhuma solidariedade entre aqueles que habitam um
mundo miserável.
Como
é comum, na favela do ferro velho, existe um chefe ou um valentão. Ele é um
veterano da guerra do Vietnã abandonado pelo mundo. Sua arma, segundo consta, é
uma faca feita com osso de um humano que ele matou. Uma prostituta muito
miserável é sua companheira indesejável. Nesse mundo de marginais em todos os
sentidos, há um espertalhão que tende a ocupar o papel de mocinho, como
acontece no cinema dos Estados Unidos. Ao lado do ferro velho, há locais de
prostituição, boates e comércio. O dono de uma pequena loja encontra um
abandonado engradado de bebidas e resolve colocá-las à venda sem saber do que
se trata.
Os
principais consumidores são os habitantes do ferro velho. O primeiro deles,
compra uma garrafa e prova seu conteúdo num banheiro imundo. Não é bebida
alcoólica, mas um solvente mortal. O corpo do homem derrete e é tragado pelo
vaso sanitário. Sua mão fica presa à corrente da descarga. Outras decomposições
ocorrem, levando a uma investigação policial. Como no Brasil, a distância entre
bandido e mocinho é mínima, quiçá inexistente. Todos matam e todos morrem. A
luta entre fracos e fortes gera momentos impagáveis. O obeso dono do ferro
velho explode como a Dona Redonda, de novela “Saramandaia”, do imaginativo Dias
Gomes. “Street trash” envereda também pelo surrealismo.
A
intenção do roteirista e do diretor é descortinar os submundos que existem nas
grandes cidades de países considerados ricos. Scola mostra uma favela de Roma.
Muro mostra outra em Nova Iorque. Em ambos, a intenção é retratar o ser humano
colocado em situação de miséria. Trapaça, violência, prostituição, estupro e
morte aparecem de forma crítica, mas ao mesmo tempo cômica. O final é
inteligente e recheado de humor. E o filme foi mais premiado do que se poderia
esperar de um “trash”.
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