VENDO MIRAGENS

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 17 de maio de 2020
Vendo miragens
Arthur Soffiati
            Com muita frequência, ouve-se falar em civilização, barbárie, modernidade, modernismo e outros tantos conceitos não devidamente explicitados. Vou me deter hoje no conceito de modernidade. Ele foi construído no mundo ocidental a partir do século XVII, com o avanço do laicismo sobre o espírito religioso. É difícil definir seu marco inicial. Há quem considere o Renascimento, na verdade, o início da idade de consolidação da civilização ocidental. Há que o situe em Descartes, no século XVII ou nas “Cartas sobre a tolerância”, de John Locke, iniciadas também no final do século XVII.
            O projeto da modernidade é grandioso e não representa uma ruptura profunda com a concepção judaico-cristã. Ele rompe com esta concepção e, ao mesmo tempo, a conserva. Segundo a visão de mundo judaico-cristã, a história começa num ponto inferior para avançar em forma de uma linha que vai engrossando em direção a um ponto superior e final. A linha não é necessariamente reta. Ela pode fazer curvas e volteios, mas a direção sempre visa o adiante e o alto até o ponto derradeiro. E esta trajetória é dirigida por uma entidade superior fora do processo histórico. É, portanto, uma concepção linear, ascendente, expansionista, finalista e teleológica. Em outras palavras, quem dirige o processo é Deus.
            A modernidade retira Deus do processo, caracterizando-se como laica, mas repõe outra força em seu lugar. Para Adam Smith, é a Mão invisível. Para Marx, a necessidade histórica. A dialética de Hegel, que não tinha um final definido, em Marx passa a ter a sociedade comunista. Assim, a modernidade construiu um grande relato, com propósitos definidos, ajudando a cada um se localizar e saber qual o seu papel na história. Aliás, mesmo sem saber, cada indivíduo e cada classe social cumpriam seu desiderato.
            As duas guerras mundiais, no século XX, abalaram a concepção de progresso contínuo rumo a um futuro promissor. Brechas foram abertas e por elas entraram novas ideias. A ocidentalização do mundo tornou as sociedades mais complexas e, ao mesmo tempo, mais vulneráveis. Novas questões emergiram. Os grandes relatos da modernidade começaram a ser contestados por um grupo de pensadores que se intitula pós-moderno. O filósofo Jean-François Lyotard sistematizou os princípios da pós-modernidade em seus livros, sobretudo em “A condição pós-moderna”. A história não tem mais um rumo pré-definido. Ela não caminha necessariamente visando o progresso. Os grandes relatos são substituídos pelos pequenos relatos, por uma visão fragmentada de mundo. Passam a ser notados novamente a vida religiosa, os movimentos nômades no interior das cidades, a arte praticada fora dos cânones dos grandes movimentos. Em vez do grande, o pequeno, sem rumos pré-definidos.
            Mas a modernidade resiste. Depois da Primeira Guerra Mundial, a modernidade se concretizou e se implantou na Rússia, na China e em outros países. O liberalismo se modificou e resistiu. Até diria que o fascismo e o nazismo são filhos bastardos da modernidade. Quando a caiu o muro de Berlim e a União Soviética se desfez, a modernidade não ruiu. Embora se tenha proclamado o fim da história, a modernidade entendeu que o liberalismo havia triunfado. Então, a modernidade continuava viva na versão de Adam Smith e confirmando seu postulado finalista.
            Em resumo, não encerramos a modernidade de todo nem ingressamos na pós-modernidade. O sufixo pós não indica conteúdo. Melhor seria entender a atualidade como supermodernidade, com propõe o antropólogo Marc Augé, ou como modernidade líquida, conforme Zygmunt Bauman.
            No meio da pandemia do Covid-19, o pensador pós-moderno Michel Maffesoli vê nela o fim melancólico da modernidade, assim como a epidemia do século II prenunciou a queda do Império Romano e como a peste negra anuncio o fim da Idade Média. As evidências do fim da modernidade para Maffesoli vêm aparecendo há bastante tempo. Ele agora fala do espírito das janelas em plena pandemia. As pessoas nas janelas expressam o emocional, a solidariedade, o espiritual. Na Idade Média, as janelas eram altas e largas. Com a modernidade, elas foram se reduzindo. A janela simboliza a abertura para o mundo. Embora ainda em dimensões concebidas pela modernidade, as janelas estão sendo usadas para a comunicação, para expressar um espírito anti-individualismo, antirracionalista, entieconomicista, antiprogressista. A tecnologia que afastava, que separava, que desencantava o mundo está dando lugar a uma tecnologia que junta, que aproxima e que reencanta o mundo. A pandemia é mortal, mas está contribuindo mais ainda para a demolição das estruturas da modernidade, para o fim de um paradigma arcaico e obsoleto. Maffesoli sempre foi um otimista. Sempre viu no desabrochar de uma flor ou no canto de um pássaro o prenúncio de uma nova era.
            Lido com a realidade e de forma realista, contando sempre com a imprevisibilidade e com a incerteza. Noto é que a modernidade afia suas garras durante a pandemia para voltar com mais agressividade depois que ela passar.

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