DEPOIS DA PANDEMIA


Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 31 de maio de 2020
Depois da pandemia
Arthur Soffiati
            Não se passa de uma estrutura econômico-social para outra em um ano. A trajetória humana não se divide em pré-história e história, com a invenção da escrita como marco divisório. A escrita não apareceu como milagre para promover a humanidade da situação de barbárie à de civilizada. A escrita é fruto de um processo de grandes transformações. O fim da antiguidade – nome impróprio – e o começo da idade média não se processou em um ano. A ordem antiga não terminou em 476, com a queda do último imperador romano, dando origem à idade média. Esta não acabou no último dia de 1453, ano em que os turcos otomanos tomaram a cidade de Constantinopla. A idade moderna não terminou em 1789, com a queda da Bastilha, data em que teria começado a idade contemporânea.
            Os livros didáticos ainda se valem dessas grandes divisões. Os cursos superiores de história ainda se estruturam de acordo com esses marcos sem se darem conta de que eles estão profundamente impregnados pela visão ocidental de mundo. Foi o ocidente que estruturou a história em fatias e a impôs ao mundo todo. Alguns autores de civilizações não-ocidentais, como o indiano K. N. Panikkar, por exemplo, refutam a periodização ocidental. Vários historiadores associados a chamada “world history” estão questionando a visão ocidental de história como válida para todas as civilizações.
            Quanto à periodização da história da Terra, existe um consenso mundial, embora ela também – a periodização – tenha suas raízes fincadas no ocidente. O mundo científico está de acordo a respeito da origem do Holoceno, período em que algumas sociedades paleolíticas se transformaram em neolíticas e somente algumas delas passaram à condição de civilização. Nos últimos dez mil anos, a humanidade escreveu a sua parte mais problemática da história. Nesse período, ela criou a cerâmica, o polimento da pedra, a tecelagem, a divisão social do trabalho, as cidades, a escrita, as poderosas armas de guerra, a energia oriunda do vapor, do petróleo, da fissão atômica, do avião, das naves espaciais, da televisão, da internet e de tantos outros artefatos. Impossível elencar todos aqui.
            Mas não há consenso quanto a um novo período denominado de Antropoceno, que sucederia o Holoceno. O quase consenso se dá em torno da crise global do Holoceno. Geralmente, as crises na história geológica do planeta não têm nome. Qual o nome da crise que marcou o fim do Paleozoico e o início do Mesozoico? E deste para o Cenozoico? Tomemos, pois, o Antropoceno como termo que indica a crise global do Holoceno.
            Um dos componentes dessa crise são as pandemias. No século XX, duas alcançaram o mundo todo: a gripe espanhola e a gripe asiática, embora outras viroses tenham atingido a humanidade, como a do HIV, por exemplo. O século XXI tem apenas 20 anos e já assistiu a duas pandemias pelo menos: a Sars e a Covid-19. Num mundo globalizado pela civilização ocidental e cada vez mais complexo, as fragilidades, as incertezas e as imprevisibilidades se acentuam. Não sabemos que outras pandemias vão assolar a humanidade, mas devemos contar com esse risco, sobretudo no momento em que vivemos a Sars-Cov-19.
            Livros, artigos, lives e podcasts lançados nesses tempos de pandemia revelam diversas esperanças de mudanças depois do seu término. Algumas parecem exageradas. Como vimos, não se passa de uma estrutura econômico-social para outra em um ano. Uma mudança profunda exige um século em média. A tentativa de tirar a Rússia de um capitalismo atrasado e colocá-la num socialismo avançado não deu certo. A crise econômica de 1929 propiciou um avanço no capitalismo com a estruturação do Estado de bem-estar social. Ele nunca alcançou plenitude no mundo, mas é uma proposta em que se deve investir.
            Contudo, ele sofreu um revés com o fim da União Soviética em 1991. Parece que o Estado de bem-estar foi uma resposta à ameaça comunista. No momento em que ela se enfraquece, o Estado de bem-estar começa a ser desmontado por ideias neoliberais. Não acredito que o capitalismo expire com a pandemia da Covid-19. Temo mesmo que ele se torne mais agressivo. Mas descortina-se a nossa frente a oportunidade de avanços. As ideias de Keynes, ampliadas agora de forma a contemplar a questão ambiental, poderiam ser retomadas. A pandemia mostrou a fragilidade do neoliberalismo. A humanidade revelou-se vulnerável a pandemias. Os sistemas de saúde mostraram-se incapazes de atender às demandas, mesmo em países considerados desenvolvidos. No Brasil, o SUS já estava sucateado e mostrou-se completamente insuficiente para enfrentar emergências. A maioria das pequenas iniciativas econômicas foram eliminadas. Outras mostraram-se promissoras, como as das favelas por exemplo. Seria oportuno que elas se fortalecessem depois da crise.
            Quanto ao ambiente, a pandemia fez mais que todas as conferências mundiais e todas as ações nacionais para melhorar a qualidade ambiental. Essa conquista bem que podia ser mantida e aprimorada.
           
           

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