CONCEITOS TRANSDISCIPLINARES
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 24 de maio de 2020
Conceitos transdisciplinares
Arthur Soffiati
Certos
conceitos oriundos das chamadas ciências naturais e sociais têm caráter
transdisciplinar, ou seja, podem transitar de um campo do conhecimento a outro,
como demonstrou Isabelle Stengers num estudo pouco conhecido entre nós (D’une science à l’autre: des concepts
nomades. Paris: Du Seuil, 1987).
O
emprego deles numa abordagem transdisciplinar não é ecletismo. Os cientistas
sociais, sobretudo, olham de través os pensadores que empregam conceitos de
vários campos do conhecimento por entenderem que eles são propriedade de cada
campo do saber. O raciocínio transdisciplinar cria um supercampo de
conhecimento em que ele se movimenta.
Modo de produção, dasafio-resposta,
estratégia e táticas, lugar e risco são conceitos eminentemente
transdisciplinares. Com exceção de modo de produção, proposto por Marx, os de
desafio-resposta empregado por Toynbee, estratégia e táticas, usado por Michel
de Certeau, lugar, do geógrafo Yi-fu Tuan, complexidade, de Edgar Morin, e risco,
do sociólogo Ulrich Beck, são conceitos que servem às ciências sociais e às
ciências naturais, podendo também viajar no tempo.
Toda sociedade humana vive num modo
de produção. As sociedades animais não. Mas todos os viventes respondem a
desafios impostos pela natureza ou pela sociedade, externa ou internamente, de
acordo com suas capacidades. Todos os seres vivos criam táticas, mesmo os mais
simples, para se movimentar dentro dos limites das estratégias impostas pelo
forte. Não apenas o ser humano cria lugares, ou seja, transforma o espaço de
acordo com suas necessidades. O próprio Tuan rabiscou algumas linhas sobre os
lugares criados pelos vivos não-humanos, mas não foi adiante. Sustento que não
há espaço vazio na Terra, seja nos oceanos, seja nos continentes, seja na
superfície, seja nas profundezas das fossas abissais. Pelo visto, na Lua e em
Marte não há lugar. Contudo, as pesquisas mais recentes suspeitam de seres
vivos no passado de Marte. Então, houve lugar por lá.
Morin diz que não há sistemas simples
e sistemas complexos. O que há é modo simples de abordar a complexidade. Numa
entrevista, o conhecido escritor judeu-italiano declarou: “Nós, todos os seres
humanos, somos animais que preferem as coisas simples. Mas as coisas não são
simples. São sempre complexas.” Entre animais e humanos, em todos os tempos,
existem riscos. As formigas são bastante organizadas em suas sociedades. A
saúva apresenta risco para as lavouras e as formigas de correição africanas e
amazonenses apresentam risco para o próprio corpo do ser humano. Contudo, elas
correm o risco de serem devoradas por tamanduás, além de outros riscos.
As sociedades paleolíticas eram
complexas, contudo menos complexas que as neolíticas e as civilizações. Todas
as três enfrentaram e enfrentam riscos provenientes do exterior e do próprio
interior. O ataque de animais e de outros grupos humanos representaram riscos
para grupos paleolíticos. Os riscos se tornam mais frequentes e mais intensos
quanto mais as sociedades se tornam mais complexas.
Dentro do modo de produção feudal,
nasceu o modo de produção capitalista, por vota do século XI. Nos primórdios,
existiam riscos que podiam inviabilizá-lo. Até mesmo riscos climáticos. Mas
havia também oportunidades para seu crescimento. A Peste Negra, no século XIV,
pode ter conduzido a um conservadorismo nos costumes e nas artes, mas
impulsionou a economia no século seguinte, levando à expansão marítima do mundo
europeu. A navegação oferecia vários riscos. Quanto mais as caravelas
circulavam, mais o risco de naufrágios. As epidemias que assolaram os povos
nativos da América e da Oceania levaram a eles o forte risco de contaminação e
morte.
O capitalismo foi se expandindo e
enfrentando riscos nesse processo. A guerra entre os países imperialistas era
um risco de grande magnitude, assim como a resistência de povos com economia forte,
como a China. As crises econômicas, as revoltas e revoluções, as reviravoltas
políticas ofereciam riscos à economia capitalista. Pelo entendimento de
Toynbee, cada problema enfrentado pelo capitalismo representou um desafio em
nível local, regional e mundial, como as duas grandes guerras. Para Edgar
Morin, o sistema capitalista tornou-se cada vez mais complexo. Para Certeau, as
estratégias quase intransponíveis impostas pelos fortes levaram os fracos a
desenhar itinerários também complexos de sobrevivência.
Agora, o grande desafio, o grande
risco enfrentando pela hipercomplexa economia capitalista globalizada é a
grande pandemia causada pelo Covid-19. Não se podia prever com certeza que a
humanidade seria surpreendida por uma pandemia, mas ela não podia ser
descartada, assim como os efeitos mais profundos das mudanças climáticas e dos
regimes populistas reacionários. Num modo de produção como o capitalista em
fase de alta complexidade; nos lugares que ele cria, deve-se contar com a
imprevisibilidade e a incerteza, com desafios fortes e com riscos que podem
emergir do todos os cantos.
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