PALEOLÍTICO E NEOLÍTICO ENTRE OS RIOS MACAÉ E ITAPEMIRIM
Paleolítico e neolítico entre os
rios Macaé e Itapemirim
Arthur Soffiati
Paleolítico
no velho mundo
Aprendemos
nos livros didáticos que a humanidade viveu a maior parte da sua história no
paleolítico. Considerando apenas o “Homo sapiens”, a mais nova espécie
hominídea, teríamos vivido no paleolítico durante cerca de 200.000 anos. Se
remontarmos ao nosso ancestral imediato, “Homo neanderthalensis”, recuaríamos a
pelo menos 800.000 anos. Os primeiros sepultamentos estão associados a essa espécie,
sinal de que o neandertal já acreditava em algo mais para além do mundo
terreno. Recuando ainda mais, até o “Homo erectus”, a história hominídea teria
1.000.000 de anos, pois as técnicas de produção do fogo foram criadas por ele.
A produção do fogo representou uma revolução técnica de grande alcance. Nem
mesmo os mais avançados primatas, como chimpanzés, bonobos e gorilas, conseguem
produzir fogo. Num mergulho ainda maior, alcançaremos o “Homo habilis”, há 1.450.000
de anos, a primeira espécie hominídea a usar ferramentas.
O
entendimento que se tem hoje do “Homo sapiens”, a espécie da qual fazemos
parte, é o de que ele carrega em seu genoma uma mistura de sapiens, neandertal
e Homo de Denisova, do qual só conhecemos o osso do dedo, dois dentes, um osso
do pé e uma queixada. Com esse material, foi possível obter informações
genéticas que estão presentes no sapiens. Além do mais, espécies paralelas,
como o “Homo floresiensis” e o
provisoriamente batizado “Homo
luzonensis”, ambas
as espécies com
pés adaptados à vida arborícula ou
semiarborícola. E no código genético do sapiens foi encontrado agora o fantasma
de uma espécie cujos restos materiais não foram identificados.
Os especialistas
dividem o paleolítico em três fases: inferior, médio e superior. A história
humana começa com o uso ou a fabricação de ferramentas rústicas a partir da
madeira, do osso, da pedra e de outros materiais, passando pela produção do
fogo, da sepultura e da arte. Como a pedra é o material mais resistente, foram
as ferramentas fabricadas com ela as que mais resistiram à ação do tempo. Daí,
o nome de paleolítico, que significa “pedra antiga”. Nesse longo período de, no
máximo 1.450.000 anos, por enquanto, os grupos sociais só conseguiram
desenvolver a técnica de lascar a pedra, não de poli-la. Como eles só sabiam
obter alimentos já produzidos pela natureza, seu modo de vida era nômade, pois
era preciso colher, pescar e caçar, atividades que exigem movimento. Em resumo,
o paleolítico é entendido como o maior período da história da humanidade em que
os grupos sociais eram nômades pela necessidade de procurar alimento.
Obtenção de alimento na naturez e nomadismo, eis
a síntese que chegou até nós. A humanidade viveu a maior parte da sua história
distribuída em pequenos grupos sociais que coletavam, pescavam e caçavam, tendo
que, para isso, deslocar-se com bastante frequência. Foi o que as pequisas no
hemisfério norte nos ensinaram sobre o paleolítico.
Arte do paleolítico no hemisfério norte
Neolitico no velho mundo
O
paleolítico desenrolou-se durante a época geológica do Pleistoceno, marcada por
glaciações e períodos integrlaciais. Foram quatro glaciações. Tanto elas quanto
os períodos integlaciais representaram desafios aos hominídeos. Estamos vivendo
o quarto período integlacial. O fim da última glaciação, há 11.700 anos,
representou um desafio para o “Homo sapiens”, vivendo até então em grupos
paleolíticos. Parece que seu cérebro já havia desenvolvido complexidade
suficiente para dar respostas mais complexas que aquelas dadas nos quatro
períodos glaciais e três interglaciais. Agora, alguns grupos paleolíticos
enfrentaram o novo aquecimento global natural domesticando plantas e animais e
inventando, assim, a agricultura e o pastoreio. As sociedades que deram essa
resposta criativa puderam adotar vida sedentária, pois o alimento era cultivado
em lugares fixos, onde foram erguidas aldeias.
Gráfico
do Holoceno, época de aceleração das culturas humanas
A sedentarização permitida pela
agricultura e pelo pastoreio foi o primeiro passo para a divisão territorial e
social do trabalho, ao lado da divisão sexual e técnica, que já existia. Com a
sedentarização, foi possível dispor de tempo para inventar a cestaria, a
cerâmica (que se supõe derivar de cestas cobertas de argila), a tecelagem, a
metalurgia, a roda etc. Esse novo tipo de sociedade podia se deslocar depois de
esgotado o solo, em busca de terras virgens a fim de novamente aproveitá-las
para cultivo e pastagem.
A base das primeiras civilizações,
que floresceram na Mesopotâmia e no baixo rio Nilo, situa-se nas sociedades
neolíticas. Nem todas elas desembocaram em civilizações, assim como nem todas
as sociedades paleolíticas tornaram-se neolíticas. Ainda hoje, encontramos
sociedades paleolíticas, sendo a mais pura aquela que tem por base territorial
a ilha Sentinela Norte, no litoral indiano. Existem ainda algumas na Amazônia,
assim como algumas neolíticas não avançaram para a condição de civilizações.
Cerâmica
neolítica no hemisfério norte
Entretanto, com a globalização do
mundo pela civilização ocidental nos últimos 600 anos, parece que os
remanescentes paleolíticos e neolíticos estão fadados ao desaparecimento.
Paleolítico americano
As Américas do Norte e do Sul foram
os últimos continentes colonizados pelos hominídoeos. Eles chegaram na forma de
“Homo sapiens”, embora, recentemente, tenha-se aventado a possibilidade de o “Homo
neandethalensis” ter alcançado terras americanas primeiramente. As hipóteses
sobre a migração do sapiens para América são diversas. Há quem sustente que ele
proveio da Polinésia navegando o oceano Pacífico, assim como polinésios
chegaram à Ilha de Páscoa. Há quem suponha sua vinda pelo norte da Ásia em
navegação de cabotagem no mar de Bering. Um crânio feminino, que recebeu o nome
de Luzia, sugere que negroides também tenham chegado à América.
Arte
paleolítica – Serra da Capivara – Brasil
Contudo, a tese mais aceita, porque
mais documentada, é a de que levas de asiáticos tenham atravessado a ponte que
ligava a Ásia à América no estreito de Bering no final da última glaciação. Com
a elevação do nível do mar no início do Holoceno, ou época atual, Ásia e
America ficaram separadas pelo oceano Pacífico. A migração teria ocorrido antes
do afagoamento dessa ponte natural.
Seja qual for a procedência, talvez
até várias, os grupos que chegaram à América viviam em economia paleolitica. O
nomadismo dos grupos paleolíticos pode explicar a migração em massa à procura
de alimentos em solo virgem. Na América do norte, o clima se assemelhava ao
clima euroasiático. Supõe-se que o modo de vida nas novas terras tenha se
assemelhado ao da Europa e Ásia. Mas, quanto à América do Sul, o clima
tropical, excessivamente úmido, pode ter favorecido um paleolítico com poucos
deslocamentos, dada a fartura de alimentos. Como as sociedades paleolíticas
viviam de uma economia extrativista e de subsistência, os recursos fornecidos
pela natureza superavam as necessidades humanas. A vida nos trópicos era bem
mais farta que no círculo polar ártico. Os deslocamentos de grupos paleolíticos
da Amazônia eram bem menores que o dos povos do deserto de Atacama.
Neolítico americano
Com o instigante título “Não
existe neolítico ao sul do Equador: as primeiras cerâmicas amazônicas e sua
falta de relação com a agricultura”, Eduardo Góes Neves sugere a não existência
de um neolítico na América do Sul por não estar a agricultura necessariamente
associada à cerâmica. Ele sustenta que a agricultura na América meridional não
foi tão importante como na Eurásia e que “não há uma correlação observada entre
a domesticação de plantas e o início da produção cerâmica no novo mundo (...) É
plausível supor que no Novo Mundo não houve pressões adaptativas para uma
adoção rápida da agricultura, mesmo com um quadro de domesticação antiga de
plantas, do mesmo modo que houve pouquíssima pressão para a domesticação de
animais.”
A autor parece preso ainda aos modelos europeus. Pesquisadores com reflexão
sobre descobertas recentes e antigas estão caminhando na direção de construir
modelos de neolítico e de civilização para a América do Sul, pelo menos.
Deve-se considerar, primeiramente, que o aquecimento
natural do planeta, a partir de 11.700 anos antes do presente, foi muito mais
acentuado no norte do Equador que no sul. Daí a resposta ao desafio
representado pelas novas condições climáticas ter sido mais intensa no
hemisfério norte. No sul, as florestas existentes recuaram e foram substituídas
por savanas, estepes e desertos. As mudanças ambientais no hemisfério sul não
foram tão fortes como no hemisfério norte.
Cerâmica de Santarém, Brasil –
neolítico avançado da América
A flora e a fauna
mudaram com o novo clima. Não tanto, porém. Algumas espécies foram domesticadas
para complementar o que os ecossistemas nativos forneciam. Ainda assim,
agricultura e pastoreio foram inventados, abaixo do Equador, na América do Sul,
na África e na Oceania. Pesquisas recentes na Amazônia vêm demonstrando que a
floresta atendia às necessidades alimentares e de matéria prima de uma grande
população, estimada em 10 milhões de pessoas. Técnicas avançadas de manejo
florestal mostram que os povos amazônicos construíram sociedades que viviam em
estado de equilíbrio com a floresta.
A relação direta
entre agricultura e cerâmica, como notou Eduardo Góes Neves, de fato não
existiu. Há grupos que desenvolveram técnicas de fabricação cerâmica sem
necessariamente promover um desenvolvimento de igual natureza e intensidade na
agricultura ou no pastoreio.
No entanto, naquelas
sociedades que alcançaram a complexidade do que se entende por civilização, a
agricultura está presente como atividade básica. O milho foi domesticado na
Mesoamérica, na região do rio Balsas, em torno de 7000 anos, espalhando-se
rapidamente por todo o continente até a costa do atual Uruguai. Nos Andes, onde
os ecossistemas eram menos abundantes que os da floresta, a necessidade da
agricultura parece ter se imposto com a domesticação de grande variedade de
batata, do tomate e das abóboras. As plantas com maior dispersão no continente foram
o milho e o tabaco. A conclusão de Neves é a de que agricultura e cerâmica não
estão tão relacionadas na América como estão na Eurásia.
Resumindo, a
agricultura, na América, é mais antiga do que se supunha. Novas descobertas
arqueológicas mostram que ela não teve relevância apenas nos polos andino, maia
e mexicano e em áreas adjacentes. Ela também foi pujante na Amazônia, num
sistema que associava manejo florestal e produção agrícola, sobretudo na
confluência da Amazônia com o Cerrado. A diversidade de plantas domesticadas
foi maior que o imaginado. Lembremos o milho, o cacau, o tabaco, o tomate, as
batatas, as abóboras, a mandioca etc. O pastoreio não teve muita relevância
talvez por grande parte da fauna nativa ser recalcitrante à domesticação. As
que se deixaram domesticar foram poucas, como o lhama, a alpaca e o peru.
A produção cerâmica
foi pujante em quase toda extensão do Novo Mundo. As áreas mais significativas
são a América do Norte, do sul dos Estados Unidos à América Andina e amazônica,
passando pela América Central. Mas a cerâmica se estendeu por uma área bem mais
ampla do território americano. Deve-se afastar o acaso e o diletantismo
estruturais para explicar a origem da agricultura, do pastoreio e da cerâmica
na América. Se agricultura e cerâmica americanas não aparentam relações
estreitas, como na Eurásia, é temerário pensar que ambas nasceram por diletantismo
dos povos americanos. Elas têm relação com o neolítico nas Américas, que
apresenta características singulares. Abaixo do Equador, não houve um
resfriamento rápido e intenso como acima dessa linha. As florestas e outros
ecossistemas compensaram a agricultura com recursos naturais.
Enfim, é preciso
construir um modelo de neolítico e de civilização para a América do Sul. Em
princípio, defendemos que a cerâmica é o principal elemento distintivo desse
modelo. Havendo o conhecimento de técnicas de produção de artefatos cerâmicos,
podemos dizer que a sociedade está no estágio neolítico sul-americano, ainda
que a agricultura seja conhecida e não praticada, já que compensada pelos
recursos naturais fornecidos pelos ecossistemas nativos. As novas descobertas
na Amazônia – terra preta produzida para o desenvolvimento de agrossistemas
florestais, valas, paliçadas e a variedade cerâmica (algumas pressupondo
especialização), concluo pelo desenvolvimento de sociedades neolíticas
avançadas em vez de uma grande e difusa civilização.
Quanto às
civilizações americanas, cabe também criar um modelo próprio. Os três polos em
que elas se desenvolveram – Andes, península de Iucatã e meseta mesoamericana –
revelam a cerâmica e a agricultura intimamente relacionadas, como se uma não
pudesse existir sem a outra. Mas precisamos considerar as questões do
pastoreio, da escrita e das invenções, como a roda, por exemplo. Por outro
lado, cabe notar que as técnicas de construção alcançaram níveis superiores ao
das civilizações da Afroeurásia. Mais uma razão para criarmos um modelo
americano de civilização.
Paleolítico
e neolítico na ecorregião de São Tomé
Até que um conceito ou uma noção nova se imponha, é
sempre necessária explicitação toda vez que é empregada. Podemos dispensar
explicação no que tange à noção de Estado do Rio de Janeiro, mas Ecorregião de
São Tomé deve ser definida nos escritos que dela se valem. Uma ecorregião se
constitui de um espaço territorial com ecossistemas distintos, embora
relacionados, mesmo que de biomas diferentes. A Ecorregião de São Tomé não
respeita divisões administrativas. Ela se distingue na costa do Brasil por ser
um grande acréscimo continental entre os rios Macaé e Itapemirim em forma de
arco. Ao degrau representado pela zona serrana, a natureza acresceu uma área de
tabuleiros, datados do Terciário, uma planície aluvial debruada por planícies
de restinga, entre 120.000 e 2.500 anos. A ligação da zona serrana com as
terras baixas é feita pelos rios Macaé, sistema hídrico Ururaí, Paraíba do Sul,
Guaxindiba, Itabapoana e Itapemirim. Nessa área, três biomas se encontram: Mata
Atlântica, Costeiro e Plataforma Continental com ecossistemas dos três.
Mas
uma ecorregião não se limita apenas ao natural, senão que o cultural desempenha
papel importante. A Ecorregião de São Tomé foi parcialmente território do
grande grupo linguístico indígena macro-jê, com suas diversas línguas. Com a
chegada dos europeus, ela também de distinguiu do entorno por sua economia,
sociedade e cultura, com projetos políticos de emancipação em graus variados.
Há
vários estudos sobre os grupos indígenas que se fixaram na Ecorregião de São
Tomé. Os principais são “Considerações iniciais sobre o terceiro ano de
pesquisas no Estado do Rio de Janeiro” (1969) “Pesquisas arqueológicas no Norte
Fluminense: o sítio de Jurubatiba”, “Zoo-arqueologia: alguns resultados para a
pré-história da ilha de Santana”, “Notícias preliminares sobre o programa
arqueológico do Norte Fluminense”, “Estudos preliminar dos ritos funerários do
sítio do caju, RJ”, e “Pesquisas arqueológicas no sítio do Caju”, além de “Aldeamentos indígenas do Rio
de Janeiro”, que pretende empreender uma visão de conjunto. Citam-se somente aqueles
que nos permitem discutir uma possível distinção entre paleolítico e neolítico
na América do Sul, com destaque para a Ecorregião de São Tomé.
A
ocupação do território correspondente à ecorregião por povos nativos obedeceu
aos avanços e recuos da área continental (progradação e retrogradação), assim
como avanços e recuos do nível do mar (transgressão e regressão). Há 15 mil
anos antes do presente, a linha costeira em todo o planeta era mais avançada
que atualmente porque o nível do mar era mais baixo. Em grande volume, as águas
da Terra estavam encerradas em geleiras, dominantes no hemisfério norte.
Na
Ecorregião de São Tomé, a área continental era maior que a atual. O arquipélago
de Santa integrava essa área. Portanto, não eram ilhas. Vários grupos indígenas
ocupavam então esse vasto continente. A partir de 11.700 anos antes do
presente, a temperatura média global começou a elevar-se naturalmente. Entre
7.000 e 5.100 anos antes do presente, o mar começou a transgredir sobre a área
continental baixa, talvez seguindo o vale do Paraíba do Sul, e esbarrou nos
contrafortes da Serra do Mar, na altura do atual Itereré. Os grupos indígenas foram
abandonando as terras invadidas pelo mar e se deslocando para as terras mais
altas.
A
partir de 5.100 anos antes do presente, o mar começou a regredir. Os rios da
futura Ecorregião de São Tomé, com destaque para o Paraíba do Sul, o maior
entre eles, foram transportando sedimentos da zona serrana e dos tabuleiros,
formando a grande planície aluvial do Paraíba do Sul-sistema Ururaí e as
planícies menores dos vales do Macaé (Severina), Guaxindiba, Itabapoana e
Itapemirim. Novamente, os povos
indígenas foram acompanhando o avanço continental. A linha de costa se
estabilizou (sempre de forma provisória) por volta de 2.500 anos antes do
presente. A formações rochosas de Santana, de continente passaram a península e
a arquipélago com a elevação do nível do mar, voltando à condição de
arquipélago com o descenso do mar.
Há
1.260 anos antes do presente, com margem de erro de cerca de 330 anos, ou seja,
no século XI da era cristã, um grupo indígena instalou-se na ilha maior do
Arquipélago de Santana. Havia nela água doce em abundância. Ainda no século
XVI, navios europeus ancoravam ao seu redor para abastecerem-se de água sem
correr o risco de ataques indígenas na foz do rio Macaé, como informam Jean de
Léry e Gabriel Soares de Sousa.
Além
de água, esse povo encontrou alimento em abundância. Sua atividade principal
era a pesca. Até o venenosíssimo baiacu era preparado de modo a se tornar
comestível. Mas esse grupo também complementava a pesca com a coleta de
equinodermos, moluscos, crustáceos e outros invertebrados, e também com a caça
de quelônios, aves e mamíferos. As aves transformaram a ilha num ninhal. Além
se sua carne, os habitantes da ilha alimentavam-se também de seus ovos. Caçavam
igualmente pequenos mamíferos que habitavam a ilha e o continente,
eventualmente visitado pelos indígenas. O povo que habitou a ilha desconhecia a
cerâmica, usando como recipientes carapaças de moluscos e cascos de tartaruga.
Podemos considerar
seu modo de vida como paleolítico, já que não havia agricultura nem cerâmica.
Mas a fartura de alimentos dispensava o nomadismo, como não acontecia com os
grupos paleolíticos da Eurásia. A própria ilha inibia os deslocamentos
territoriais, havendo, no máximo, visitas eventuais ao continente. Esse grupo
pode ilustrar o modelo de paleolítico na América do Sul.
Examinando
os sítios do Caju e de Jurubatiba, concluiremos que havia assentamentos. No
sítio de Santana também havia. Contudo no Caju e em Jurubatiba encontraremos um
elemento ausente em Santana: a cerâmica. Esse elemento seria insuficiente para
caracterizar os dois grupos como neolíticos embora a agricultura (conhecida mas
não praticada), do pastoreio, da tecelagem, do polimento da pedra e da
metalurgia.
A
agricultura era conhecida, sobretudo a da mandioca, mas sofreu inibição diante
dos fartos recursos fornecidos pela natureza, como frutos, moluscos,
crustáceos, peixes, aves e mamíferos. O “Roteiro dos Sete Capitães” registra
essa fartura com admiração. Por que investir na agricultura se a natureza era
pródiga? Quanto ao pastoreio, além de não existirem animais facilmente
domesticáveis na Ecorregião de São Tomé, a coleta, a pesca e a caça compensavam
com vantagem a domesticação e a criação. A tecelagem era substituída por penas
tomadas de aves, além de ser desnecessária como proteção contra o frio em clima
tropical.
Cerâmica e enterramento no sítio
arqueológico do Caju – Campos dos Goytacazes. Foto: Instituto de Arqueologia
Brasileira
O
polimento da pedra não era comum nas planícies fluviais e marinhas da
ecorregião por uma razão muito simples: a inexistência de pedra como
matéria-prima. Contudo, ela existia em abundância na zona serrana da ecorregião
e era polida para vários usos. Observe-se que era um polimento de qualidade. A
metalurgia fica para os povos considerados civilizados, como os andinos, os
centro-americanos e os habitantes da meseta mexicana.
Assim,
sugere-se a construção de modelos adequados à América do Sul. Comportamentos
paleolíticos, que dispensam o nomadismo, e neolíticos, que não necessariamente
aliam cerâmica à agricultura nem adotam um modo de vida plenamente sedentário,
como os modelos euroasiáticos.
Sugere-se
também uma reflexão sobre os conceitos de história e pré-história. Sistemas de
escrita ainda continuam sendo utilizados para marcar o fim da pré-história e o
começo da história, como se eles não fossem produto da dinâmica interna das
sociedades. Nos grupos paleolíticos não havia escrita sistematizada, mas a
cultura material não deixa de ser uma forma de escrita que pode ser lida por
especialistas. Assim, existe um contínuo descontinuado nas sociedades que
derivam de sociedades paleolíticas e neolíticas, criando sistemas de escrita. É
o que nos ensina Henri Moniot. A sugestão é nomear as sociedades de acordo com
sua economia, organização interna e tecnologia. Exemplo: sociedades
paleolíticas, sociedades neolíticas e sociedades civilizadas, em lugar de
pré-história e história.
Cabe
ainda observar que a história não começa na civilização chinesa e hinduísta
quando a civilização ocidental as abalroa. Ela passa a ser contada de forma
diferente. A China e a Índia inserem o domínio ocidental como uma fase da sua história,
apesar de continuar a denominar as sociedades neolíticas e paleolíticas que as
antecedem de pré-história. Na América, este problema se acentua. Por mais que
se releve a história asteca, maia e inca, a história verdadeira vem embarcada
nas caravelas de Cristóvão Colombo. Todos os povos ágrafos são jogados para os
porões da pré-história escancaradamente. Os povos paleolíticos e neolíticos da
América tinham história. O ocidente, com sua expansão, também as abalroa. A
proposta é considerar o ocidente como um acréscimo a histórias existentes, não
jogá-las num saco.
Para saber mais
DIAS
JUNIOR, Ondemar F. Considerações iniciais sobre o terceiro ano de pesquisas no
Estado do Rio de Janeiro. “Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas
3-Resultados Preliminares do Terceiro Ano (1967-1968)”. Publicações Avulsas nº 13. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi,
1969.
DIAS,
Ondemar e NETO, Jandira. “Pesquisas arqueológicas no sítio do Caju”. Campos dos
Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2014.
FREIRE,
José Ribamar Bessa e MALHEIROS, Márcia Fernanda. “Aldeamentos indígenas do Rio
de Janeiro”. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 1977.
GABRIEL,
Adelmo Henrique Daumas e LUZ, Margareth da (Orgs.); FREITAS, Carlos Roberto B.;
SANTOS, Fabiano Vilaça dos; KNAUS, Paulo; SOFFIATI, Arthur (notas explicativas)
e GOMES, Marcelo Abreu. “Roteiro dos Sete Capitães”. Macaé: Funemac Livros,
2012.
HEREDIA,
Raimundo Osvaldo; LIMA, Tania Andrade; e SILVA, Regina Coeli Pinheiro da.
“Pesquisas arqueológicas no norte fluminense: o sítio de Jurubatiba”. Arquivos
do Museu de História Natural vol. VI-VII. Belo Horizonte: Universidade Federal
de Minas Gerais, 1981-1982.
LÉRY, Jean de. “Viagem à terra do Brasil”. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 1961.
LIMA,
Tania Andrade e SILVA, Regina Coeli Pinheiro da. Zoo-arqueologia: alguns
resultados para a pré-história da Ilha de Santana. “Revista de Arqueologia 2
(2)”. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, jul/dez de 1984.
LOPES, Reinaldo José. “1499
- Brasil antes de Cabral”. Rio de Janeiro: Harper
Collins, 2017.
MACHADO,
Lilia Cheuiche; SENE, Glaucia Malerba; e RIBEIRO SILVA, Laura P. Estudo
preliminar dos ritos funerários do sítio do Caju, RJ. “Revista de Arqueologia” v. 8, 1. São Paulo: Sociedade de
Arqueologia Brasileira, 1994.
MONIOT, Henri. “A história dos povos sem história”.
In: LE GOFF, J. e NORA, P. (org.) “História: novos problemas”, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976.
NEVES,
Eduardo Góes Neves. Não existe neolítico ao sul do Equador: as primeiras
cerâmicas amazônicas e sua falta de relação com a agricultura. In: BARRETO,
Cristiana, LIMA, Helena Pinto e BETANCOURT, Carla Jaimes (org). “Cerâmicas
arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese”. Belém: IPHAN/Ministério da
Cultura, 2016.
SOUSA,
Gabriel Soares de. “Tratado descritivo
do Brasil em 1587”. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.
SOUZA,
Alfredo A. C. Mendonça de; LOTUFO, Cesar Augusto; SOUZA, Joel Coelho de e
SOUZA, Murilo Osmar Coelho de. Notícias preliminares sobre o programa arqueológico
do Norte Fluminense. Munda nº15. Coimbra:
Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, 1988.
Comentários
Postar um comentário