MODERNIDADE E MODERNISMO NO RIO DE JANEIRO NOS ANOS 20
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 26 de março de 2020
Modernidade e modernismo no Rio
de Janeiro nos anos 20
Arthur Soffiati
Há uma diferença entre modernidade e
modernismo. A modernidade começa na segunda fase da civilização ocidental,
considerando-se que a Idade Média não é uma fase intermediária entre o que se
denomina, erroneamente a meu ver, de Antiguidade. Assim, a Idade Média deve ser
vista como a idade primeira da civilização ocidental. A segunda fase começa no
século XV. Em termos culturais, é a fase do Renascimento, em que a modernidade
começa a se definir. Situemos Descartes, no século XVII, como o primeiro grande
moderno. O projeto dele foi separar natureza de humanidade, corpo de mente,
religião de filosofia. Ao mesmo tempo, ele transporta para seu pensamento laico
a concepção judaica de mundo: a história da humanidade é linear, ascendente,
expansionista e finalista. Trata-se de uma visão teleológica em direção ao
progresso.
Se, na civilização helênica, a
história não tem direção, no mundo ocidental, o cristianismo preconiza uma
visão de progresso, comandada por uma entidade exterior. No caso, Deus. Mas, se
Deus não é negado por Descartes, Ele é afastado para longe, deixando que os
humanos vivam a sua própria história. Essa marcha em direção ao progresso é
inevitável, queiram ou não queriam os homens, pois uma força externa ou interna
comanda o processo. Os iluministas, Hegel, Marx e, em certa medida, até mesmo
Darwin são animados por essa concepção laica do judaísmo sem se darem conta
dela.
Já os modernismos são movimentos
de atualização da modernidade. Na Europa e na América Latina, estamos
acostumados a tratar o modernismo como um movimento particular cujo início se
situaria em 1870 e alcançaria seu apogeu na década de 1920. No Brasil, particularmente,
é muito comum confundir modernismo com a Semana de Arte Moderna de 1922,
promovida em São Paulo. Ela só foi uma manifestação do modernismo. No Rio de
Janeiro, não houve um movimento pontual e específico que marcasse o modernismo,
bem como em Belo Horizonte. Apenas revistas modernistas assinalaram a intenção
de modernizar a modernidade.
Em 2019, o jornalista Ruy Castro
publicou o livro “Metrópole à beira-mar: o Rio moderno dos anos 20” (São Paulo:
Companhia das Letras). Sua intenção é demonstrar que o modernismo no Rio de
Janeiro se confundiu com a modernidade e se processou de forma difusa, sem um
movimento marcante, como a Semana de Arte Moderna. Ele mostra que São Paulo
ainda era uma cidade provinciana, extensão urbana de uma economia rural cafeeira,
enquanto que o Rio de Janeiro era a capital da República, uma cidade
cosmopolita que recebia jovens artistas do interior desejando desenvolvimento e
reconhecimento, assim como personalidades relacionadas à cultura em todas as
suas dimensões vindas do exterior com a intenção de visitar a cidade ou o país
ou de se fixar permanentemente nela.
O livro começa com a gripe
espanhola, em 1918, e termina com a revolução ou golpe de Getúlio Vargas, em
1930. O livro tem duas qualidades indiscutíveis: escrita fluente e cativante e
muita pesquisa. Ruy discorre com detalhes sobre jornais, revistas,
personalidades políticas, poetas, romancistas, músicos, cinemas. Enfim, sobre o
cotidiano do Rio de Janeiro na década de 1920.
Mas escrita fluente e pesquisa
exaustiva apenas não bastam. É preciso saber avaliar e sopesar. Com relação à
Semana de Arte Moderna, de São Paulo, Ruy simplifica a realidade. Insinua,
embora não afirme categoricamente, que o papel de Di Cavalcanti, um carioca
morando em São Paulo, foi fundamental. Anita Malfatti teria se encorajado a
expor seus quadros por Di, recebendo uma crítica conservadora feroz do paulista
Monteiro Lobato. A exposição não teria sido devidamente reconhecida pelos
jovens intelectuais que promoveriam a Semana. Fica também a insinuação de que
Di Cavalcanti foi a grande personalidade do evento modernista, que expressaria
o interesse dos barões do café de forma explícita. Entendo essa interpretação
como simplificação da realidade.
Ele enfatiza também a reverência
que os jovens intelectuais paulistas tinham por Graça Aranha, um escritor
oportunista que se valeu da Semana para ressuscitar ou ganhar sobrevida. Ele
menciona também a caravana dos jovens paulistas ao Rio de Janeiro para
prestigiar um discurso de Graça Aranha na Academia Brasileira de Letras
desancando a instituição, que teve resposta com manifestação contrária liderada
por Coelho Netto. Graça Aranha sempre foi considerado um intruso pelos os
jovens modernistas de São Paulo. Pelo prestígio conquistado como escritor, os
jovens não sabiam o que fazer com ele. O certo é que Graça não era bem quisto
pelos modernistas. Que sejam lidas as cartas trocadas entre Carlos Drummond de
Andrade e Ribeiro Couto. Nos bastidores Ribeiro Couto aniquilava com Graça e
considerava Mário de Andrade o espírito animador da Semana. Por sua vez, Mário
não se entendia bem com Ribeiro Couto pelo caminho seguido dentro do
modernismo.
Mostrar que a modernidade e um
certo modernismo animavam o Rio de Janeiro é o grande mérito do livro de Ruy
Castro. Comparar o Rio com São Paulo de forma competitiva é algo que não se
sustenta. Afinal, o modernismo paulista contou com escritores e artistas
cariocas. A participação deles foi buscada pelos jovens paulistas. A Semana de
Arte Moderna não foi, portanto, tentativa de São Paulo se mostrar superior ao
Rio, muito embora Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, em seus artigos
jornalísticos, entendessem que o Brasil devesse se curvar a São Paulo por ser a
cidade o centro do Brasil. Vejamos a figura de Mário de Andrade para perceber,
logo de início, que ele não negava a tradição e pensava no Brasil. Até mais: na
América Latina. A prova mais cabal é “Macunaíma”, de 1928.
A mim, pareceu desnecessário, no
livro de Ruy, tratar de fofocas, como casos extraconjugais de pessoas ilustres,
fatos pitorescos e tiradas jocosas e trocadilhos. Acaso alguém sabia do
bombardeio a toninhas de um navio brasileiro, na Primeira Guerra, julgando
tratar-se de um submarino alemão? Vem ao caso saber que o rei da Bélgica não
encontrou cama onde dormir no Palácio Guanabara por ser muito algo, tendo que
entrar em ação uma socialite? Seria necessário saber dos romances ocultos de
Washington Luís? Creio que sim e que não. Sim, se esses casos se inserirem numa
espécie de história serial que ilustra os costumes de uma época. Não, se se
tratarem de casos pitorescos, típicos de jornalismo escandaloso. Parece
desnecessário também observar que Luiz Teixeira de Barros, um senhor de 111
anos de idade presumivelmente, era simpático, mas aspergia perdigotos ao falar.
O livro está cheio dessas observações perfeitamente dispensáveis e frívolas.
É ilustrativo mencionar os nomes
de Julia Lopes de Almeida, Théo-Filho, Chrysantème, Benjamim Costallat, Gilka
Machado, Arthur Napoleão, Carmen Dolores, Paulo Barreto, Agrippino Grieco,
Andrade Muricy, Murillo Araujo, Rodolpho Machado, José Oiticica, Renato Vianna,
Harold Daltro, Rosalina Coelho Lisboa, Mercedes Dantas, Adelino Magalhães,
Carlos Maul, Alvaro e Eugenia Moreyra, Mario Pederneiras e uma lista infindável
de nomes. Entram nela também Lima Barreto, João do Rio, Olavo Bilac, Hermes
Fontes, Coelho Netto, Alberto Nepomuceno, Jayme Ovalle, José Marianno Filho,
Villa-Lobos, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho e muitos outros.
Julia Lopes de Almeida teve
presença marcante no seu tempo. Sua obra voltou agora com a reedição de alguns
livros seus. Ela estava em todas, fazia uma grossa sombra ao marido, também
escritor, e mantinha um salão que reunia intelectuais, damas da sociedade e
jornalistas onde se travavam discussões elevadas, trivialidades e intrigas. Gilka
Machado escandalizou o mundo literário quando lançou “Cristais partidos”, em
1915, seu primeiro livro de poesia com sua sensualidade e erotismo. Ruy observa
que Mário de Andrade anotou na margem do seu exemplar de leitura repúdio à
autora. Gilka foi uma poeta forte, pois, como mulher, desafiou o mundo dominado
por homens. Mas ela começou como simbolista e jamais alcançou o modernismo,
mesmo tendo avançado na sua poesia.
Na modernidade do Rio de
Janeiro, reinava muito ainda o parnasianismo e o simbolismo. Dos nomes citados
acima, a maioria era datada. Eles ficaram presos a sua época. Ruy Castro mostra
que Mario Pederneiras já usava o verso livre antes de seu xará Mário de
Andrade. Poucos lembram de Mario Pederneiras. Muitos lembram Mário de Andrade. Sustenta
que Jayme Ovalle foi um dos maiores poetas do Brasil. Ele deixou livros?
Nenhum. Ao menos publicou algum poema em revistas? Nenhum. Deixou escritos
póstumos? Nenhum. Então, como afirmar que ele foi um grande poeta? Pelas
tiradas poéticas contidas numa entrevista concedida a Vinícius de Moraes. É um
julgamento superficial.
Poucos conhecem a obra de Mário
Pederneiras e sabem quem foi Jayme Ovalle atualmente. Da infinidade de nomes
citados por Ruy Castro, poucos transcenderam sua época. Restaram Alberto
Nepomuceno, Lima Barreto, João do Rio, Manuel Bandeira, Villa-Lobos, Ronald de
Carvalho e poucos mais. Os outros morreram com seu tempo. Eram modernos? Sim.
Eram modernistas? Não. Tentaram formular uma interpretação do Brasil? Muito
poucos.
Mais um mérito para a obra de
Ruy, além da escrita fluente e da pesquisa exaustiva: ele faz uma boa crônica
jornalística do Rio de Janeiro nos anos de 1920, com destaque especial para a
música popular e para o teatro, áreas sabidamente do seu interesse. Escreve
muito pouco sobre cinema e nada sobre quadrinhos.
Vale a pena ler o livro. Mas com
ressalvas.
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