OS PENSADORES E A PANDEMIA
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 04 de novembro de 2020
Os
pensadores e a pandemia
Arthur
Soffiati
Pensador é uma categoria de
intelectual interessante. Ele não necessariamente pesquisa, investiga ou
consegue uma formação técnica como o médico ou o engenheiro, por exemplo. Ele
lê e pensa. Ou pensa e lê. Ou faz as duas coisas. Não que as outras pessoas não
leiam e pensem. Mas o pensador é alguém que se confunde com o filósofo. É
aquele especialista em assuntos gerais, buscando tratá-los com profundidade,
embora nem sempre consiga. Pensador e intelectual acabam se equivalendo.
Eles podem falar de cosmologia sem
serem astrônomos. Ou de geologia sem serem geólogos. De biologia sem serem
biólogos. De sociedades humanas sem serem sociólogos e historiadores. De
economia sem serem economistas. Claro que eles não abordam os objetos dessas
ciências com o embasamento daqueles que nelas são formados. Mas eles são
necessários por resistirem a um mundo que se especializa cada vez mais. Eles
funcionam como pontes entre os especialistas e o conjunto destes com o leigo,
muito embora não sejam muito felizes em falar simples. Há os que tentam uma
fala fácil e acabam se tornando pops. Há os que buscam popularidade falando
difícil para serem respeitados.
E os pensadores gostam de se
posicionar diante de questões que emergem, embora nem sempre revelem clareza.
Gostam de aparecer como aqueles que decifram a realidade e apontam caminhos.
Eles não gostam de reconhecer fraquezas. Não admitem que o mundo esteja cada
vez mais complexo e que não existe solução factível para ele. Eles não poderiam
silenciar diante da pandemia causada pela Covid-19. Nada de esperar a crise
passar, mas se posicionar quanto a ela no seu curso. Já que gosto e tento ser
um pensador, dediquei-me a ler as entrevistas e os livros que pensadores
publicaram durante a crise global, pois eu também quero publicar alguma
reflexão sobre ela.
Em ordem alfabética começo com Giorgio
Agamben, pensador italiano contemporâneo que se manifestou por um artigo e por
desculpas. Quando a pandemia chegou à Itália, os governos locais demoraram a
tomar medidas de isolamento físico e fechamento da economia. Agamben é um
filósofo de esquerda que zela por uma democracia absoluta. Ele entendeu que o
vírus não causava mais que uma gripe e que os governos estavam usando a
pandemia para intervir no Estado, criando uma situação de exceção. Depois,
redimiu-se. Todos nós erramos em nossas avaliações e nos engrandecemos em
reconhecer o erro. Mas a avaliação inicial de um pensador do nível de Agamben
foi muito primária. Não existe Estado, por mais democrático que seja, capaz de
enfrentar algum problema grave, como uma guerra ou uma epidemia, sem adotar
medidas de exceção em defesa da população.
Ele agora está prestes a lançar o
livro eletrônico “Reflexões sobre a peste” (São Paulo: Boitempo, 2020),
exagerando para o outro lado: a pandemia exacerbou o individualismo e está
levando as pessoas a pensarem somente em si de forma instintiva.
Outro pensador a se manifestar foi o judeu norte-americano
Noam Chomski. Publicou-se dele, no Brasil, o livro “Internacionalismo ou
extinção” (São Paulo: Planeta, 2020), lançado nos Estados Unidos em 2018.
Portanto, antes da pandemia. Mas, na edição brasileira, foi incluída uma
entrevista sua sobre a virose em que ele considera Trump um bufão que acredita
na ideia de que o destino do país e do mundo está em suas mãos. Ele identifica
três ameaças para o mundo: uma guerra nuclear, o aquecimento global e a
deterioração da democracia. E enfatiza que só a democracia é capaz de enfrentar
a pandemia, mas agora adotando-se uma mobilização de guerra. De longa data, Chomsky
arremete contra o capitalismo, o grande capital e a indústria farmacêutica.
Dois caminhos são divisados por ele. “As opções variam desde
a instalação de Estados extremamente brutais e autoritários, que buscarão
adotar uma forma ainda mais selvagem de neoliberalismo (o medo inicial de
Agamben. Observação minha), até a reconstrução radical da sociedade em termos
mais humanos, preocupada com necessidades humanas em detrimento do lucro
privado.” Da minha parte, não creio que a pandemia levará a um Estado mais
interessado no bem público.
Yuval Noah Harari, historiador judeu bastante conhecido
pelos livros “Homo Deus” e “Sapiens”, escreveu artigos e concedeu entrevistas
posicionando-se sobre a atual pandemia. Todos eles foram reunidos no livrinho
“Notas sobre a pandemia” (São Paulo: Companhia das Letras, 2020). Harari já
declarou ser um liberal. Isso não significa ser neoliberal. Ele é responsável
em suas posições. Doou os ganhos financeiros com a venda de seu livro no Brasil
ao combate à pandemia. Ele entende que, num momento crítico como este, a
humanidade deve deixar de lado o nacionalismo exacerbado e isolacionista para
adotar uma atitude internacionalista. Quanto a isto, ele é claro: “o
isolacionismo prolongado conduzirá ao colapso econômico sem oferecer nenhuma
proteção real contra doenças infecciosas.”
Sua percepção também mostra o perigo que representam os
contatos promíscuos da humanidade com a natureza: “A humanidade precisa vigiar
as fronteiras entre o mundo dos humanos e a esfera dos vírus. Há, no planeta
Terra, uma abundância de vírus, e eles estão em constante evolução graças a
mutações genéticas.” Ao condenar posturas políticas irresponsáveis, parece que
o alvo é Donald Trump. Acrescenta que “estamos diante de duas escolhas. A
primeira se dá entre vigilância totalitária e empoderamento do cidadão; a
segunda, entre isolamento nacionalista e solidariedade global.” Ele é antipático
a posturas conformistas das pandemias anteriores, que encaravam a morte como
algo inevitável. Agora, a ciência se mostra muito avançada, não para impedir a
morte, mas para evitá-la sempre que possível.
No mais, ele insiste em dizer que crises sempre representam
oportunidades. Pensamento antigo. Para os chineses, o ideograma que representa
crise tem como componentes os ideogramas de oportunidade e risco. Em história,
não há mudança por escolha individual. As mudanças sempre ocorrem por decisões
coletivas. Mais por necessidade que por racionalidade. A pandemia é tanto uma
oportunidade de mudança quanto risco de se acentuar mais ainda as condições que
a propiciaram. Este aspecto não foi visto por Harari.
Era de se esperar que Bruno Latour se manifestasse sobre a
pandemia. Tardiamente, ele percebeu a gravidade da crise ambiental global da
atualidade. Ele cresceu no mundo da ciência, mas parece ser um oportunista na
questão ambiental porque é muito confuso em seus escritos e pretende ser uma
voz, senão a voz, de liderança. Seus conceitos são questionáveis, além de fazer
parte de um grupo do qual deseja ser expoente. No seu livro “Onde aterrar? Como
se orientar politicamente no Antropoceno” (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo,
2020). A questão central do livro é uma análise confusa da crise ambiental
atual que não convém discutir agora.
No final do livro, ele acrescentou um texto sobre a pandemia
com um questionário. Dirige-se, nas
perguntas, a um entrevistado neutro, esperando que as respostas dadas revelem
que todos desejam mudanças profundas nos rumos do mundo. Esse desejo de que
todos tenham a mesma resposta – a resposta do autor – revela imperdoável
ingenuidade de um pensador maduro e incensado pelos seus pares.
Michel Maffesoli é filósofo conhecido por proclamar o fim da
modernidade e o advento da pós-modernidade. O prefixo pós é sempre problemático
por não indicar conteúdo. Existe muita análise da modernidade. Ela é marcada
pelo paradigma mecanicista humanista. Esse paradigma está sendo contestado pelo
paradigma naturalista organicista contemporâneo, com base no avanço da ciência.
Não parece que a pós-modernidade de Maffesoli e outros se insira nesse novo
paradigma. A questão central da pós-modernidade é mostrar que os grandes
relatos explicativos e emancipatórios da modernidade se esgotaram. Vivemos
agora a era dos pequenos relatos, dos afetos, da amizade, dos movimentos de
curto prazo.
Maffesoli anunciou que estava prestes a lançar um novo
livro, mas dele conto apenas com uma entrevista. Nela, o autor observa que
pandemias como a atual eclodiram no final de sonoros momentos históricos. A peste
do século II marcou o fim do Império Romano.
A Peste Negra marcou o fim da Idade Média. A Gripe Espanhola assinalou o
fim da Europa como centro do mundo e a atual pandemia está contribuindo para um
mundo pós-moderno, em que haja solidariedade, pequenos gestos de afeto, como os
das pessoas que foram para as janelas aplaudir os médicos e executar músicas.
Devemos pensar muito sobre aqueles intelectuais que captam uma tendência
social, apegam-se a ela, acreditam que ela deve se aprofundar e a veem em toda
a sua volta ou eu lugares distantes. Tais acontecimentos da vida cotidiana são
vistos por outro pensador de maneira distinta, como sinais de algo distinto. Em
outras palavras, quem se apega a uma concepção, acredita que eventos simples
estão a endossá-la.
Não estranharei se o leitor que me conhece disser que seu
tendencioso com relação a Edgar Morin. Sim, de todos, considero-o o mais lúcido,
a despeito dos seus 99 anos. Não louvo a sua lucidez longeva por admirá-lo,
mas, ao contrário, admiro-o por ver nele um realismo esperançoso, algo que não
percebo nos outros. Em primeiro lugar, ele desconfia de si mesmo, das suas
avaliações. Em segundo lugar, ele desconfia de verdades. Estranha que
cientistas e médicos tenham certezas quando a ciência só é científica se
refutável. Foi o que ele manifestou numa entrevista e depois num debate
virtual. Sabemos pouco sobre o vírus. Estamos aprendendo sobre eles. Já erramos
bastante. O vírus tem se saído muito bem enquanto vírus. Sobretudo com a ajuda
de políticos confusos, incompetentes e negacionistas. Morin não alimenta
devaneios. Entende que a sociedade perfeita é aquela que mais atende a todos,
mas contém imperfeições.
Não é assim com o marxista esloveno Slavoj Žižek.
Ele foi dos primeiros a lançar um livro com suas reflexões a respeito da virose
no livro “Pandemia:
covid-19 e a reinvenção do comunismo” (São Paulo: Boitempo, 2020), que vai da
origem da infecção às transformações que gostaria de ver no mundo, talvez até
acreditando na sua emergência. Rejeita tanto o regime político chinês quanto o
governo de Donald Trump. Ele que, como bom comunista, apostou em Barak Obama
como um passo em direção a uma democracia marxista, deve ter se sentido muito
frustrado com a eleição de Trump. Vê, em certas medidas deste presidente,
atitudes de um governo intervencionista na economia. Na verdade, não se pode
esperar de nenhum governante mundial um gesto em direção a uma democracia
comunista. No máximo, o que se espera é o fracasso do neoliberalismo diante dos
problemas sociais e ambientais crescentes e o retorno de um Estado de Bem-Estar
social.
Por fim, comento o
livro “Deus e a pandemia” (Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020), do
teólogo protestante N. T. Wright. Ele não se pergunta sobre a origem do vírus e
sobre os desígnios de Deus. Será o vírus criatura de Deus? Será ele enviado por
Deus como castigo? Terá Deus o deixando passar como um sinal de que a
humanidade deve corrigir rumos. O autor se concentra em mostrar o que o cristão
deve fazer diante da pandemia recorrendo à Bíblia. Ele compara os cristãos aos estoicos.
Para estes, todo acontecimento está pré-programado para acontecer. Você não
pode mudar esse fato; apenas aprenda a se enquadrar nele. Com os epicuristas,
que “ofereciam um ponto de vista alternativo: tudo é aleatório. Você não pode
fazer nada a respeito. Procure se acomodar o máximo possível.” Com os
platônicos, para os quais “a vida atual é apenas uma sombra da realidade.
Coisas ruins acontecem aqui, mas estamos destinados a um mundo diferente.” Os
cristãos, por sua vez, tinham uma atitude ativa: ficavam entre os enfermos e os
ajudavam.
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