LITERATURA BRASILEIRA EM 2019 (IV): CONTOS, CRÔNICAS, CARTAS
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 28 de fevereiro de 2020
Literatura brasileira em 2019
(IV): contos, crônicas, cartas
Arthur Soffiati
Poucos foram os livros de contos e
de crônicas publicados em 2019. Destaco dois. Um deles é “A noite dos olhos”
(São Paulo: Companhia das Letras), de Heloisa Seixas. Jornalista experiente e
concorrente a vários prêmios, ela escreveu o denso romance “Agora e na hora”,
em 2017. No conto “Alexia”, de seu mais recente livro, ela flerta com Kafka de
“A metamorfose”. A diferença é que aquilo parecido com o absurdo torna-se
explicável. Já “Banhos árabes” transborda erotismo. Seria ele puro, excessivo
ou desnecessário? Trabalhar com a intimidade e o erotismo na literatura é
sempre temerário. O realismo e o naturalismo do século XIX escancaram o sexo.
Mário de Andrade, em seus contos, comenta, de forma metalinguística, os abusos
de uma literatura muito explícita quanto à sexualidade.
No conto “Sem mãos”, comenta que é
“quase indecente um velho se sentir tão feliz.” Nesse conto, o erotismo parece
meio estudado, meio lugar-comum. Em “A escuridão se espalha”, Heloisa escreve
sobre os apagões no Brasil. O conto me evocou a experiência que vivi quando
pré-adolescente com a explosão do depósito de explosivos de Gericinó. O conto
podia ser melhor trabalhado pela autora. Por fim, cabe observar que Heloisa não
manteve, em “A noite dos olhos”, a mesma voltagem ficcional de “Agora e na
hora”.
O segundo livro de contos a merecer
atenção é “A visita de João Gilberto aos Novos Baianos”, de Sérgio Rodrigues
(São Paulo: Companhia das Letras). Escritor experiente, já com vários títulos
de romances e contos, Rodrigues procede como Sérgio Sant’Anna, escolhendo o
título de um conto para nomear o livro. Aliás, Sérgio Sant’Anna tem, em sua
farta produção, o conhecido livro de contos “O concerto de João Gilberto no Rio
de Janeiro”.
Como num disco de vinil, Sérgio
Rodrigues agrupa seus contos em lado A e lado B, acrescentando o que ele
classifica como folhetim: “Jules Rimet, meu amor”. O conto que dá título ao
livro narra a famosa visita de João Gilberto aos Novos Baianos. Ele e seu
violão, trajando terno e gravata, destoando do grupo, mas, ao mesmo tempo,
integrando-se a ele com naturalidade. A narrativa é bastante livre.
Em “Conselhos literários
fundamentais”, o autor, mais uma vez, corre em raia semelhante ao seu xará
Sérgio Sant’Anna, tomando um texto de reflexão como conto. De volta a Mário de
Andrade, este escritor entendia como conto aquilo que seu autor enquadrava
neste gênero. Numa passagem professoral, Rodrigues escreve: “O escritor que não
reescreve o que acabou de escrever, mesmo que por pura mania, mesmo que para
deixar o texto indiscutivelmente pior, não merece ser chamado de escritor.
Será, no máximo, um excretor a sujar de palavras fisiológicas em estado bruto
um mundo que não precisa de sua contribuição para se assemelhar a um aterro
sanitário de símbolos.” O ponto alto do livro é o seu ponto final: “Jules
Rimet, meu amor”.
Um livro que não foi muito percebido
pela crítica, e nem fez tanto para obter esse merecimento, é “História de joia”
(São Paulo: Todavia), de Guilherme Gontijo Flores. O livro reúne contos curtos
sobre o cotidiano como se formassem um pequeno romance. O conto “O namorado”, ou
capítulo VI utiliza “raps” para efetuar a narrativa. Exemplo: “Tu vem marrenta
e aponta pra essa nojenta família que vem de longe naquela velha nau
Catarineta, vem me chamando de maneta, só porque é tataraneta de algum
caquético ranheta, fazendo crica de buceta com buceta”. Há textos sumários
sobre uma menina pensando, sobre intelectual politicamente incorreto, textos
com palavras abreviadas como as escritas nas redes sociais.
Em “Temperança”, ou décimo terceiro
capítulo, o autor faz uma longa e caótica lista de palavras não separadas por
vírgula. As listas são bastante apreciadas por Umberto Eco, que dedicou a elas
um ensaio. No capítulo XV, “O julgamento”, o autor descontrói uma notícia de
jornal, desmontando-a e remontando-a de forma polifônica e caótica.
O livro retrata a vida e a linguagem
da periferia pobre. Tem tudo para dar certo, mas não deu. O que faltou? Talento
ou reconhecimento da crítica?
Na crônica, o livro mais elogiado
foi “O corpo encantado das ruas”, de Luiz Antonio Simas (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira), já na sua 3ª edição. O autor, com mestrado em
história, professa o umbandismo e se inspira em João do Rio e Marques Rebelo.
Pelo menos, os admira.
Simas ama o Rio de Janeiro, as
cidades que lhe são periféricas e formam o grande Rio, seus subúrbios e suas
ruas. Mas o Rio de Janeiro de Simas não existe mais. Ele é um saudosista que se
refugia no passado, num passado que eu conheci muito bem por ter morado em Padre
Miguel entre 1956 e 1966. Esses dez anos permitiram-me conhecer as ruas, os
botecos, os terreiros de umbanda, os terrenos baldios (chamados de campinhos),
as crianças e adultos, notadamente os adultos considerados estranhos, os
segredos, os transportes, as brincadeiras infantis e tantos aspectos mais.
Muitos anos depois, voltei às ruas em que morei e as encontrei muito
transformadas. Simas aborda a favelização, a forte criminalidade, as redes
sociais usadas pelos pobres de forma muito superficial. É um Rio de Janeiro não
mais existente que lhe interessa, como se a cidade pouco tivesse mudado.
No recente livro “Lá no meu
quintal”, de Gabriela Romeu e Marlene Peret (São Paulo: Peirópolis, 2019), as
autoras afirmam que as brincadeiras infantis do passado, eminentemente
analógicas, refugiaram-se no interior do Brasil. Agora, predominam as
brincadeiras digitais, embora não de forma completa. Enfim, as crônicas de
Simas parecem emergir do passado.
Em 2019, os modernistas voltaram.
Aliás, eles estão sempre presentes, gostemos ou não. Parece que eles deixaram
uma obra inesgotável. A atual geração de escritores se perpetuará no futuro com
seus escritos ou hoje tudo se desmancha no ar?
Mário de Andrade está sempre
presente. Em 2019, Carlos Drummond de Andrade retornou duas vezes. A primeira
com a reunião de seus artigos sobre Machado de Assis, reunidos em “Amor nenhum
dispensa uma gota de ácido” (São Paulo: Três Estrelas). Tal era o desejo dos
modernistas em superar o passado que até Machado de Assis sofreu o desprezo
deles. Ao refutar a condição de futurista que Oswald de Andrade lhe dera, Mário
de Andrade, em famoso artigo, afirma não romper com a tradição e cita Machado
de Assis. Ele diz apenas que os tempos são outros e exigem uma literatura
condizente com a época.
Drummond não gostava de Machado de
Assis na juventude, talvez mais pela condição de mestre que o autor de “Dom Casmurro”
granjeara. Aos poucos, ele vai reconhecendo a grandeza do grande escritor
brasileiro e se rende às suas qualidades. A grande falha do livro é a falta de
referências ao fim de cada artigo. A organização de Hélio de Seixas Guimarães
não foi das mais felizes.
Drummond ainda retorna, em 2019, com
a correspondência trocada entre ele e Ribeiro Couto. Com correta organização de
Marcelo Bortoloti, a publicação da correspondência e documentos de apoio recebe
o crédito da Editora da Unesp e da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. É
sempre muito importante sublinhar que cartas redigidas à mão e à máquina de
escrever constituem uma parte fundamental do modernismo e da cultura
brasileira. Numa época em que a comunicação é feita pelas redes sociais de
maneira sucinta e efêmera, as cartas se parecem com monumentos egípcios pela
sua solidez. Drummond foi expulso de um colégio jesuíta, teve uma carreira
acadêmica medíocre, formando-se em Farmácia, profissão que nunca exerceu, e
enterrou-se em Itabira, sua cidade natal. Lá, foi professor de geografia. Por
mais que se correspondesse com os modernistas, sua avaliação sobre si mesmo não
era nada abonadora. Ele julgava que nunca sairia de uma cidade perdida no
interior onde o trem não chegava. De lá, ele retorna a Belo Horizonte como
jornalista. Em sua bagagem, ele já trazia vários poemas que figurarão em seu
primeiro livro, cuja publicação seria bancada pelo próprio autor. Em contato
com Gustavo Capanema, ele acabou no Rio de Janeiro e ocupou alto cargo no
Ministério da Educação.
Drummond foi comunista por um bom
tempo, mas sempre discreto. Gustavo Capanema era um direitista simpatizante.
Ribeiro Couto era promotor de justiça na pequena cidade de Pouso Alto, em Minas
Gerais. Creio que ele também nunca imaginou transferir-se para Portugal e se
tornar membro do corpo diplomático brasileiro. Por um bom tempo, Drummond e
Ribeiro Couto mantiveram uma distância obsequiosa por motivos ideológicos. Mais
Drummond que Ribeiro Couto, simpatizante do integralismo. A correspondência
recíproca permite comparar a polarização política dos 15 anos da era Vargas e o
período Bolsonaro. Por mais divergências que os jovens modernistas apresentassem,
havia camaradagem entre eles. Todos eram intelectuais. Nos anos 1930 (talvez um
pouco antes), houve um racha: uma parte se converteu ao comunismo e outra parte
ao integralismo. Vinícius de Moraes foi integralista e Carlos Lacerda foi
comunista. Poucos, como Mário de Andrade, mantiveram uma postura crítica, porém
independente. Outra observação é que a carta deve ser considerada um gênero
literário nas mãos dos modernistas. Elas trazem um proposital linguajar
coloquial, com erros estudados.
Por fim, cabe um registro ao livro
“Jovita Alves Feitosa”, do historiador José Murillo de Carvalho (São Paulo:
Chão). Mulher pobre do interior do Piauí, Jovita se alistou como soldado na
Guerra do Paraguai. Vestida de homem, como canta a tradição. Ela conseguiu
enganar os homens, mas não uma outra mulher que viu suas orelhas furadas para o
uso de brincos e a denunciou. Em depoimento à polícia, ela declarou que essa
mulher, “apalpando-lhe os peitos, apesar de sua oposição e de ter atados os
seios com uma cinta, a referida mulher pôde conhecer o seu sexo
imediatamente...” Mesmo assim, Jovita foi aclamada como heroína. Por onde passava
no caminho para o Rio de Janeiro, ela era homenageada. Sua coragem foi usada
como exemplo a ser seguido pelos homens. Mas Jovita não foi para a guerra. Os
militares não permitiram seu engajamento nem como enfermeira. Ela retornou a
sua terra por pouco tempo e acabou se fixando no Rio de Janeiro, onde se tornou
prostituta e se apaixonou por um inglês que se aproveitou dela e partiu. Jovita
se suicidou. Se ela não serve de exemplo, serve de lição.
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