NOVOS TEMPOS


Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 23 de fevereiro/01 de março de 2020
Novos tempos
Arthur Soffiati
            Quando acontece algum desastre humano ou natural, é muito comum que a primeira providência seja a promoção de uma palestra, de um debate, de um seminário ou algo parecido para tratar da questão. A criminalidade aumenta no Rio de Janeiro. Promovamos uma mesa redonda com antropólogos (eles têm entrado muito nessa área) e especialistas em segurança. A Amazônia está em chamas? Óleo de proveniência desconhecida chega às praias do Nordeste? Incêndios descomunais na Califórnia e na Austrália? Dilúvio em Belo Horizonte? Vamos discutir tudo isso num evento. E tudo acaba no próprio evento. As autoridades governamentais, os empresários e o povo logo esquecem até que algo semelhante volte a acontecer.
            No momento crítico, representantes do governo agem pontualmente, quando agem, e reparam o dano sem avaliar as causas dele. O povo exerce sua caridade para sentir-se mais aliviado. Fala-se muito em Deus. Se a pessoa sobrevive, foi Deus quem salvou. Se a pessoa morre, foi Deus quem quis. Cada um faz a sua parte, como se costuma falar, mas as partes não formam um todo. Os afetados agradecem a Deus e às pessoas caridosas que praticaram boas ações. Alguns reclamam pontualmente. Esse é também o momento dos desvios de verbas e de donativos porque os espertalhões sempre estão de plantão.
            Não nego a importância da ação imediata. Das previsões meteorológicas, da medição de réguas instaladas em rios, das providências para alojar desabrigados. Reclamo das providências que se reduzem a ações imediatas e que, passado o desastre, entenda-se que tudo voltou ao normal.
            A maioria da humanidade não percebeu que os tempos mudaram. Grande parte da elite política e econômica não quer sair de seu conforto para enfrentar as ameaças da nova era. Até mesmo na academia, encontramos relutância em admitir a gravidade das mudanças climáticas, por exemplo. E os problemas vão se acumulando enquanto levamos nossa vida como se não houvesse algo de novo.
            Há muito tempo, escolhi trilhar novos caminhos, mesmo que essa mudança de rumo não influencie ninguém. Acredito que a Terra é redonda pelos argumentos apresentados por Copérnico, Galileu e Newton. Os argumentos dos terraplanistas são indigentes. Acredito nas demonstrações de Darwin e do padre Mendel sobre a seleção natural e sobre as mutações genéticas. Acredito que as espécies evoluam. Melhor, que se transformem. O criacionismo e o desenho inteligente representam uma explicação mitológica. Acredito na teoria da relatividade, formulada por Einstein, e na grande explosão proposta pelo padre Georges Lemaître para a origem do universo. Acredito nas partículas subatômicas e na palavra dos astronautas que chegaram à Lua.
            Não senti necessidade de estudar cosmologia e astronomia para acreditar na esfericidade da Terra, na relatividade e na expansão do Universo. Não foi preciso estudar física quântica para acreditar nas partículas subatômicas. Não cursei biologia para repetir todas as experiências e vivências de Darwin e acreditar no evolucionismo. Não foi preciso eu colocar o pé na Lua para crer que astronautas pousaram nela. A maior parte do nosso conhecimento não provém de pesquisas próprias, mas de outros pesquisadores. Também não é necessário um conhecimento profundo de segunda mão para aceitar explicações científicas. Se fosse necessária formação específica para acreditar na esfericidade da Terra, na expansão do Universo, na transformação das espécies, na chegada de humanos à Lua, cada estudioso deveria cursar astronomia, física, geologia, biologia e ser astronauta.
               Valho-me da razão argumentativa para afirmar que acredito nas mudanças climáticas porque quase cem por cento dos estudiosos do clima, desenvolvendo pesquisas científicas, chegaram à conclusão de que está havendo um adensamento da camada formada por gases causadores do aquecimento do Terra. Essa camada é necessária para conservar calor no planeta. Mas seu adensamento por atividades humanas na terra, no mar e no ar, como queima de combustíveis fósseis, desmatamento, conversão crescente do solo em áreas agropecuárias e tantas outras atividades, aumenta mais ainda a temperatura e provoca alterações climáticas danosas à própria humanidade. Esse aquecimento se manifesta por chuvas diluviais, secas intensas, tempestades de vento cada vez mais virulentas, incêndios na vegetação, derretimento de geleiras, elevação e acidificação dos oceanos e tantos outros fenômenos.
            Acredito nos cientistas que trabalham na Organização Mundial de Meteorologia e no Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, ambos ligados à ONU. Acredito na Administração Oceânica e Atmosférica Nacional, dos Estados Unidos, e no Instituto de Nacional de Pesquisas Espaciais, do Brasil. Não sou negacionista, mas também não me aferro dogmaticamente à ciência. Exemplo: durante muito tempo, a interpretação de Alberto Ribeiro Lamego para a formação geológica da planície norte-fluminense vigorou por estar assentada em bases científicas. Mas outros geólogos, valendo-se de novos elementos desenvolvidos pela ciência, conceberam uma nova interpretação. Não se trata de lançar ao lixo a interpretação da Lamego. Ela foi formulada a partir dos elementos científicos de sua época. Sucede que a ciência está em constante movimento. Contando com a datação radiativa, novos elementos foram descobertos e uma nova concepção foi formulada.
            Não importa que membros dos meios científicos ainda se mostrem céticos em relação às mudanças climáticas. Este ceticismo leva à inação e à repetição de protocolos antigos. Existe conservadorismo na academia. Um pesquisador politicamente crítico pode adotar postura conservadora em relação ao conhecimento. A ação de um cientista cético não tem peso capaz de mudar a realidade. A população, em geral, pode acreditar ou não. Seu peso é mínimo. Atitudes capazes de transformação se manifestam em políticas públicas a serem colocadas em prática, pois a maioria vai para os escaninhos dos gabinetes. Mesmo que governos individualmente ou em conjunto coloquem em marcha políticas públicas de combate aos causadores das mudanças climáticas, não será possível, em curto e médio prazos, uma redução significativa dos gases responsáveis pelo efeito estufa. Querendo ou não, os governos são cativos da economia de mercado, do crescimento econômico capitalista, do Produto Interno Bruto.
            Mesmo que a ONU conseguisse reunir todos os seus membros numa ação coletiva e efetiva de combate ao aquecimento global, os efeitos seriam percebidos apenas na longa duração. Portanto, as ações coletivas para reduzir os gases do efeito estufa devem continuar, ainda que insuficientes. Ao mesmo tempo, enquanto se mira o céu, deve-se também mirar a terra. Para os cientistas, a coisa material é mais convincente do que o invisível. O sentido da visão, privilegiado por Descartes, continua dominante. Na terra, pode-se verificar que as áreas úmidas estão sendo drenadas, barradas, transpostas, assoreadas, poluídas, eutrofizadas. Pode-se verificar que os grande biomas e ecossistemas vegetais nativos estão sendo devastados. Pode-se verificar que a fauna nativa sofre um longo processo de extinção que já dura 600 anos. Pode-se verificar que a agropecuária intensiva avança sobre ecossistemas nativos com implementos mecânicos, insumos químicos e monoatividade. Pode-se verificar que, grande parte do espaço é ocupado por núcleos urbanos que impermeabilizam o solo, sepultam e contaminam rios, criam ilhas de calor, geram gases intensificadores do efeito estufa, tornam-se inviáveis quanto mais querem ser viáveis ao trânsito, produzem resíduos sólidos em volumes descomunais, desperdiçam alimentos e geram doenças.
            Fica menos difícil promover mudanças na terra que no céu. Mesmo assim, não podemos esperar mudanças de atitude para breve que transformem o que o ser humano coletivamente construiu na terra de maneira antiecológica. As copiosas chuvas que se precipitaram na região serrana do Estado do Rio de Janeiro, em 2011, e Minas Gerais e São Paulo, em 2020, revelaram que as cidades brasileiras estão despreparadas para as tempestades cada vez mais virulentas. Com todas as medidas preventivas tomadas nos Estados Unidos, os furacões evidenciam que as cidades não estão preparadas para a nova realidade climática do planeta.
            Os incêndios na Califórnia e na Austrália estão surpreendendo a população e os governos, que se mostram despreparados para enfrentá-los. As crises hídricas no Sudeste Brasileiro, na África e até na Europa estão castigando milhares e mesmo milhões de pessoas. É preciso mudar, mas é difícil mudar. A mudança é necessária porque chegamos a uma situação limite que leva alguns cientistas a sustentar que uma nova fase geológica está se iniciando. Ela até já foi batizada com o pomposo nome de Antropoceno. As transformações invocadas para justificar uma nova fase geológica existem. O discutível é que elas configurem um novo momento merecedor de nome na escala geológica. Estamos vivendo uma crise ou a crise do Holoceno, isso sim.
            Enfim, não se deve esperar que um evento sobre qualquer assunto resulte em mudanças profundas e imediatas. Um evento é como uma aula: informa e forma, podendo acarretar transformações da realidade ou não. Fui professor durante quarenta anos e me decepcionei com minha profissão por meus alunos esquecerem quase tudo, o mesmo tudo, que ensinei. Até mesmo por eles nunca terem aprendido nada. Ou por minhas exortações sobre a importância da história terem caído em ouvidos moucos. A culpa foi minha, inteiramente minha. Eu mesmo não percebia o sentido do que ensinava. Eu não sabia para que servia a história e acho que ainda não sei.
            Hoje, o conhecimento da vida das sociedades através dos tempos me ajuda a compreender em que ponto da trajetória humana nós estamos. Creio estar mais claro para mim em que contexto histórico vivemos e quais são as tendências atuais. Entre os otimistas – liberais ou socialista – existe a crença de que nunca vivemos num mundo tão bom porque não vivemos mais guerras como a Segunda Guerra Mundial. Pois eu percebo que vivemos duas guerras surdas em que morrem mais pessoas que numa guerra convencional: a guerra gerada pelas desigualdades sociais, algo nunca vivido pela humanidade na escala atual, e a guerra da humanidade contra a natureza, que já começa a motivar reações virulentas da natureza contra nós. E parece que não estamos interessados em selar paz com os pobres e com a natureza. Parece mesmo que estamos acirrando irresponsavelmente essas duas guerras a conta-gotas. Estarei enganado na minha avaliação?

Comentários

  1. Arthur, é muito simples. Administradores experientes sabem o que fazer para que as barreiras e dificuldades que você descreve, com muita razão, não fiquem "embarreirando" uma cidade, um estado, uma nação... PENSAR GLOBALMENTE e AGIR LOCALMENTE. Mas como estamos vivendo no Brasil, nas nossas cidades e em cada unidade da federação, não vamos muito longe... é cada um per si e NINGUÉM por todos pois se até o "Deus" de algumas igrejas e políticos está cuidando somente de grupos e "eleitos".

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    1. De plano acordo, amigo. Creio que escrevo só para mim. Talvez nem isso. O melhor seria não mais escrever. Para mim, talvez seja um vício.

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