A SATURAÇÃO DO RIO MACAÉ

 A saturação de Macaé

Arthur Soffiati

            Conheci Macaé em 1959. Eu tinha 12 anos. Meu pai queria pescar no rio São João. Ele adorava pescarias. Eu as detestava, como ainda hoje. Hospedamo-nos numa pensão pertencente ao dono de um posto de combustíveis em Barra de São João. O automóvel do meu pai era velho e problemático. A viagem do Rio de Janeiro a Barra de São João durou o dobro do tempo habitual. As estradas eram também precárias. Não existia o traçado atual da BR-101. Atravessava-se a baía de Guanabara em barca para veículos ou contornava-se a baía por Magé. Seguia-se para Araruama e daí para Macaé. A ponte sobre o rio São João ainda era a antiga, hoje em ruínas.

            Que eu me lembre, a estrada de Barra de São João a Macaé era de terra. Rio das Ostras limitava-se a uma colônia de pescadores. Fomos a Rio Dourado visitar a tia mais nova de minha mãe, que lá morava. Um dia, fomos a Macaé, uma cidade pequena e pacata, mas concentrada na margem direita do antigo rio dos Bagres, que, com o tempo, recebeu o nome de Macaé. Meu avô, militar, serviu no forte de Macaé na década de 1920, quando meu pai ainda era criança.

            Ao ver a lagoa de Imboacica, fiquei fascinado com seu espelho d’água. Ainda guardo na memória a imagem daquela lagoa livre de habitações em suas margens. Em 1959, eu desconhecia o secular e colossal desmatamento da bacia do Macaé desde o século XVII para a obtenção de lenha e de madeira ou simplesmente para a abertura de áreas destinadas a lavouras e a pastagens. O fogo foi o mais barato e eficiente instrumento para suprimir a floresta. Outra obra causadora de grande impacto ambiental foi a transposição do rio Macabu para o rio São Pedro, afluente do Macaé. Mas só fui saber dessas intervenções humanas na natureza muitos anos depois.

Nas décadas de 1960-70, o extinto Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) canalizou o baixo curso do rio Macaé e drenou o vasto brejo da Severina. Além de ser um ecossistema notável em biodiversidade, o brejo era área pública e retinha águas das chuvas, reduzindo transbordamentos na cidade. Uma vez drenado, ele foi privatizado e alterou profundamente o regime hídrico do rio. Esse canal criou a ilha Colônia Leocádia em sua foz, afetando profundamente um rico manguezal, que marca o limite sul de distribuição da espécie Avicennia germinans.

Canalização do rio Macaé sobre o leito original. Foto do DNOS

             Em 1970, deixei o Rio de Janeiro para passar um ano em Campos e acabei ficando lá até hoje. Minha mãe era campista. Nasceu em 1920, há um século, e acabou voltando para sua cidade natal com apoio de meu pai quando ele se aposentou. Em 1977, ajudei a fundar o Centro Norte Fluminense para a Conservação da Natureza e me tornei ativista da questão ambiental. Lembro claramente da vinda da Petrobras para a região norte fluminense.

            Travou-se uma grande discussão entre Campos e Macaé para sediar o porto da Petrobras. O prefeito de Campos promoveu uma manifestação em praça pública e apareceu com olheiras acentuadas como a indicar que estava preocupado e insone. Defendeu a vinda da Petrobras para Campos. Defendi a localização do porto na Lua. Sofri rejeição completa da população campista. Quando a Petrobras escolheu Macaé para seu porto, os campistas alegaram ingerência política, e não técnica.

            O porto se instalou para atender a extração de petróleo e gás natural da plataforma continental do norte fluminense, pois Alberto Ribeiro Lamego já havia escrito sobre a existência de combustíveis fósseis sob o mar. Na época, não existia ainda a exigência de estudos de impactos ambientais para a instalação de grandes e impactantes empreendimentos empresariais. A Petrobras simplesmente prometeu progresso e desenvolvimento para a cidade, sendo recebida de braços abertos pela população macaense como redentora do município e da região.

            Além das plataformas de exploração na bacia continental e do porto, a Petrobras impulsionou o crescimento de Macaé para a margem esquerda do rio e para o interior. Muitas pessoas de outros estados, atraídas pela vaga promessa de emprego, instalaram-se e Macaé. Não conseguindo vaga no marcado de trabalho, essa legião de migrantes se alojou na periferia da cidade em favelas, muitas delas em área de risco. A área mais afetada foram as margens do rio Macaé, onde grande parte do rico manguezal ali existente foi suprimido.

            Para sobreviver, essas pessoas tornaram-se mendigos, prostitutas, traficantes e violentas. Várias empresas instalaram-se em Macaé como prestadores de serviço da Petrobras. Mais uma vez, acreditou-se na oferta de oportunidades de emprego. Mas uma vez, migrantes de outras cidades e de outros estados incharam Macaé e se frustraram com as promessas de progresso.

            Depois de muitos dutos e instalações, a Petrobras declara que seu porto não mais comporta a demanda por atracação. Aparecem, então, anúncios de novos empreendimentos empresariais particulares, como um novo porto dentro do mar e usinas termelétricas. Quando conheci Macaé em 1959, certamente existiam ricos e pobres, mas essas desigualdades sociais não eram acentuadas nem dinâmicas. A Macaé de hoje está integrada ativamente ao contexto da globalização. Certa vez, encontrei um primo meu que mora na Alemanha na rodoviária da cidade.

            As condições de habitação, de emprego e sanitárias não acompanharam o crescimento da cidade. Os limites foram atingidos. Macaé tornou-se uma cidade saturada. A economia de mercado precisa reconhecer limites. Não se pode mais instalar grandes empreendimentos na periferia ou na malha urbana sob pena de agravar mais ainda os problemas ambientais e sociais.

          Desmatamento, canalização, exploração de petróleo e gás e muitas outras atividades provocaram impactos socioambientais cumulativos na cidade. Estudos mostram que a biodiversidade marinha diminuiu por causa da instalação de muitas plataformas de exploração. A tendência é comprometer mais ainda essa biodiversidade com a sofreguidão de extrair a última gota de petróleo e o último centímetro cúbico de gás natural com o Pré-Sal.

Mas quero chamar a atenção para outro aspecto que meus estudos sobre as Regiões dos Lagos e Norte Fluminense revelaram. Nada de novo, mas nem sempre devidamente percebido. No seu trecho final, o rio Macaé separa duas províncias geoambientais bem distintas. Na sua margem direita, a zona cristalina (pedregosa) confina com o mar. Há cerca de 15 mil anos antes do presente, o arquipélago de Santana integrava o continente. Só se separou dele com a elevação do nível do mar devido ao aquecimento planetário natural do Holoceno.


O rio Macaé como divisor de duas províncias geoambientais

            Entre sua margem esquerda e o rio Itapemirim, no Espirito Santo, as feições geológicas e ambientais mudam completamente. Nesse trecho costeiro, a Serra do Mar descreve um arco, tendo a sua frente um grande aterro com materiais distintos. Duas unidades de tabuleiros com idade estimada em 5 milhões de anos pelo menos. Na frente da unidade sul dos tabuleiros, formou-se uma restinga com idade de 120 mil anos entre o rio Macaé e a foz do atual canal da Flecha, conhecida como Barra do Furado. Grande parte dessa restinga está teoricamente protegida pelo Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba, instituído em fins da década de 1990.

            Entre as duas unidades de tabuleiros, formou-se a maior planície aluvial do estado do Rio de Janeiro. Na borda dessa planície, o trabalho associado do rio Paraíba do Sul e das correntes marinhas construiu também a maior restinga do Estado. Dei ao conjunto de terrenos entre a Serra do Mar e os rios Macaé e Itapemirim o nome de Ecorregião de São Tomé, em homenagem ao Cabo de São Tomé, protuberância que mais avança no mar e que fica no centro dessa linha costeira.

Ecorregião de São Tomé estilizada

            Além de saturada, Macaé satura também as regiões em ambas as margens suas. Na margem direita, a cidade de Macaé já se ligou fisicamente a Rio das Ostras, que sofreu um crescimento vertiginoso e desordenado, a Barra de São João, a Tamoios e Unamar, já entrando em Cabo Frio. Ocorreu nessa conurbação um processo acelerado e desordenado de crescimento urbano típico do Brasil: grande desigualdade social, destruição de ecossistemas, saturação urbana, falta de serviços públicos essenciais. A própria cidade de Macaé cresce aceleradamente em direção a BR-101, drenando e aterrando brejos com grande biodiversidade e responsáveis pelo equilíbrio do regime hídrico.

            No meio disso tudo isso, o rio Macaé chegou a seu limite, a despeito de qualquer licença para retirada extra de água pelo estado do Rio de Janeiro. Ele fornece água para o abastecimento público das cidades de Macaé e de Rio das Ostra e para a Petrobrás. Enfim, para todo o complexo urbano que se formou por efeito da Petrobras.

            Mais que os efeitos ambientais cumulativos, Macaé tornou-se o centro mais dinâmico do trecho costeiro entre Maricá e Marataízes. Os empreendimentos que vêm se instalando na cidade de Macaé e em ambas as margens do rio apresentam um efeito sinérgico sobre as pessoas e ambientais naturais. Não existe uma localidade na Região dos Lagos e nas Região Norte-Noroeste fluminense a salvo dos impactos causados por Macaé.

            O importante manguezal da inventada ilha Colônia Leocádia estertora com a ocupação urbana desordenada e com a poluição. A Petrobras instalou um heliporto em área adjacente ao sistema hídrico-lagunar do rio Iguaçu, no Farol de São Tomé, sacrificando importantes ecossistemas e estimulando o crescimento desordenado do local. Planejou um grande aeroporto na mesma área que, por enquanto, não foi adiante. O arquivamento do projeto se deu mais por razões econômicas da Petrobras que por resistência de ambientalistas. Se ele se concretizasse, inúmeros brejos e lagoas da região seriam soterrados. Quanto ao heliporto, não se sabe se ele será desativado por razões econômicas, deixando para trás irreparáveis estragos.   

            Pouco acima do Farol de São Tomé, instalou-se o megaempreendimento conhecido como Porto do Açu, inicialmente com a finalidade de escoar minério e ferro de Minas Gerais para exportação, mas também para atender as atividades da Petrobras. As obras do grande empreendimento foram altamente impactantes do ponto de vista socioambiental. Representantes dele, nas inúmeras audiências públicas, sustentaram que o Grupo X tinha um DNA confiável, sério, responsável e honesto. Os órgãos licenciadores não apenas aprovaram todos os empreendimentos, como o estado do Rio de Janeiro colocou à disposição do empresário Eike Batista os préstimos da Codin e de Polícia Militar, que, com o apoio do judiciário, expulsaram pequenos produtores rurais de suas terras e destruíram suas casas.

            Investigações efetuadas pela polícia revelaram que, por trás do DNA do Grupo X, havia muita corrupção, muita violência, muita negociata. Com tais revelações, o empresário Eike Batista e ex-governador Sérgio Cabral foram presos e condenados. Depois do escândalo do processo de licenciamento dos empreendimentos do Açu, como acreditar mais em promessas de empresários, governantes e empresas de consultoria? Em outras mãos, o Porto agora atua no apoio à Petrobras. É de se perguntar por que um novo porto em Macaé. Diante das unidades geradoras de energia no âmbito do Açu, é de se perguntar por que a construção de mais termelétricas em Macaé.

            Macaé está saturada. É preciso considerar que existem limites para atividades econômicas. Os de Macaé já foram atingidos há muito tempo.

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