RIO ICONHA NOVAMENTE
Rio Iconha novamente
Arthur Soffiati
Voltemos 200 ou 100 anos à bacia
do rio Iconha. Não é preciso mais que isso. Ele é um rio pequeno, com apenas 24
quilômetros de extensão. Sua nascente situa-se a 800 metros de altitude, o que
confere ao rio pequeno uma forte declividade. Isso significa águas sujeitas a
corredeiras. Sua bacia também é reduzida, com poucos afluentes e rede de
drenagem. Duzentos anos atrás, a bacia era coberta por florestas. Sua foz, no
mar, era revestida por pujante manguezal.
Havia chuvas torrenciais
extraordinárias na bacia? Sim, havia de tempos em tempos. É o que se chamava
antigamente de cheias seculares. Pressupunha-se um regime hídrico regular com
alterações para mais ou para menos de tempos em tempos. As florestas regulavam
o regime hídrico. Elas retinham água quando chovia, reduzindo as cheias, e
liberavam água para os rios da bacia no tempo das estiagens.
A primeira grande transformação
começou com o desmatamento para a obtenção de lenha e madeira. Ganhava-se
dinheiro pelos dois lados. Lenha e toras eram vendidas. As áreas abertas eram
cultivadas. Os franceses instalaram, em 1730, um farol na ilha que levou o nome
de Franceses, como várias outras no litoral brasileiro. Talvez já houvesse o
abastecimento de água na foz do Iconha e a exploração de madeira na costa. Ao
passar pela futura Piúma, em 1815, o príncipe naturalista Maximiliano de
Wied-Neuwied anotou no seu diário de viagem: "Passamos, perto de
Agá, pela povoação de Piúma, ou Ipiúma, onde um riacho do mesmo nome, navegável
apenas por canoas, deságua no mar. Existe, nesse lugar, uma ponte de madeira de
trezentos passos de comprimento, assentada no ponto de maior largura do riacho,
verdadeira raridade nessas paragens. As margens são cobertas de vegetação
densa, e a água escura, cor de café, como a maioria dos córregos de mata e dos
pequenos rios da região."
Iconha
vista do alto. Notar desmatamento em encostas
Em
1815, portanto, já existia o povoado que daria origem à cidade de Piúma atual. O
registro do príncipe confirma a tese, óbvia por sinal, de que a colonização
europeia do Brasil começou pela costa. Só no século XIX, ela alcançou o
interior, com exceção de Minas Gerais, alcançada um século antes. O inglês
Thomaz Dutton Jr., que fez fortuna com o Barão da Lagoa Dourada, em Campos dos
Goytacazes, requereu e ganhou terras no sul do Espírito Santo. Ele construiu um
trapiche em Piúma e se enriqueceu mais ainda exportando madeira nobre para a
Europa. As toras desciam em balsas conduzidas pelos índios puris, assim como
nos rios Pomba e Paraíba do Sul, como relata Hermann Burmeister, outro
viajante. Dutton trouxe sua família e colonos.
Os
portugueses José Gonçalves da Costa Beiriz e Antonio José Duarte formaram uma
firma que entrou em conflito judicial com o inglês Dutton e o venceram. Ambos
trouxeram famílias italianas para o local que daria origem à Iconha. Logo
libaneses chegaram ao lugar. A fundação do povoado de Iconha é atribuída aos
dois portugueses. Não ao inglês.
Quem examina
o vale do rio Iconha, nota que os pontos mais urbanizados são justamente Iconha
e Piúma. Esta segunda localidade foi elevada a município em 1891, desmembrada
de Anchieta, chamada na época de Benevente. Mas, em 1924, Piúma e Iconha passam
a formar um só município.
Examinando
um mapa da cidade de Iconha, nota-se como ela estrangulou o rio que lhe deu
nome. Não houve qualquer respeito às faixas marginais de proteção. Várias casas
estão debruçadas no pequeno rio. Esgoto doméstico e lixo são lançados em suas
águas. Na Europa, também ocorreu a urbanização intensiva das margens de rios. A
diferença é que, lá, a colonização é anterior à chegada dos europeus à América,
o regime fluvial não apresenta as mesmas características dos rios tropicais e o
descarte de desejos, punida com rigor, não pode ser feito nos rios.
Estragos causados pelas chuvas do verão de 2020 em
Iconha
Além de estrangulado
pela cidade de Iconha, o rio está entupido de lixo. As intensas chuvas que
caíram no sul do Espírito Santo, no verão de 2020, provocaram muitos estragos
em Iconha. Não simplificarei o problema causado pelas chuvas culpando o
desmatamento, o estreitamento do rio e a impermeabilização da cidade. O
problema é mais grave e mais complexo. As chuvas estão se tornando arrasadoras.
Elas estão surrando as cidades, que não estão preparadas para enfrentar a coça
impiedosa do clima. As cidades ergueram-se de forma irresponsável mesmo antes
das atuais mudanças climáticas. Basta ver os casos da cidade de São Paulo, que
estrangulou o rio Tietê e outros, e de Belo Horizonte, que transformou o rio
Arruda numa vala concretada.
Os
municípios contam com verbas para atenuar os impactos das enchentes, mas é
pouco. Torna-se mais insuficiente ainda com o agravamento do problema pelas
mudanças climáticas. E o pior é que essas verbas não são convertidas em obras
capazes de minorar os problemas. Assim, a destruição causada pelas chuvas gera
apenas reclamações imediatistas de moradores, a morte de pessoas e ações
paliativas da defesa civil e da população.
Em Piúma, o
problema não foi tão impactante, por estar a cidade na beira do mar e por ter o
poder público aberto um canal auxiliar no rio para escoamento das águas
fluviais. Do ponto de vista ambiental, não tenho condições de avaliar os
impactos desse canal. Piúma apenas recebeu o lixo e os móveis arrastados pelo
rio Iconha.
Enchente do rio Iconha em 30 de junho de 2020
Agora, de forma atípica, Iconha é
assolada por nova enchente, como noticiou “O Jornal” em matéria de Helio
Barboza publicada em 31.07.2020. Foram 175 mm de chuva em 10 horas. É muita
água, sobretudo em tempo de estiagem. Em nota oficial, a prefeitura explica que
promoveu a limpeza da rede de águas pluviais e que não desassoreou o rio Iconha
por falta de recursos. Contatos com o Estado e com a União já foram feitos
nesses tempos de pandemia. Antes de tudo, os governos das três instâncias da
federação devem tomar um banho de atualização e de realidade, considerando que:
1-
O Brasil, os estados e os municípios contribuíram para as mudanças climáticas
atuais em graus diferentes. Por enquanto, não é possível calcular a
contribuição de cada um em termos de emissões de gases do efeito estufa.
2-
Nenhuma das três instâncias reverterá as mudanças climáticas, que assumiram
caráter planetário. Só mesmo uma ação coletiva durante o século XXI poderá
reduzir o impacto de tais mudanças.
3-
Sendo assim, Brasil, estados e municípios devem se proteger da melhor maneira
possível contra as chuvas torrenciais e as secas devastadoras que se
transformarão no novo normal, como está na moda falar.
4-
Não cabem mais desmatamentos nos seis biomas existentes dentro das fronteiras
do Brasil nem acusar a Europa e os Estados Unidos de terem desmatado e
exterminado seus índios. Esse tempo já passou, e não cabe invocar o século XIX
para continuar com práticas reconhecidamente danosas para a Terra, com
demonstra a comunidade científica.
5-
Municípios e cidades construídos numa mesma bacia hídrica podem se consorciar
para a abertura de lagoas nas margens de rios que, por meio de comportas,
subtraiam água excessiva durante as chuvas que ameaçam transbordamentos por
meio de comportas reguladoras.
6-
As áreas ameaçadoras, como margens de rios, encostas e topos de morro devem ser
reflorestados em consonância com a vegetação nativa pré-existente porque ela
ajuda a regular o regime hídrico.
7-
Os leitos dos rios devem ser desassoreados, com a retirada de lixo e a
proibição de lançá-lo nos cursos hídricos, tanto quanto o esgoto.
8-
Progressivamente, as casas construídas dentro das faixas de inundação dos rios
devem ser retiradas. Esse é o caso de Iconha.
9-
Por fim, as providências devem ser agilizadas no que concerne à burocracia,
pois os prejuízos causados por enchentes e estiagens superam em muito os recursos
aplicados em medidas que minimizem os desastres.
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