LAGARTO NASCIDO DO FOGO
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 18 de julho
de 2020
Lagarto nascido do fogo
Arthur Soffiati
Nunca pensei
que eu fosse merecer a atenção de umas geringonças que uma espécie animal
inventou 115 milhões de anos depois da minha extinção. Aliás, eu nunca pensei.
Só agi para viver. Aliás, eu não sei o significado de aliás. Talvez, eu matasse
algum exemplar de homem para comer, se a gente se encontrasse. Mas esses bichos
só encontraram meus ossos no sertão do Ceará. Vivi numa época em que tudo era
junto, da América à Ásia. Eles já escreveram sobre mim e me deram um nome
horrível por sinal: “Aratasaurus museunacionali”. O significado é lagarto
nascido do fogo do prédio em que eu estava. Dizem que meu esqueleto não foi
destruído por um incêndio porque ele estava num prédio ao lado do prédio que
pegou fogo. Era um palácio que se transformou num museu. Estava caindo aos
pedaços. Era mais fácil pegar fogo do que a Terra quando recebeu aquela bola de
fogo vinda do céu. Foi o início do meu fim. Tudo isso está gravado na minha
memória física. Aconteceu há muito tempo.
Meu retrato falado
Botaram esse
nome em mim, mas não gostei. Preferia não ter nome, como no passado. Esses
bichos gostam de botar nome. Um cachorro não bota nome no outro. O gato também
não. Mas todos eles se reconhecem. Se eles vivessem no meu tempo, provavelmente
eu os comeria. Sua carne deve ser saborosa como a dos animais que eu comia no
meu tempo.
Disseram
que eu tive primos que viviam na China. Não sei o que é primo nem China. Um
monte de gente estudou meus ossos, que estavam largados há doze anos naquele
prédio atrás do que pegou fogo. Eles escreveram sobre mim e publicaram. Todos
assinaram. Acho que nem todo mundo que assinou sabe direito quem eu fui, mas
esse bicho que agora tomou conta da Terra ganha ponto num currículo de nome
estranho. Aí, eles fingem que estudam. Um escreve e muitos assinam.
Eles
encontraram meus ossos na bacia do Araripe. Não existia esse nome. Só sei que
lá tinha muito bicho voador que eles batizaram de pterossauro. Eles também
descobriram que eu era caçador. Sei disso. Eu corria atrás de outros bichos e
os matava com a garra dos meus pés e das minhas mãos (eram minhas patas).
Fiquei muito tempo em baixo da terra. Só sobraram de mim pedaços da minha perna
e do meu pé com dedos e garras.
Minha garra mortal
Eles não me
conheciam. No meu tempo, quando um bicho morria, ninguém enterrava. Ele ficava
lá até se decompor. Só sobravam os ossos, que iam se desgastando com o tempo.
De mim, só encontraram uma pata. Por ela, chegaram à conclusão de que eu sou
uma espécie nova. Eles erraram. Sou uma espécie muito antiga. Vivi antes que
esses bichos aparecessem. Eles querem dizer que eu passei a ser conhecido e que
sou um dinossauro recentemente.
Mais: eles
dizem que eu sou uma forma primitiva de celurossauro. Fica difícil de entender
essas classificações. Eu pensei que todos os bichos da minha época e que
estavam perto de mim ou eram comida ou eram mais fortes que eu. Soube que, mais
tarde, tive parentes famosos, carnívoros como eu. Eles foram batizados de “Tyrannosaurus”
e “Velociraptor”. Esses bichos chegaram a ganhar filmes. Foi preciso usar
truques, pois nenhum deles estava vivo. Mas disseram que meu parente mais
próximo foi um bicho chinês que eles batizaram de “Zuolong salleei”. Viveu bem
antes de mim. Também é um nome estranho. Melhor do que o meu, que é uma mistura
de grego, latim e tupi.
Eu e meus parentes
Pelo meu pé,
descobriram que eu devo ter morrido com quatro anos de idade e que ficaria bem
maior quando ficasse adulto. Não lembro do que me aconteceu. Não sei se uma
pedra caiu em cima de mim e me matou. Descobriram também que meu corpo era
coberto de penas. Eles disseram que a grande bola de fogo vinda do céu não
acabou com todos nós. Que nós temos parentes que sobreviveram. Eles chamam os
sobreviventes de aves. Já vi alguns deles. Um é chamado de avestruz. Outro é
chamado de galinha. A carne deles deve ser gostosa. Nunca comi nenhum. Não
existiam no meu tempo.
Acho que
agora vão fazer desenhos de mim em cartão e em livrinhos. Devem me fazer também
como boneco para vender para os seus filhotes. Eles adoram os bichos do meu
tempo mas morrem de medo quando me veem num negócio que eles chamam de cinema.
Alguns acham que os humanos não conseguiriam viver no nosso tempo porque nós
comeríamos todos eles. Acho o contrário: acho que nós estaríamos sendo
eliminados por eles, assim como fazem com bichos chamados baleias, elefantes,
rinocerontes, pangolins e um montão de outros. Nós éramos até boa gente perto
deles. Nós só caçávamos para comer. Eles caçam pra ganhar dinheiro, coisa que
desconheço.
Ainda bem
que não vivi no tempo deles.
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