A MORTE EM QUATRO ROMANCES BRASILEIROS DA ATUALIDADE
Folha da Manhã, 24 de junho de
2020
A morte em quatro romances
brasileiros da atualidade
Arthur Soffiati
Uma menina de oito anos morreu.
Entende-se que um idoso morra naturalmente. É a lei da vida, como se diz. Fica
mais fácil aceitar a morte. Fica menos difícil aceitar a morte de uma criança
com doença incurável. Mas torna-se insuportável perder um filho sadio quando
criança. “Minha filha deixa seus pais sem chão, pela inversão da lei da
natureza que os obriga a sepultar nesta sexta a menina de oito anos, às 11 h no
Cemitério da Lapa, na zona oeste de SP.”, escreve Tiago Ferro, o autor de “O
pai da menina morta” (São Paulo: Todavia, 2018). O livro recebeu prêmios. O pai
inconsolado e inconsolável é o próprio narrador.
Ele nunca mais terá paz. Ele pode
fazer o que quiser. Na verdade, faz o que bem deseja, como se ele também
estivesse condenado à morte antes do tempo. A relação do ser humano com a morte
é uma das mais cruciais em termos de existência. Nascer não depende de cada um
de nós. São nossos pais que decidem nossa vinda ao mundo. Mas nem sempre existe
decisão. O nascimento pode ser indesejado por um ou por ambos os pais. E o novo
ser deve lidar com uma realidade material. Espera-se que ele tenha uma
trajetória de vida normal, ou seja, que morra quando tiver de morrer, de
velhice. Mas pode morrer criança ou jovem, de doença ou de acidente. O que
ajuda a travessia é crer em algo além do físico.
O pai da menina de oito anos busca
fuga na bebida e no sexo. No meio do desespero, ele ainda filosofa com humor:
“A ereção é a prova definitiva de que o materialismo, mecanicista ou dialético,
está errado. O milagre é a prova contundente contra as teorias idealistas.” Uma
terapeuta budista e uma professora de ioga açulam seu desejo sexual. Mas ele
“Nunca mais. Nunca mais você vai ter paz.”
O resultado é um romance
fragmentado. Na verdade, uma reunião de reflexões, de sofrimentos, de
acontecimentos aos pedaços. “[hoje] Hoje eu largaria tudo para gozar todos os
gozos e me esquecer deste dia. Até amanhã.” No livro, entram anotações, listas
de afazeres e de compras (como em Umberto Eco). E tentativas de fuga. Muitas tentativas
de fuga. Tudo inútil. A presença da filha morta está ali. A lembrança da menina
não permite que o homem possa viver o momento, que tenha um pingo de paz. Ele
está condenado a também morrer em vida até a morte definitiva, seja ela natural
ou provocada, já que o suicídio também o assalta.
Já em “Cancún”, de Miguel del
Castillo (São Paulo: Companhia das Letras, 2019), a morte é do pai do narrador.
Se, não se espera a morte de uma menina de oito anos, tolera-se melhor a morte
de um homem velho que sofreu dois acidentes vasculares encefálicos
hemorrágicos. Esse pai se separou da mãe e teve uma vida misteriosa em Cancún.
Um belo dia, voltou definitivamente para o Brasil. Cumpria suas obrigações de
pai e ocultava seu mistério.
Ao morrer, o filho empreende uma
investigação sobre o mistério de Cancún, indo até lá e procurando indícios da
passagem de seu pai. O autor, então, mostra que, perto ou embaixo da Cancún
charmosa dos turistas, existe a Cancún dos empregados nos hotéis e
restaurantes. Existe uma Cancún pobre e violenta.
Este é o segundo livro de del
Castillo. O primeiro foi “Restinga”, uma coletânea de contos. “Cancún” figurou
na lista dos melhores livros de ficção de 2019. Contudo, a superficialidade
presente em “Restinga” aparece novamente em “Cancún”. O mistério do pai é
elucidado numa narrativa monótona.
Já não se pode dizer o mesmo de
“Crocodilo”, de Javier A. Contreras (São Paulo: Companhia das Letras, 2019).
Aparentemente, estamos diante do absurdo: um rapaz inteligente e documentarista
talentoso, já detentor de prêmios, atraente, cercado de amigos, atira-se do seu
apartamento. Suicida-se. Seu pai, um jornalista de 73 anos, é apanhado de
surpresa e tem um choque. Não se pode acreditar que um jovem, que não
demonstrava para ninguém qualquer tendência suicida, tenha se atirado do seu
apartamento.
O pai sofre profundamente. A mãe
mostra-se mais conformada. Terminado o velório e a cremação, o pai esquece de
si mesmo numa investigação sobre a tão inesperada morte.
Teria sido assassinato? Nenhum elemento
conduz a essa conclusão. Começa então a peregrinação do atormentado pai. Ele
conversa com a ex-namorada do filho e com amigos. Vive entre os mendigos
filmados por seu filho. Nenhuma pista. Então vêm as recordações: “A rotina com
um bebê dentro de casa aos poucos se transforma na sua rotina. As coisas que
você fazia, você vai aos poucos deixando de fazer. Você não consegue mais
conversar com sua mulher sobre os mais diversos assuntos sem ser interrompido.
Não consegue mais fumar dentro de casa. Não consegue parar um momento, deitar
no sofá e ler um livro ou ver um filme ou escutar música. Você já não consegue
transar, pois sexo ficou protocolar e menos importante. E quando acontece,
parece que você é culpado por emitir qualquer ruído pós-gozo durante o sono do
bebê. Também não consegue mais ir ao cinema. Ou a festas. Ou a jantares. Não
pode mais flertar ou aceitar flerte, pois agora, além de casado, você é pai e
tem um bebê em casa. Você já não consegue nem ao menos ir a happy hours com os
amigos no fim do expediente e beber sem preocupações, ou sem que pese a
consciência. E então, quando você percebe, sua individualidade e seus momentos
de solidão já não existem mais, e todo o seu tempo está exclusivamente
comprometido para fazer todas as coisas que envolvem o universo do seu filho.”
O pai do rapaz morto pertence a uma
geração de luta. Ele assumiu bandeiras de esquerda na juventude, lutou contra a
ditadura. Formou muitas certezas e com elas via um mundo que não era mais o seu
e que não percebia. Ele fez uma descoberta que lhe parecia a chave do mistério.
Talvez o filho fosse homossexual e ele não sabia. O homem misterioso que
aparece na história é apenas um psicanalista que acaba mostrando para o pai
abatido que ele nada sabia do filho. Assim também sua mulher, que de tudo já
sabia. Embora sofrendo, ela suporta melhor a dor da perda.
Por fim, o romancista da violência,
do crime e da morte. Trata-se do escritor paraense Edyr Augusto, que acaba de
lançar o livro “BelHell” (São Paulo: Boitempo, 2020). Seus romances são sempre
ambientados em Belém e na Amazônia. “BelHell” não é diferente. Ele se passa na
periferia social de Belém. Nele, desfilam pobres que sobem na vida trabalhando
para empresários e políticos inescrupulosos. Nas páginas do livro, há lugar para
anões, para uma moça bonita e inteligente que aprende a jogar baralho e rouba
seus parceiros. Desfilam casos de rapazes idealistas que acabam se
transformando em criminosos. Aparecem taras. Um médico que só têm prazer sexual
ao assassinar mendigos, prostitutas e moleques de rua com fios acerados de
cirurgia.
Homens aparentemente honrados que
são criminosos, policiais bandidos, mulheres heterossexuais que se descobrem
homossexuais. E no final todos morrem de forma violenta, pois aqueles que matam
são caçados para morrer.
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