RIOS DA ECORREGIÃO DE SÃO TOMÉ: GUAXINDIBA


Engenharia e ciências ambientais: contribuições à gestão ecossistêmica [recurso eletrônico] /       Organização Maria Inês Paes Ferreira… [et al.]. — Campos dos Goytacazes (RJ): Essentia Editora, 2019.

Bacias hídricas da Ecorregião de São Tomé: rio Guaxindiba
Arthur Soffiati


RESUMO. Existem dois rios com o nome de Guaxindiba no Estado do Rio de Janeiro. O mais conhecido desemboca na baía de Guanabara. O outro nasce no município de Campos dos Goytacazes e desemboca no mar depois de atravessar o município de São Francisco de Itabapoana. Todo rio que desemboca no mar forma estuários pela combinação de água doce e salgada. Nos trópicos, é comum que o ecossistema vegetal nativo a se desenvolver em estuário seja o manguezal. Desde o século XIX, existem projetos de canais ligando o rio Paraíba do Sul ao rio Guaxindiba, aproveitando a lagoa do Vigário. Examinam-se, aqui, os projetos de abertura de canais de navegação e de drenagem nos séculos XIX e XX, com o impacto que tais obras exerceram sobre o manguezal. Ao mesmo tempo, passam-se em revista as transformações ambientais do contexto em que se insere a bacia do Guaxindiba nos dois últimos séculos.

Palavras-chave: transformações ambientais, bacia hidrográfica, obras hidráulicas.

INTRODUÇÃO
            Embora pequena, a bacia do Guaxindiba apresentava pujança ambiental. Nascendo na zona serrana, ela chegava ao mar, depois de cruzar os tabuleiros entre orios Paraíba do Sul e Itabapoana. Sua integridade ecológica foi mantida até o século XIX, quando as florestas estacionais semideciduais que a cercavam começaram a ser abatidas pelo fogo ou pelo machado. No século XIX, o canal do Nogueira, destinado à navegação, pretendia ligar a margem esquerda do Paraíba do Sul e a lagoa do Campelo. Houve um projeto de prolongar o canal até o rio Guaxindiba para fins de navegação. A obra foi começada, mas não chegou sequer à lagoa do Campelo por falta de recursos financeiros. No século XX, o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) retirou do papel o mais exequível dos projetos e ligou o rio Paraíba do Sul ao rio Guaxindiba por dois canais, valendo-se da lagoa do Campelo. Do Paraíba do Sul ao Guaxindiba, ele abriu o canal do Vigário, e dela ao Guaxindiba, o canal Engenheiro Antonio Resende, valendo-se da foz do rio Guaxindiba, que passou a ser afluente do canal. O manguezal sofreu impactos, mas teve sua área ampliada. Contudo, o resultado foi a redução de vazão da bacia, a erosão das margens dos rios constituintes, o assoreamento, a urbanização desordenada do trecho final, o despejo de agrotóxicos e de fertilizantes químicos, bem como o lançamento in natura de esgoto e de resíduos sólidos, com o agravante de óleo de barcos de pesca. O conjunto de tensores transformou profundamente a bacia, que apenas conta com a Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba em suas margens como resultado de política pública de proteção de um fragmento de mata nativa e de alguns afluentes da bacia.  


As pegadas da civilização ocidental

            De passagem pelas plagas correspondentes ao atual território de São Francisco de Itabapoana, em 1815, dirigindo-se à Bahia, o príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied caminhou pela praia até que:

Uma trilha, vindo da costa, cedo nos conduziu, através de espessos bosques, a uma grande floresta (...). Na escura e imponente mata virgem achamos bonitas plantas, e o soberbo Convolvulus de flores azul-celeste enlaçava-se nos arbustos, até grande altura. O pio forte do “juó”, em três ou quatro notas, é ouvido nessas matas imensas, em todas horas do dia e mesmo à meia-noite[1].

Três anos depois, em 1818, a floresta parece a mesma aos olhos do arguto Saint-Hilaire, que, ao seguir os passos do seu colega naturalista, anota em seu diário de viagem:

Findamos por distanciarmo-nos da praia e penetramos em uma floresta (...) durante todo o dia apenas encontramos água doce em um pequeno lago pantanoso (...). Durante muito tempo continuei a atravessar a floresta [2].

            A paisagem já tinha consideravelmente se modificado quando Jacob Tschudi passou por ela proveniente da província do Espírito Santo. Depois de marchar quatro horas por uma trilha na mata virgem, em meados do século XIX, ele assinala que ela não era mais tão virgem como no tempo de seus antecessores. Cá e lá, encontra-se uma ou outra fazenda. Pousa na de São Pedro, do traficante português de escravos André Gonçalves da Graça, e observa as marcas externas de seu enriquecimento com o tráfico já considerado ilegal àquela época. Chama a atenção para o intenso extrativismo vegetal, salientando que o comércio madeireiro parecia render fabulosos lucros, além das facilidades de transporte, pois que as florestas não ficavam muito distantes da costa, onde eram embarcadas as madeiras para exportação. Mas lamenta que a síndrome do desperdício elimine madeiras nobres junto com as comuns usando o fogo para abrir espaço destinado à lavoura e à criação de animais[3]. 
Figura 1- Queimada no Sertão das Cacimbas
 Fonte: desenho de J.J. Tchudi de 1857

            Fugindo ao risco de desembarcar escravos contrabandeados nos portos de Gargaú ou de São João da Barra, na foz do rio Paraíba do Sul, ou no porto de São Sebastião do Itabapoana, na foz do rio Itabapoana, André Gonçalves da Graça, na casa de quem pernoitou Tschudi, bem como outros traficantes, escolhia as praias entre Manguinhos e Itapemirim, onde havia condições favoráveis à ancoragem de barcos com maior calado. O comendador Gonçalves da Graça era proprietário da Fazenda São Pedro de Alcântara ou Cobiça, uma enorme propriedade rural cujas terras restantes foram incorporadas à Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba. A Unidade de Conservação protege hoje a antiga mata do Carvão, nome sintomático do destino da grande floresta outrora existente no Sertão das Cacimbas. Os escravos introduzidos ilegalmente no país ou ficavam trabalhando na fazenda ou eram logo vendidos para outros proprietários regionais. Os que morriam em terra eram sepultados num local que o mar se incumbiu de descobrir, deixando à mostra incontáveis ossadas.
            É ilustrativo seguir um pouco a carreira de José de Sousa Velho, grande contrabandista português que manteve negócios com André Gonçalves da Graça. Velho movimentava-se com bastante intimidade no norte da província do Rio de Janeiro e sul da província do Espírito Santo por vários lugares. Em janeiro de 1856, o juiz municipal de São João da Barra informava o presidente da província do Rio de Janeiro sobre a presença de Velho hospedado na casa de André da Graça e em sua fazenda nos Manguinhos (curioso como o nome da praia pode derivar da existência de pequenos manguezais no córrego que desemboca na localidade ou em outros pontos próximos da costa). Na mesma correspondência, o juiz acompanha os passos do contrabandista lusitano por Itabapoana e Itapemirim, à procura de porto seguro para um desembarque que tencionava fazer. Ainda em janeiro de 1856, o chefe de polícia do Espírito Santo oficia ao vice-presidente da província alertando acerca da descoberta de indícios de preparativos para desembarque de africanos nas barreiras do Ceri (atual lagoa do Siri) e em Marobá.
            Num relatório de março de 1856, o conselheiro Josino do Nascimento e Silva, secretário do Ministério dos Negócios da Justiça, propõe a substituição do comandante do destacamento de Manguinhos ou Itabapoana, por já estar muito relacionado com André da Graça, e encarece a necessidade de saber o nome do proprietário da fazenda do Largo, “ponto famoso para desembarques”. Em setembro de 1856, o presidente da província do Rio de Janeiro advertia aoministro José Thomaz Nabuco d’Araujo quanto à iminência de um desembarque clandestino de escravos na praia de Bonsucesso, em Macaé.
            Outro grande traficante de escravos com base no trecho da Ecorregião de São Tomé foi o comendador Joaquim Thomaz de Faria, proprietário das imensas fazendas de Sant’Ana, do Campo Alegre e da Floresta, com engenhos e muitos escravos[4].
Sobre o mesmo assunto, NorbertinoBahiense levanta a hipótese segundo a qual o lugar denominado de Quartéis, nome também de uma lagoa do sul do Espírito Santo, deve-se à construção de vários pequenos quartéis nos pontos de desembarque de escravos traficados[5]. Outra hipótese atribui o nome de Quartéis a um destacamento militar instalado em Boa Vista para proteger os viajantes do ataque de índios. Dele deram notícia Wied-Neuwied e Saint-Hilaire, que lá buscaram abrigo em suas excursões científicas pela costa[6].
            Pelo contributo desses dois autores, nota-se como o norte da província do Rio de Janeiro estava ainda bastante ligado ao sul do Espírito Santo, podendo-se, a título de ensaio, levantar a ilação de que esse vínculo seria resultado de certa unidade e continuidade geológica e geomorfológica e de uma mesma estrutura econômica, que subjazia às fronteiras político-administrativas separando o Rio de Janeiro do Espírito Santo, em caráter definitivo apenas em 1832. Na verdade, até o presente, esta continuidade geográfica e econômica continua existindo.
            É interessante notar, igualmente, que vários dos topônimos mencionados por João Oscar e NorbertinoBahiense vinculam-se às pequenas bacias hídricas. Itapemirim era vila situada à margem do rio do mesmo nome e optou por subordinar-se a Campos quando do pleito dessa cidade em se tornar sede de uma nova província do Império[7]. Ceri refere-se à lagoa do Siri. Marobá é o maior sistema hídrico situado entre os rios Itapemirim e Itabapoana. A fazenda do Largo certamente alude a bacia do Largo. A ponta de Buena, situada pouco abaixo da foz de córrego de mesmo nome, criou uma reentrância na costa que permitiu o fundeamento de navios. Manguinhos foi mais conhecido no século XIX que nos dias correntes graças à sua posição estratégica no tráfico de escravos e à fazenda do poderoso André Gonçalves da Graça. As fazendas de Cobiça e de Floresta referem-se a afluentes do rio Guaxindiba, hoje transformados em vastos brejos em consequência de interferências antrópicas profundas.
Em 1868, Fernando José Martins[8] escrevia a título de depoimento:

O terreno do lado do norte do rio [Paraíba do Sul], que compreende os sertões das Cacimbas, Campo Novo, Funil, Céu, Muribeca e Morro do Coco, é o mais aproveitável para a lavoura. Existem 13 engenhos de açúcar, sendo dois movidos por vapor, duas grandes serrarias também movidas por vapor, cinco fazendas de criar, e o resto da planície que por espaço de 6 léguas estende-se até a margem meridional do rio Itabapoana, acha-se hoje toda ocupada por situações de bem extensa produção.

Por este relato, percebe-se como se está longe da fisionomia da unidade central de tabuleiros da região descrita por Wied-Neuwied e Saint-Hilaire, no início do século XIX. Além da fazenda Muribeca, à margem direita do rio Itabapoana, foram construídos 13 engenhos de açúcar, sendo que dois movidos a vapor, duas serrarias também a vapor, cinco fazendas destinadas à pecuária e várias outras para a agricultura. Todas elas, atividades que exigem o sacrifício de florestas. A parte agrícola de um engenho requer terras para o plantio de cana, o que só poderia ocorrer com a supressão vegetal numa área quase inteiramente florestada. A parte industrial necessita de lenha como fonte de energia e de madeira para a fabricação de caixotes e de tonéis nos quais acondicionavam-se o açúcar e a aguardente. As serrarias atuaram por mais de um século no sertão das Cacimbas, famoso desde o século XVIII por suas matas e madeiras nobres. Para explorá-las, foi aberto, na primeira metade do século XIX, o grande canal de Cacimbas, que partia da margem esquerda do rio Paraíba do Sul e atingia a lagoa de Macabu. Em 1837, o major Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde[9] registrou:

O extenso e produtivo Sertão de Cacimbas, hoje já povoado por muitos e bons estabelecimentos quer de agricultura, quer de exploração de ricas madeiras, acha-se muito mal servido de comunicações para a Vila, e Porto de S. João da Barra, oferecendo aliás proporções para abertura de um canal que, comunicando os brejos de cacimbas com a Lagoa de Macabu, lhes evite o caminho que ora fazem por terra até aos maus Portos de Gargaú, Terra Nova, etc.

            Já é por demais conhecido o papel exercido pelas florestas na fixação do solo e da água, tanto quanto os efeitos de sua supressão sobre esses dois componentes ecossistêmicos. Assim, a derrubada da tão decantada floresta que revestia os tabuleiros da região deixou o solo exposto às intempéries – sol, chuva e ventos, – concorrendo para a erosão e para a perda da fertilidade. Uma atividade agropastoril perdulária acentuou esse processo. O solo foi, dessa maneira, carreado para as bacias hídricas, provocando turbidez de suas águas e assoreamento de seus leitos.
            A drenagem desses sistemas embrejados com vistas à ampliação de áreas para atividades agropecuárias acompanhada de represas não apenas alterou o regime hídrico das bacias, como também mudou por completo as características de rios e lagoas costeiras. Para tanto, contribuiu muito a construção da rodovia RJ-196, em 1973, que se estende de Guaxindiba a Barra do Itabapoana. Essa estrada estrangulou o fluxo das águas dos rios, forçando-as a passar por estreitos bueiros. A visão da engenharia, que a construiu, não foi capaz sequer de identificar as bacias cortadas de forma global, estudando-lhes o regime hídrico para conhecimento de vazão máxima, média e mínima. Os dispositivos de circulação das águas foram instalados pontualmente, sem se considerar o conjunto, erro que se repete em todo o Brasil pela engenharia de estradas.
            O extrativismo mineral, notadamente pelas Indústrias Nucleares do Brasil, que mantêm, desde a década de 1930, uma unidade de separação física de minérios, como a ilmenita, a zirconita e a monazita, na localidade de Buena, igualmente vem dando seu contributo para produzir alterações ambientais de monta. O revolvimento do solo, o corte de taludes de tabuleiros e o barramento de cursos d’água estão entre as intervenções antrópicas mais danosas ao ambiente.
            A interrupção total ou parcial das bacias hídricas, o transporte de fertilizantes químicos aplicados na agropecuária e o esgoto doméstico, oriundo da urbanização progressiva das margens dos sistemas hídrico acarretam a eutrofização, fenômeno que consiste na superalimentação das águas e na morte progressiva dos rios e de lagoas. Por fim, a introdução de espécies exóticas – vegetais e animais – exigiu mudanças profundas na constituição ambiental nativa da região.

Do Itabapoana ao Guaxindiba

            Entre os rios Itabapoana e Guaxindiba, há uma sequência de pequenos cursos d'água com nascente na unidade central de tabuleiros da ecorregião de São Tomé e foz no oceano. Esse tipo de formação geológica prossegue abaixo do rio Guaxindiba, agora afastada do mar pela seção setentrional da grande restinga de Paraíba do Sul. No Holoceno médio, pequenos cursos d'água desembocavam no mar. Porém, as fozes foram tamponadas pela restinga, que as afastou da costa. Agora, desembocam na lagoa do Campelo, como demonstrou a geógrafa Leidiana Alonso Alves[10].
            Toda a extensão dos tabuleiros era revestida por uma extensa cobertura de mata estacional semidecidual, interrompida pelo rio Itabapoana e prosseguindo até o rio Itapemirim. Os pequenos e quase despercebidos cursos d'água deviam então manter seus desaguadouros permanente ou periodicamente abertos. Plantas de manguezais no estuário de alguns atestam este contato com o mar. Do norte para o sul, são eles os córregos Salgado, Doce, Guriri, Tatagiba Açu, Tatagiba Mirim, Buena, Barrinha e Manguinhos.

            A extensa mata do Sertão de Cacimbas foi derrubada para a extração de lenha e madeira ou simplesmente queimada a fim de abrir espaço para a agropecuária. Mais tarde, instalou-se no chamado Sertão de São João da Barra, hoje Município de São Francisco de Itabapoana, a Nuclemon, empresa federal de lavra de terras raras, hoje com o nome de Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Nessas terras cada vez mais empobrecidas pela erosão, lixiviação e lavra, existem plantações de cana, mandioca e abacaxi, além da pecuária.
            Completamente escalvadas, essas terras são muito vulneráveis a enchentes e a estiagens. Os pequeninos rios que a drenam sofrem também com represas construídas por proprietários rurais, com estradas vicinais construídas pela prefeitura e com as duas rodovias abertas pelo DER-RJ: a RJ 224 e a RJ 196.
A recuperação parcial dessa grande extensão de terra requer a demarcação dos córregos e seu reflorestamento ciliar, a remoção dos obstáculos dentro de seus leitos, sistemas de circulação de água nas estradas municipais, estaduais e possivelmente federal, como se cogita com relação à articulação da RJ-196 com a ES-060.
            Brejos e nascentes devem ser protegidos, assim como a reintrodução da fauna nativa, terrestre e aquática. A única Unidade de Conservação no interior do município é a Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba, com sede nova e moderna. Mas ainda há carência de áreas protegidas, como toda a extensão da bacia de Manguinhos, que poderia se transformar numa Área de Proteção Ambiental (APA).

Bacia do Guaxindiba

            Fascina a arquitetura da bacia do rio Guaxindiba. Sublinhando-a na Carta do Brasil IBGE, tem-se como resultado um desenho semelhante a uma árvore copada de caule curto cujos galhos foram penteados pelo vento, como aquelas plantas que não conseguem crescer de forma arredondada à beira da praia pela ventania intensa. A rigor, o rio Guaxindiba nasce nas imediações da sede do distrito campista de Morro do Coco, batizado com o nome de ribeirão Grande. Logo em seguida, passa a se chamar ribeirão Guaxindiba e vai recebendo incontáveis afluentes e subafluentes, que lhe conferem o aspecto de uma intrincada rede de artérias, veias e capilares. Seus mais notáveis afluentes são os córregos do Valão Seco, Alegria dos Anjos e Santa Luzia, que, juntos, engrossam no dilatado brejo da Cobiça. O próprio rio Guaxindiba engorda com o nome de brejo do Espiador, que, além de receber águas da Cobiça, recebe também o contributo do brejo da Floresta. Os três formavam uma área bastante pantanosa já perto do mar.
            Os vasos sanguíneos da bacia do Guaxindiba, em sua feição atual, não espelham mais o que ela foi há cerca de duzentos anos, quando a quase totalidade da sua área de drenagem era cercada por densas florestas estacionais, das quais restaram apenas o remanescente da Mata do Carvão e fragmentos melancólicos aqui e acolá. Artérias, veias e capilares estão entupidos pela sedimentação. Por elas, o sangue não mais circula como antes. Ainda em 1940, Camilo de Menezes[11] afiançava que

O Rio Guaxindiba é o único afluente do oceano entre a foz do Paraíba e a ponta de Manguinhos. Sua barra, ao contrário das situadas ao sul de Atafona, é muito estável e só se fecha quando cessa totalmente a descarga do rio; logo às primeiras chuvas pode-se abri-la facilmente.

            Cobertura vegetal nativa era o segredo dessa vitalidade. Era ela que protegia as inúmeras nascentes, que sustentava as margens dos cursos d’água formadores da bacia, que acumulava a umidade das chuvas para assegurar perenidade ao sistema hídrico. Sua remoção foi devastadora para ele. Outras intervenções antrópicas acabaram por transformar um corpo vigoroso em esquelético.

Figura 2 – Manguezal do rio Guaxindiba
 Fonte: Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense

Antecedentes da ligação Paraíba do Sul-Guaxindiba

            Em 1829, foi projetado um canal partindo de Santo Antônio de Guarulhos, em frente à cidade de Campos, cujas obras de abertura começaram 1833 sob comando do brigadeiro Antonio Elisiário de Miranda Brito. Com o nome de Canal do Nogueira, ele pretendia interligar o rio Paraíba do Sul à lagoa do Campelo, passando pelas lagoas Maria do Pilar, Taquaruçu, brejo da Olaria, do Fogo e Brejo Grande, além de permitir a comunicação com outras lagoas por meio de ramais, já que as águas do Campelo se misturavam com as das lagoas da Saudade, Formosa, dos Coxos e Tigibibaia. Os trabalhos prosseguiram de forma ininterrupta até 1845.
            Mas, data de 1840, até pesquisas mais pormenorizadas, a proposta de ligação entre o Paraíba do Sul e o Guaxindiba. Ela foi formulada por José Silvestre Rebello[12], no bojo de um ambicioso projeto que pretendia ligar Porto Alegre a Belém do Para por uma série de canais que, no conjunto, receberia o pomposo nome de canal imperial. Rebello escreve:

Sempre me animo a descrever um canal imperial, que comunique a cidade de Porto Alegre no Rio Grande com a cidade de Belém na Província do Pará. Em Porto Alegre, na lagoa que banha o lado ocidental da cidade, deságua o rio Gravataí, e como tem pouca corrente, servirá de canal até aonde deixa de ser navegável.

            Seria muito mais fácil e barata a navegação por cabotagem entre Rio Grande do Sul e Pará, pois o mar não apresenta desníveis a serem vencidos com obra de engenharia a altos custos ou simplesmente inviáveis. Mas Rebello está imbuído do espírito fáustico da Modernidade e vive na primeira metade do século XIX, quando o aquaviarismo reinava, na falta de ferroviais e rodovias, que começariam a ser construídas na segunda metade do século XIX. Esse imenso canal se valeria do que existia de natural e já construído. No norte da Província do Rio de Janeiro, canais já existentes seriam incorporados ao canal imperial.

da margem do norte do Paraíba continuará o canal pelas valas começadas, que passam pelo Brejo Grande, pela Lagoa do Campelo, e que vão até a das Cacimbas. Desta deve seguir ao rio Guaxindiba, e deste ao de Itabapoana; logo seguirá a Itapemirim, a Guarapari e à cidade de Vitória e ao rio Doce, sempre pouco distante das praias.

            A geografia do autor é confusa. Talvez ele pensasse que o canal do Nogueira, saindo pela margem esquerda do Paraíba do Sul, chegasse à lagoa do Campelo, como era a intenção de seu idealizador inicialmente, para que outro canal ligasse posteriormente a lagoa ao canal de Cacimbas que conectava o Paraíba do Sul à lagoa de Macabu, nas proximidades do rio Guaxindiba. Daí em diante, talvez o mar fosse usado. Por descomunal e cara, a obra nunca se realizou.
            Em 2 de junho de 1852, 85 moradores de Guarulhos (atual Guarus) encaminharam requerimento à Comissão dos Negócios Internos, reivindicando a abertura de um canal que ligasse a lagoa da Saudade ao rio Paraíba do Sul, passando pelos sertões do Nogueira e de Imburi, proposta que Henrique Luiz de Bellegarde Niemeyer[13] já havia apresentado em 1837 com o nome de canal do Campelo, articulado ao canal do Nogueira. Logo a seguir, a Câmara Municipal de Campos reforçou o pedido junto ao presidente da província. Estabeleceu-se, então, uma discordância entre Ernesto Augusto Cesar Eduardo de Miranda, chefe do 5º Distrito, favorável à abertura da vala, e Amélio Pralon, engenheiro da Câmara Municipal de Campos, propugnando a continuação do canal do Nogueira. Prevaleceu a opinião de Pralon e o Nogueira foi retomado entre 1853 e 1871, ficando inconcluso.
            Uma planta de 1857, encomendada pelo Visconde do Rio Bonito, vice-presidente da Província do Rio de Janeiro, a Antonio Justiniano Rodrigues[14] mostra o canal do Nogueira começando na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, pouco abaixo de Santo Antônio de Guarulhos, atingindo a lagoa de Brejo Grande, depois de atravessar as lagoas de Maria do Pilar, Taquaruçu, Brejo da Olaria e do Fogo, e sugerindo continuidade no extremo norte da lagoa de Brejo Grande. Com eclusas, o canal visava o escoamento da produção do sertão do Nogueira. Na folha correspondente à Província do Rio de Janeiro do Atlas do Império do Brasil, de Candido Mendes, o canal do Nogueira cruza a lagoa do Campelo, conecta o canal de Cacimbas e alcança o rio Guaxindiba. Voltando a José Silvestre Rebello[15], sua proposta formulada em 1840 tem fundamento. Na meticulosa carta de Bellegarde e Niemeyer[16], figura apenas o que existe, não o que se projetou. Nela, assinala-se apenas o traçado completo do canal do Nogueira, que nunca chegou ao fim. Se, de fato, uma comunicação entre os rios Paraíba do Sul e Guaxindiba já havia sido aventada no século XIX, a grande discussão acerca do canal do Norte, no século XX, deve ser revista.

Figura 3 – Ligação projetada do rio Paraíba ao rio Itabapoana 
Fonte: Candido Mendes de Almeida, 1868

            Ao sustentar a viabilidade de um canal paralelo ao rio Paraíba do Sul entre Campos e sua foz para auxiliar o escoamento das águas do mesmo nas enchentes, o engenheiro sanitarista Francisco Saturnino Rodrigues de Brito menciona que tal solução já havia sido cogitada pelo engenheiro José Antonio Martins Romeu. Hildebrando de Araujo Góes[17] esclarece que Martins Romeu chefiou a Comissão do Porto de São João da Barra e Baixada do Noroeste do Estado do Rio de Janeiro, criada em 21 de setembro de 1912 e extinta a 31 de dezembro do mesmo ano, realizando muito pouco da agenda prevista. Em 1929, Saturnino de Brito[18] retoma a proposta de Martins Romeu após concluir que

Na margem esquerda [do rio Paraíba do Sul] as condições das inundações são algo diferentes: – geralmente as águas saem do rio, aumentam lagoas e banhados, inundam terras, – mas, quando a cheia baixa no rio principal, as águas de inundação a ele voltam, quer normalmente, quer descendo paralelamente para entrar no rio a jusante. Portanto, na defesa contra as inundações nessa margem convém estudar, como recurso auxiliar, a canalização das águas para descarga a jusante, quer no Paraíba, quer diretamente no mar, em Gargaú. Esta obra, – para dar resultado eficiente, como solução do problema, – custaria caríssimo, pois seria necessário cavar um rio desde a barra do Muriaé até o oceano. Poder-se-á, porém, abrir um canal de drenagem, de utilidade incontestável e no futuro voltar a examinar a sua transformação em canal de navegação marítima e fluvial, de acordo com a indicação do engenheiro Martins Romeu.

            Camilo de Menezes[19] volta a discutir a proposta em 1940. No seu entendimento, a melhor solução para os transbordamentos do rio Paraíba do Sul pela margem esquerda seria a construção de um canal com início na cidade de Campos atravessando as lagoas de Taquaruçu e outras e acompanhando de perto o traçado do antigo canal do Nogueira até a lagoa de Brejo Grande. Daí, ele seria prolongado até a Lagoa do Campelo e aproveitaria as depressões entre os cordões de restinga para chegar ao Atlântico pela barra do rio Guaxindiba. Menezes propõe como alternativa o nascedouro deste canal à montante de Campos, colocando a cidade a salvo das enchentes. Nesta opção, haveria um obstáculo a ser transposto: o divisor de águas por onde passa o leito da ferrovia Leopoldina, com cota alta. Mesmo assim, o canal seria viável, segundo seu parecer, se começasse na foz do valão dos Jacarés, aproveitando a lagoa do Cantagalo. Depois de transpor o divisor, ele se dirigiria à lagoa Brejo Grande e seguiria o percurso descrito para a primeira alternativa. Além de proteger Campos das enchentes, este canal, quer nascendo acima da cidade, quer pouco abaixo dela, proporcionaria a vantagem adicional de ser aproveitado como via navegável da principal unidade urbana da região até o oceano, resolvendo de vez o problema do porto marítimo na foz do rio Paraíba do Sul.
            Autor de famoso plano de urbanismo para Campos, em 1944, o Escritório de Engenharia Coimbra Bueno insistiu na abertura do Grande Canal, que teria origem na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, entre a desembocadura do rio Muriaé e o estrangulamento do Fundão. Daí, rumaria para a lagoa das Pedras, cruzaria a rodovia BR-101 e a ferrovia, desembocando na lagoa do Brejo Grande.
            Também o escritório do engenheiro Hildalius Cantanhede projetou um canal com início no rio Paraíba do Sul, pouco abaixo da foz do rio Muriaé, aproveitando depressões de brejos e lagoas. Depois de passar por quase dois quilômetros de uma zona bastante habitada, ele cruzaria a rodovia e a ferrovia e desembocaria na lagoa das Águas Claras, que conecta a lagoa do Brejo Grande.
            Mais uma vez, a proposta vem à baila em 1969, com o Relatório Gallioli, encomendado pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento. Remontando apenas aos projetos de Coimbra Bueno e de Hildalius Cantanhede, a empresa de engenharia vislumbrava o chamado Canal Norte com:

2 traçados possíveis, ambos com origem na margem esquerda do rio Muriaé. Um despejaria as águas na lagoa da Saudade (Canal Variante ‘A’), e o outro na lagoa do Brejo Grande (Canal Variante ‘B’), tendo essas águas como destino natural o oceano. Numa primeira fase, tal despejo final das águas se faria através das depressões naturais existentes, e, posteriormente, por um novo canal rumo ao norte – acompanhando o sopé da chapada até Guaxindiba. Este canal seria de seção reduzida porque, previamente, uma grande parcela das águas de cheia poderia ser laminada na lagoa do Campelo, uma vez que esta fosse convenientemente sistematizada[20].

            Considerando apenas fatores econômicos, o Relatório Gallioli conclui que o Canal Norte apresentaria alto custo de construção e sugere que a obra não seja executada.

Dois rios - dois canais - uma lagoa

            A proposta pragmática de Camilo de Menezes[21] e da Engenharia Galiolli prevaleceu: dois rios interligados por dois canais e usando uma lagoa. De certa forma, o canal do Nogueira, construído na primeira metade do século XIX, aproximou-se bastante da estrutura de engenharia de drenagem do Departamento Nacional de Obras e Saneamento[22] (DNOS). Nos anos de 1970, o órgão federal optou pela proposta mais simples de Camilo de Menezes e da Engenharia Galiolli: abrir um canal partindo do rio Paraíba do Sul, a jusante da cidade de Campos, até a lagoa do Campelo e passando pela lagoa do Taquaruçu. Defluindo por um vertedouro construído na ponta setentrional da lagoa do Campelo, outro canal, o Engenheiro Antonio Resende, aproveitava o curso d’água embutido numa depressão entre a restinga e o tabuleiro, com nome de brejo do Mundeuzinho, para chegar até a foz do rio Guaxindiba, que passou a ser afluente do canal. A ele, foi ligado o antigo canal de Cacimbas, pela margem direita, e, pela esquerda, foram abertos os canais da Saudade, de Floresta e Guaxindiba, este último chamado de Valão Novo, pela população local. Foi este canal que contribuiu para drenar o brejo do Espiador, grande abastecedor do rio Guaxindiba ou, melhor dizendo, o próprio rio Guaxindiba engordado pelo lento fluxo de suas águas.

Figura 4- Projeto do canal Engenheiro Antonio Resende
 Fonte: Departamento Nacional de Obras e Saneamento

 Figura 5- Foto aérea da abertura do canal Engenheiro Antonio Resende na década de 1970 

Abertura do canal Engenheiro Antonio Resende pelo DNOS nos anos de 1970

Figura 6 – Foto aérea do canal de Guaxindiba na década de 1970 

Fonte: Departamento Nacional de Obras e Saneamento

O manguezal do complexo Guaxindiba

            Aberto para o mar, o manguezal do sistema Guaxindiba-Engenheiro Antonio Resende-Valão Novo mostra-se muito estressado. Os estressores se alinham de forma complexa, como expressa com propriedade Edgar Morin[23] ao tratar de ecocausalidade:

Ao nível da organização viva, a relação endoexocausal torna-se uma relação auto-ecocausal. Isto significa que a organização-de-si, tornada auto-organização, é dotada duma maior autonomia, mas também duma dependência nova em relação ao meio, tornado ecossistema, o qual por sua vez obedece a formas sui generis de causalidade generativa. Isto significa que as relações entre o endo e o exo atingem aí um grau muito elevado de complexidade simbiótica e de interpretação, visto que o ecossistema é constituído por estes seres vivos, os quais por sua vez se constituem nas e pelas interações ecológicas (...) a causalidade interna ultrapassa o meio nos seus produtos, nos seus subprodutos, nos seus comportamentos e nas suas subjugações (...) o ecossistema retroage sobre o subjugador/poluente, fazendo-o suportar novas dependências e o contragolpe das suas devastações.

            Ao enunciar este princípio, um dos muitos que perpassam a obra de Morin, pode-se concluir que sua concepção tem um alcance mais distante que os conceitos de estratégia e de tática utilizados por Michel de Certeau[24], porquanto o fraco sobrevive desenvolvendo táticas no interior de estratégias dadas pelo forte, mas o intelectual francês não vislumbra a possibilidade de reversão do contexto, com o fraco afetando o forte. Com as recorrências de Morin, a causalidade complexa desenvolve uma dialética, ela também complexa, que comporta situações imprevisíveis. Assim, as mesmas causas podem conduzir a efeitos diferentes e/ou divergentes; causas diferentes podem produzir os mesmos efeitos; pequenas causas podem arrastar grandes efeitos; grandes causas podem arrastar efeitos mínimos; certas causas são seguidas de efeitos contrários; os efeitos das causas antagônicas são incertos. Isto porque “A causalidade complexa não é linear: é circular e inter-relacional; a causa e o efeito perderam a sua substancialidade; a causa perdeu a sua onipotência, o efeito a sua onidependência”.
            Tentemos analisar as condições do manguezal do sistema Guaxindiba à luz da teoria moriniana. A estabilização vertical da lâmina d’água do rio Guaxindiba, com pouca variação, acima da estrada RJ-196, provocou a emissão de raízes adventícias nos exemplares de mangue branco (Lagunculariaracemosa) e nos poucos exemplares de mangue preto (Avicenniagerminans) com pneumatóforos aéreos. É de se esperar que essa causa provoque sempre esse mesmo efeito. No entanto, na lagoa do Açu, a estabilização do nível d’água, com menos oscilações que no rio Guaxindiba, pois que o sistema se encontra fechado, não conduziu ao mesmo fenômeno. No rio Guaxindiba, a relativa estabilização do nível d’água, a montante da estrada, gerou o que Norma Crud Maciel e o autor relatam num estudo:

Em algumas árvores o crescimento das raízes é mais intenso do que em outras. Certos exemplares apresentam poucas raízes adventícias no tronco mas, em compensação, algumas delas são curtas e muito robustas, emitindo outras raízes adventícias. Em outras, as raízes adventícias saem do tronco como se fossem um galho, tal é o seu comprimento e seu diâmetro. De sua parte superior sai algo semelhante a dois ramos finos e sem folhas e, mais além, mais outras duas formações idênticas à primeira. Na parte inferior dessa estranha raiz saem inúmeras outras raízes, ora espalhadas, uma a uma, ora formando pequenos aglomerados, com geotropismo positivo (...) Acreditamos que a emissão de raízes adventícias é uma resposta dada pela espécie à prolongada inundação e à falta de oxigênio, na água e no substrato, o que torna o ambiente tóxico[25].

            Nessa parte do rio, até alguns exemplares de guaxuma (Taliparitipernambucense) emitiram raízes adventícias, como no córrego de Manguinhos. No entanto, na confluência do Canal de Guaxindiba com o canal Engenheiro Antonio Resende, pertencente ao mesmo complexo, mas normalmente aberto à influência das marés, foi encontrado um exemplar jovem de Avicenniagerminans, com cerca de 2,5 m. e raízes adventícias com pneumatóforos aéreos extremamente hipertrofiados. A raiz adventícia mais grossa até o chão conta com 7 cm. de diâmetro e 30 cm. de comprimento, sendo que o mais longo pneumatóforo aéreo alcança 12 cm. de comprimento. Outros exemplares desta espécie mostram os mesmos dispositivos de adaptação, assim como acontece com indivíduos de Lagunculariaracemosa também com o mesmo comportamento. Não submetida a afogamento, é admissível que a mesma consequência observada nos representantes dessas espécies no rio Guaxindiba, acima da estrada, aqui ocorra como resposta ao óleo despejado por barcos de pesca que ancoram no canal. Lá, a estabilização da lâmina d’água. Aqui, o óleo. Duas causas distintas com a mesma consequência.

Figura 7 - Exemplares de Laguncularia racemosa com raízes adventícias no rio Guaxindiba a jusante da RJ-196
 Fonte: foto do autor (agosto de 1997)

 Figura 8 - Exemplar jovem de Avicennia germinans com raízes adventícias e pneumatóforos aéreos. Confluência do canal Guaxindiba com o canal Engenheiro Antonio Resende

Fonte: foto do autor (março de 1998)
Pequenas causas arrastaram grandes efeitos no rio Guaxindiba e em outros manguezais. Pequenos desmatamentos, pequenas sedimentações pequenos barramentos, pequenos lançamentos de matéria orgânica e de fertilizantes químicos, o estrangulamento progressivo do manguezal por pequenos avanços de lavouras, de pastos e de pequenas casas, enfim, mil mãos visíveis a atuar acarretaram grandes consequências. Hoje, o manguezal do rio Guaxindiba em seu todo reduziu-se a uma espécie de mata galeria encurralada. A baixa circulação da água por barragens e assoreamento acentua a eutrofização e outro fenômeno observado por Norma Crud Maciel e o autor[26]: a herbivoria, ou seja, o pastejo de folhas das plantas exclusivas e não exclusivas do manguezal por consumidores primários invertebrados, configurando a fragilidade do ecossistema. Apesar de todos estes fatores, as árvores de Lagunculariaracemosa continuam apresentando uma alta produtividade de propágulos, o que revela sua capacidade de resistência em ambiente hostil. Esses propágulos, contudo, transformam-se em plântulas apinhadas no exíguo espaço a que foi reduzida a área do manguezal, sem a necessária luminosidade para seu crescimento. Com a derrubada natural ou antrópica dos indivíduos adultos, as plântulas têm oportunidade de prosperar todas ao mesmo tempo, formando uma população com caules retilíneos e delgados com pneumatóforos alongados mais do que o ordinário a brotar do solo para facilitar a aeração. Trata-se de uma tática para que todas – ou a maior parte delas – sobrevivam, nem que para tanto seja necessário mudar sua arquitetura normal alastrada.
Mas grandes causas podem arrastar pequenos efeitos. Sem dúvida, a abertura do canal Engenheiro Antônio Resende representou uma obra de grande impacto para o rio Guaxindiba, que teve sua foz roubada e passou a ser um pequeno afluente dele. Num primeiro momento, o manguezal ali existente sofreu rude golpe. Nos dias que correm, a construção desse canal exigiria estudos de impacto ambiental e causaria grande celeuma entre engenheiros e cientistas. Todavia, o canal criou ambiente para a propagação do manguezal, que absorveu, assim, grande parte da sua força estressora.
Examinando o conjunto atualmente, verifica-se que a maior parte do manguezal se encontra no canal Engenheiro Antonio Resende, que não existia antes dos anos de 1970. Sua abertura criou espaço para o desenvolvimento do ecossistema até cerca de seis quilômetros de sua foz, onde ainda são encontrados propágulos de mangue preto e tocas de guaiamum. O que impede o alastramento da vegetação lateralmente é a barreira de areia retirada pelo DNOS[27] para a abertura do canal. Ela não deve ser removida, pois criaria área para a construção de casas, mas reduzida na sua espessura para alargamento do espaço de inundação das marés.
O rio Guaxindiba abaixo da RJ-196 ainda recebe a influência das marés, embora elas corram com dificuldade pelo leito com as margens invadidas por casas. O crescimento urbano foi desordenado no complexo Guaxindiba. O aporte de esgoto doméstico e de resíduo sólido supera a capacidade depuradora do sistema. No trecho final do Guaxindiba, a jusante da rodovia, o manguezal assumiu a forma de mata ciliar encurralada. A amplitude das marés não permite que a água salobra atinja o manguezal a montante da estrada porque o bueiro de acesso hídrico foi instalado acima do nível maior das marés. Assim, o Guaxindiba, nesse trecho, só perde água doce e submete o fragmento de manguezal a forte estresse. Além do mais, por ocasião de enchentes, o aumento de vasão leva o rio a transbordar e cruzar a rodovia em busca do trecho abaixo dela.

Figura 9 - Enchente do rio Guaxindiba em 2008-9, inundando a RJ-196 
 Fonte: foto do autor
           No canal de Guaxindiba ou valão Novo, ocorre o mesmo. AS marés cheias sobem o canal até esbarrarem no leito da RJ-196. Como o bueiro situa-se em ponto mais alto que a amplitude das marés, o fluxo hídrico também apresenta mão única. Só a água doce flui em direção ao mar.
Enfim, os estressores operando no sistema Guaxindiba-Engenheiro Antonio Resende-canal Guaxindiba são o bloqueio ao livre espraiamento das marés pela rodovia e pelo estrangulamento do rio entre a RJ-196 e o mar, a urbanização desordenada do baixo curso do rio e do canal Engenheiro Antonio Resende, o desmatamento provocado pela expansão urbana, o esgoto, o lixo, o despejo de óleo por barcos pesqueiros e a perda de vasão do canal maior por barragens. Assim, tem se tornado comum o assoreamento do sistema junto ao mar, impedindo a entrada e saída de embarcações. Ao contrário do que desejava Camilo de Menezes[28], o canal Engenheiro Antonio Resende não se prestou à navegação entre o mar e a cidade de Campos, mas barcos de pequeno calado conseguem penetrar no canal e no rio até certo ponto, efetuando descarte de óleo.

Figura 10 - visão aérea de Guaxindiba
 Fonte: foto do autor
             Apesar dos tensores, as três espécies de mangue encontradas do norte fluminense resistem no complexo em exame: o mangue vermelho (Rhizophora mangle), o mangue branco (Laguncularia racemosa) e a siribeira ou mangue preto (Avicennia germinans). Uma monografia sobre o complexo Rio Guaxindiba-Canal Engenheiro Antonio Rezende aponta-o como o mais rico em espécies do norte do Estado do Rio de Janeiro, pois foram encontrados exemplares de Avicennia schaueriana, que o autor só identificou a partir do Rio das Ostras em direção ao sul. A autora do trabalho relata também que o corte de árvores de mangue não está ligado diretamente à substituição do manguezal por aterros destinados à expansão urbana, mas a outras atividades, como construção de pontes e de cercas[29].
            Na parte alagadiça, alastra-se a taboa (Typhadomingensis). Na margem arenosa, encontram-se quixabeira (Sideroxylonobtusifolium), aroeira (Schinusterebinthifolius) e guaxuma (Taliparitipernambucense). Há evidências de corte de Laguncularia, chamada de mangue preto pela população local, mas também de grande número de sementes germinando e de exemplares bastante jovens. Sinal de que o manguezal reage, apesar dos impactos.
            No que concerne à fauna, a espécie de caranguejo dominante é o aratu (Goniopsiscruentata). Ocorrem também o uçá, o guaiamum e siris. As principais espécies de aves que frequentam o ambiente são o quero-quero (Vanelluschilensis), o socozinho (Butorides s. striatus), o joão-teneném (Synallaxisspixi) e o bem-te-vi (Pitangussulphuratusmaximiliani). São comuns as cobras que habitam ambientes aquáticos.


[1]WIED-NEUWIED, Maximiliano de. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989.
[2]SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1974.
[3]TSCHUDI, J. J. Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1980.
[4]OSCAR, João. Escravidão e engenhos: Campos, São João da Barra, Macaé, São Fidélis. Rio de Janeiro: Achiamé, 1985.
[5]BAHIENSE, Norbertino. Domingos Martins e a Revolução Pernambucana de 1817. Vitória: Littera Maciel, 1974.
[6]WIED-NEUWIED, Maximiliano de. Viagem ao Brasil. op.cit.
[7]SOFFIATI, Arthur. O movimento político de Campos em 1855. Vértices v. 14, nº especial 1. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2012.
[8]MARTINS, Fernando José. História do descobrimento e povoação da cidade de S. João da Barra e dos Campos dos Goitacases, antiga Capitania da Paraíba do Sul. Rio de Janeiro: Tipografia de Quirino & irmão, 1868.
[9]BELLEGARDE, Henrique Luiz de Niemeyer. Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva Diretoria em agosto de 1837. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I.F. da Costa, 1837.
[10]ALVES, Leidiana Alonso. Análise geossistêmica da variação temporo-espacial dos espelhos d'água das lagoas do sistema Campelo entre os anos de 2006 e 2015. Campos dos Goytacazes: IFF/Centro, 2016.
[11]MENEZES, Camilo de. Descrição hidrográfica da Baixada dos Goitacases. Campos: Ministério da Viação e Obras Públicas/Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense/Residência da Baixada dos Goitacases, abril de 1940 (datil).
[12]REBELLO, José Silvestre. Memória sobre canais e sua utilidade. O Auxiliador da Indústria Nacional, ano VIII. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1840.
[13]BELLEGARDE, Henrique Luiz de Niemeyer. Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva Diretoria em agosto de 1837, op. cit.
[14]RODRIGUES, Antonio Justiniano. Planta geral do canal do Nogueira. Rio de Janeiro: 1857.
[15]REBELLO, José Silvestre. Memória sobre canais e sua utilidade. O Auxiliador da Indústria Nacional, ano VIII. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1840.
[16]BELLEGARDE. P. A. & NIEMEYER, C. J. Nova carta corográfica da Província do Rio de Janeiro, publicada às expensas de Eduardo Bensburg . Rio de Janeiro: Litografia Imperial, 1865
[17]GÓES, Hildebrando de Araujo. Saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: s/e, 1934.
[18]BRITO, Francisco Saturnino Rodrigues de. Defesa contra inundações (Obras Completas de Saturnino de Brito, vol. XIX). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944.
[19]MENEZES, Camilo de. Descrição hidrográfica da Baixada dos Goitacases.,op. cit.
[20]Ibidem.
[21]MENEZES, Camilo de. Descrição hidrográfica da Baixada dos Goitacases.,op. cit.
[22]DNOS. Saneamento das várzeas nas margens do rio Paraíba do Sul a jusante de São Fidélis: estudos e planejamentos das obras complementares. Relatório geral. Rio de Janeiro: Engenharia Gallioli, 1969.
[23]MORIN, Edgar. O método I: A natureza da natureza. Mira-Sintra: Europa-América, s/d.
[24]CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano I: Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes, 1996.
[25]MACIEL, Norma Crud e SOFFIATI NETTO, Aristides Arthur. Presença de raízes aéreas em Laguncularia racemosa (L.) Gaertn. Combretaceae. Rio Guaxindiba, São Francisco de Itabapoana, RJ, Brasil. Anais do IV Simpósio de Ecossistemas Brasileiros, vol. IV. Águas de Lindóia: Aciesp, 02 a 07/04/1998.
[27]DNOS. Saneamento das várzeas nas margens do rio Paraíba do Sul a jusante de São Fidélis: estudos e planejamentos das obras complementares. Relatório geral, op.cit.
[28]MENEZES, Camilo de. Descrição hidrográfica da Baixada dos Goitacases.,op. cit.
[29]CHAGAS, Gabriele Paiva. Estrutura e distribuição das espécies no manguezal do complexo rio Guaxindiba/canal Engenheiro Antonio Rezende, São Francisco de Itabapoana, RJ. Campos dos Goytacazes: Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, 2011 (monografia de graduação).

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