FOGO

 Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 07 de outubro de 2020

Fogo

            Teorias recentes explicam que a Terra foi formada por fragmentos desprendidos do Sol em seu processo de rotação. Outros fragmentos que se giravam em torno do Sol foram capturados pela Terra. Embora o oxigênio fosse escasso nesse extremamente longínquo tempo, o calor do planeta era muito elevado, da superfície ao âmago.

            Os físicos repreenderão o uso de calor como sinônimo de quente, pois calor é um ramo da física que estuda temperaturas. Assim, frio e quentura são formas de calor. Reformulemos: na sua origem, a Terra era um planeta quente da superfície ao centro. Aos poucos, ela foi esfriando. A matéria incandescente foi se transformando em terra. O mais correto seria rocha, mas estamos seguindo os pensadores gregos pós-socráticos. As rochas são o elemento terra.

            A água é também um elemento físico composto quimicamente por um átomo de hidrogênio e dois de oxigênio. Já existia o ar, mas o teor de oxigênio nele era mínimo, insuficiente para a vida aeróbica. O nitrogênio predominava, como ainda hoje. Mas os microrganismos aeróbicos passaram a produzir oxigênio a partir da fotossíntese, a genial forma de alimentação a partir da radiação solar. Atualmente, a atmosfera compõe-se de 78% de nitrogênio e 21% de oxigênio, além de outros gases em escala reduzida. O vapor d’água integra o ar.

            Três elementos se apresentam de forma estabilizada: ar, terra e água. O fogo é constante no âmago do planeta. Na superfície, ele ocorre naturalmente pela combustão espontânea causada por ressecamento de matéria orgânica e raios. No início da sua aventura, os hominídeos, grupo zoológico do qual fazemos parte, colhiam o fogo na natureza. Como bem mostra o filme “A guerra do fogo” (1981), de Jean-Jacques Annaud, o fogo não era produzido por nenhum artefato. Os grupos hominídeos precisavam mantê-lo acesso permanentemente.

            Supõe-se que o hominídeo “Homo erectus” inventou técnicas de fricção para produzir o fogo. Foi talvez a maior revolução da história, pois permitiu a conquista de cavernas, o prolongamento do dia, a defesa contra animais, o endurecimento de pontas de lança e principalmente o cozimento da carne. Foi também uma revolução bastante democrática, na medida em que as técnicas e tecnologias para a produção do fogo são acessíveis a todos.

            Mas o domínio desse elemento passou a representar um grande perigo a partir da revolução neolítica, caracterizada pela domesticação de plantas e animais. Durante todo o longo paleolítico, as sociedades usavam o fogo para fins muito restritos. Ele podia escapar do controle dos grupos e se alastrar em incêndios em vegetação. Mas era raro. A umidade existente representava um fator limitante.

            Nas sociedades neolíticas, o fogo passou a ser usado sistematicamente para a remoção de vegetação nativa com a finalidade de abrir campos agrícolas e pastagens. Era comum perder-se o controle. Mesmo assim, havia resistências ao fogo na própria natureza. A umidade era a principal resistência. O emprego do fogo aumentou nas civilizações como arma contra a natureza e na guerra com outros grupos sociais.

            Nenhuma sociedade, porém, empregou mais o fogo que a ocidental. Antes mesmo de se expandir pelo mundo, o ocidente se revela um grande incendiário. Consta que o fogo ardeu durante sete anos na ilha da Madeira no século XV. Na colonização do Brasil, o fogo foi usado sistematicamente como arma para destruir a Mata Atlântica. Como os colonos alimentavam a síndrome da inesgotabilidade, parecia-lhes que a floresta jamais acabaria. Brasileiros e estrangeiros esclarecidos condenaram o uso indiscriminado do fogo para a abertura de espaços.

            Ele era e ainda é usado nas lavouras como meio de facilitar a colheita, a exemplo do que se verifica em canaviais. As altas temperaturas provocadas pela queima de folhagem matam os microrganismos responsáveis pela fertilidade do solo. O fogo faz de graça a tarefa de vários trabalhadores, mas destrói.

            Com a revolução industrial de século XVIII, os processos de queima se ampliaram. O carvão, o petróleo e o gás natural passaram a ser queimados. O gás carbônico derivado dos processos de queima passou a se acumular na atmosfera e a avolumar o efeito estufa, até certo ponto necessário para conservar calor no planeta. Se um lençol sobre a Terra é necessário, um cobertor e um edredom da aquecem em demasia. O aumento das temperaturas desregula o clima, provocando secas e chuvas excessivas. A vegetação nativa e plantada torna-se mais vulneráveis ao fogo.

            E hoje não é preciso mais friccionar pauzinhos sobre tábuas para gerar fogo. Um fósforo ou um isqueiro geram fogo instantaneamente. Com matéria orgânica vegetal morta e seca, o fogo se alastra mais rapidamente. No século XX, destruída a Mata Atlântica, a nova fronteira agrícola avança sobre a Amazônia e o Pantanal. Os interessados em ampliar ou conquistar terras ateiam fogo à vegetação aproveitando-se da estação quente e seca. O fogo se alastra e destrói a flora e a fauna. O boi não é bombeiro, como dizem produtores rurais e autoridades. Eles são, isso sim, beneficiários do fogo criminoso. Derrubada, fogo e pisoteio seguidos anuais não permitem que a vegetação nativa retorne ao estado do ano anterior. Assim, ela vai se extinguindo. Junto, vai a fauna. Resultado: empobrecimento dos biomas e da biodiversidade.      

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

SUGESTÕES DE FILMES PARA A QUARENTENA

CINEMA EM TEMPOS DO CÓLERA

RIOS E CÓRREGOS DO SUL CAPIXABA