REFLEXÕES SOBRE AS PANDEMIAS (III)


Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 26 de abril de 2020
Reflexões sobre as pandemias (III)
1- Impactos. Quando um corpo celeste se chocou com a Terra na altura do golfo do México, há 66 milhões de anos, pedras soltas e animais voaram pelos ares, segundo o paleontólogo Steve Brusatte no excelente livro “Ascensão e queda dos dinossauros” (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2019). Muitos já morreram com a queda. O choque levantou muita poeira e provocou uma onda de erupções vulcânicas, bloqueando a radiação solar e a impedindo de chegar com a devida intensidade à superfície terrestre.
Se a Terra sofresse um novo choque como aquele, certamente a humanidade toda sentiria. Talvez fosse nosso fim. A partir daquele choque, os continentes começaram a se afastar uns dos outros. Esse afastamento continua lentamente e não o percebemos. Se um terremoto atinge um ponto do mundo, temos notícias dele pelos meios de comunicação, mas a humanidade toda não sofre seus impactos. Foi o que aconteceu no Japão e no Haiti. Se chove muito ou ocorre uma grande estiagem, também tomamos conhecimento delas, mas nenhuma afeta a humanidade toda, como ocorrido no sudeste brasileiro e na Austrália recentemente. As mudanças climáticas atingem todo o planeta, mas não acreditamos nela porque, ou bem ou mal, continuamos vivendo.
Nem mesmo as duas bombas atômicas lançadas sobre o Japão em 1945 e o desastre de Chernobyl afetaram toda a humanidade de forma drástica. Já com as duas pandemias provocadas pela gripe espanhola e agora com o coronavid-19, a Terra toda foi atingida e o efeito é claramente perceptível: resistência ou morte. Se a humanidade não conseguiu desenvolver o senso de unidade com a globalização, está percebendo que uma pandemia atinge o mundo todo e que o vírus demonstra que somos humanos. Mas, assim que ele for controlado, voltaremos a pensar e a agir localmente. Ele não terá nos ensinado nada porque não queremos aprender.
2- Os intelectuais e a Covid-19. Tenho notado que governantes de países, de estados, de municípios ou acentuam publicamente estarem com a ciência ou não. Macron diz nortear-se pela ciência. Trump e Bolsonaro não. Estar com a ciência significa, por exclusão, não estar com crendices nem com achismos, que não dão segurança. A ciência, sim, confere certeza. Numa entrevista lúcida, Edgar Morin mostrou que a ciência também está repleta de incertezas. Que os cientistas acreditam ser verdadeira a sua opinião. E observa que cientistas e médicos não parecem ter lido Karl Popper, Gaston Bachelard e Thomas Kuhn, epistemólogos que questionam o caráter de certeza absoluta das ciências ditas exatas. Nem mesmo a matemática escapa das incertezas. Cada especialista crê, vaidosamente, estar com a certeza, mas as certezas deles são distintas e confundam a opinião pública, que acredita na infalibilidade da ciência. Gosto dos pesquisadores que confessam seu desconhecimento diante do vírus e que aprendem com seu comportamento.
            Por outro lado, noto grande perplexidade entre cientistas sociais. Eles explicam bem uma tendência política, um golpe de Estado, uma revolução, uma guerra. Eles lidam confortavelmente com o que acontece no âmbito da humanidade, mas se sentem incomodados quando a natureza irrompe no mundo humano e produz catástrofes. Notei essa hesitação em pensadores como Zizek, Harari e Mafesoli. Não digo que todo o cientista social parece apanhado de surpresa durante o banho. Há os muito poucos que fazem análises transdisciplinares. Preciso voltar a este assunto.
3- Medo e esperança. Médicos, pesquisadores, pensadores sociais, líderes religiosos e pessoas em geral (estas com menos convicção) apostam que a humanidade sairá dessa pandemia melhor do que entrou. O espírito de solidariedade e o enfraquecimento dos egoísmos triunfarão. O espírito das janelas, onde muitos batem palmas por aqueles poucos que trabalham para o bem comum, vai se alastrar. Lembrei-me de Lamourette, deputado da Assembleia Nacional Francesa durante a revolução. Num momento em que os deputados se digladiavam e chegavam ao ponto de se agredirem, Lamourette propôs um beijo fraterno entre todos os seus colegas. Em vez de relações fraternas, os deputados se engalfinharam. Nunca as guilhotinas trabalharam tanto. Veio o Terror e a revolução caminhou para a reação napoleônica.
            O medo se transforma em terror e a esperança de um mundo melhor será arquivada pelo pragmatismo político e econômico. Voltaremos ao mundo anterior à pandemia, assim como a vida voltou ao “normal” depois da gripe espanhola.
4- Finlândia. Durante a Segunda Guerra Mundial, Suécia, Noruega e Finlândia construíram depósitos para armazenar alimentos, armas, munições e equipamentos hospitalares. Terminado o conflito, Suécia e Noruega desativaram seus depósitos. A Finlândia não. Inclusive, os depósitos ficam próximos aos hospitais para atendimento mais rápido. Os alimentos são usados perto do prazo de vencimento da validade e substituídos por novos. A Finlândia entendeu que a guerra não é o único perigo que ronda nosso mundo. Existem muitos outros e é necessário estar permanentemente prevenido numa sociedade mundial de risco. Esse tipo de precaução é possível numa economia capitalista.

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