RIOS E CÓRREGOS DO SUL CAPIXABA
Rios e córregos do sul capixaba
Arthur Soffiati
A José Maria Miro
In memoriam
Em
1939, Gilberto Freyre publicou um livro pouco conhecido com o título de
“Nordeste” (“Nordeste:
aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil”,
3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961). Nele, o autor mostra de forma
impressionista os impactos da cana sobre o solo, os rios, as plantas, os animais
e as pessoas. Uma observação pertinente do autor de “Casa grande e senzala” é a
de que as pessoas se voltavam para os rios no século XIX porque eles eram as
vias por onde se viajava e por onde chegavam e saíam os produtos comerciais.
Com a ferrovia e com a rodovia, as casas deram as costas para os rios, que
foram transformados em canais de esgoto e depósitos de lixo. Os rios passaram a
ser lentamente envenenados. Agora mesmo recebo a notícia de que mais uma
barragem será construída no rio Itabapoana para a geração de energia. Ela será erguida
na bela Cachoeira da Fumaça.
Se
os rios Itapemirim e Itabapoana sofreram e continuam a sofrer toda sorte de
agressões, o que dizer dos córregos que existiam entre os dois e chegavam ao
mar? Eles ainda existem, mas poucos os percebem. Em mapas do século XIX, eles
figuram de forma confusa e incompleta, como mostra um mapa de 1871 relativo à
instalação de fios de telégrafo.
Mapa sobre linhas de telégrafo
no sul do Espírito Santo - 1871
Estudei esses
riachos em “Os manguezais do sul do Espírito Santo e do norte do Rio de Janeiro
com alguns apontamentos sobre o norte do sul e o sul do norte” (2ª edição.
Campos dos Goytacazes: Essentia, 2014). Além dos rios Itapemirim e Itabapoana,
identifiquei, naquela primeira tentativa, os córregos d’Anta, do Siri,
Lagoinha, Pitas, Mangue, Tiririca, Caculucage, Boa Vista e Marobá.
Até o século XVII, a unidade de
tabuleiros que se estende do rio Guaxindiba ao rio Itapemirim era coberta por
densas florestas estacionais semideciduais de terras baixas. Trata-se de um
tipo de Mata Atlântica adaptada a clima com duas estações bem marcadas: a
chuvosa e a seca. Durante a estação das chuvas, esse tipo de floresta mostra-se
viçoso. Na estação seca, ela perde de 20 a 50% das folhas. Nela, encontram-se o
pau-brasil, a cariniana, o gonçalo-alves e a famosa peroba-de-campos (VELOSO,
Henrique Pimenta; RANGEL FILHO, Antonio Lourenço Rosa e LIMA, Jorge Carlos
Alves. “Classificação da vegetação brasileira, adaptada a um sistema
universal”. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, 1991).
Mata estacional semidecidual na
estação seca
Essa
luxuriante floresta garantia a distribuição de água para os rios Itapemirim e
Itabapoana, assim como para os riachos que corriam entre eles, formando
pequenas bacias independentes. Contando com vazão mais volumosa que hoje, esses
córregos conseguiam manter suas barras no mar permanente ou periodicamente
abertas. Daí a formação de pequenos manguezais em seus estuários, já que o
mangue é um ecossistema formado por plantas adaptadas à água salobra estuarina
dos cursos d’água que desembocam no mar entre os trópicos, avançando pouco
acima e pouco abaixo deles.
Contudo,
essas vastas floresta que recobriam os tabuleiros foram sistematicamente
derrubadas com machado e fogo. Os desmatadores buscavam madeira de lei, como as
mencionadas acima, e lenha. Acontecia também de elas simplesmente serem
queimadas para a abertura de terras para lavoura e pasto. O diplomata e
naturalista suíço Jacob Tchudi (“Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São
Paulo”. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1980) desenhou uma grande
queimada de mata de tabuleiros em meados do século XIX, quando viajava da
província do Espírito Santo para a do Rio de Janeiro.
Queimada
– Jacob Tchudi - 1857
Até
a década de 1970, o desmatamento era uma prática aceita pela sociedade e pelos governos
de vários países. A partir da Conferência de Estocolmo, em 1972, cientistas e
ambientalistas passaram a condenar o desmatamento, apontando os desequilíbrios
ambientais causados por ele. Mas governos, empresários e população continuaram
a incentivar e aceitar os desmatamentos. Só mesmo o aumento dos estudos,
gerando mais conhecimentos sobre o papel das florestas para o equilíbrio
ambiental, conscientizaram os habitantes e os governos dos países ricos, que
passaram a fazer pressão sobre o Brasil, Congo e Indonésia, os três países
ainda com extensão considerável de florestas tropicais, seja diretamente, seja
por meio dos fundos de investimentos.
Para
a Mata Atlântica, essa pressão chegou tarde. Com relação aos rios, a ausência
de florestas gera erosão, assoreamento e irregularidades no regime hídrico.
Como prova, apontamos as enchentes e as estiagens que castigam os rios
Itapemirim e Itabapoana, afetando principalmente as cidades de Cachoeiro do
Itapemirim e Bom Jesus do Itabapoana. Outras mais também são atingidas, assim
como lavouras e pastagens.
O
desmatamento foi letal para os córregos que cortam os tabuleiros em direção ao
mar. Mas não apenas ele. Tais córregos estão sendo também devorados pela
expansão urbana, pelos aterros, pelas estradas e pela agropecuária. Parece que
estão condenados a desaparecer. O volume de água dos seus cursos foi
drasticamente reduzido por todas essas intervenções antrópicas, transformando
os antigos córregos em lagoas alongadas. Hoje, eles são conhecidos como lagoas
e não mais como córregos. Em 2015, os geógrafos Leidiana A. Alves e José Maria
R. Miro elaboraram um mapa com esses córregos alagoados, identificando, do Itabapoana
para o Itapemirim, os seguintes (omito a lagoa Feia do Itabapoana por suas
características particulares): Marobá, Criador, Boa Vista, Tiririca, Quarteis,
Caculucage, Mangue, Pitas (Cações foi praticamente aterrado), Lagoinha, Siri,
D’Anta, Encantada e Funda.
Em 2019, o autor desse artigo, juntamente com os dois geógrafos
formuladores do mapa acima, publicaram o capítulo “Lagoas do sul do Espírito Santo:
o lugar da natureza na fronteira urbana do sul capixaba” no livro eletrônico “Engenharia
e ciências ambientais: contribuições à gestão ecossistêmica”, organizado por
Maria Inês Paes Ferreira e outros pesquisadores (Campos dos Goytacazes – RJ:
Essentia Editora, 2019).
No texto
intitulado “Contribuição ao conhecimento das bacias hidrográficas do Espírito
Santo”, de Sarmento-Soares, L. M. e Martins-Pinheiro, R. F., datado de novembro
de 2012, os autores listam todos os córregos-lagoas que figuram no mapa acima e
acrescentam mais quatro que já perderam seus nomes. Três foram quase soterrados
pela expansão de Marataízes em direção ao sul. Os povos nativos encontrados na
América pelos europeus costumavam dar nomes específicos a rios, lagoas, plantas
e animais por menores que fossem. Nós, herdeiros dos europeus, aprendemos esses
nomes e estamos apagando-os pouco a pouco.
De todos os
córregos alagoados que se conseguiu arrolar, o mais destacado é a lagoa do
Siri, conhecido ponto turístico de Marataízes. Ele foi cortado por uma ponte da
ES-060, que também seccionou os demais. Existe na lagoa do Siri um manguezal
quase monoespecífico de mangue vermelho. É o maior depois dos de Itapemirim e
Itabapoana, mas ainda não estudado e protegido devidamente. Os manguezais do
sul capixaba serão analisados no próximo artigo.
Alameda formada por mangue
vermelho na lagoa do Siri
O maior deles é, sem dúvida, a lagoa do Criador, que foi barrada pela ES-060, contando com um extravasor para o mar. Todos esses córregos alagoados são protegidos pela legislação vigente como áreas de preservação permanente em toda a sua extensão. Mas ela não é respeitada. A urbanização é, atualmente, sua principal ameaça.
Trecho final do córrego do Criador
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirLeitura prazerosa! As recordações das aulas de campo com o Prof José Maria são vivas. Seu conhecimento compartilhado um legado🌻
ResponderExcluir