ENTREVISTA À FOLHA DA MANHÃ EM 02 DE NOVEMBRO DE 2020
02/11/2020
1 – Analistas políticos do mundo têm
apontado a eleição presidencial dos EUA como a mais importante em algumas
décadas para determinar os destinos do mundo. O que você espera se o democrata
Joe Biden se eleger, como apontam as pesquisas? E se, contrariando elas, como
em 2016, Donald Trump conquistar a reeleição?
A eleição é importante porque o mundo
se polariza mais entre um progressismo moderado e um retrocesso reacionário,
obscurantista, negacionista, anticientífico e propagador de mentiras. Biden não
é um candidato carismático como Obama. Sua vitória, contudo, representa a
reconquista de uma posição perdida. Não espero que ele faça milagres num
contexto tão dividido. Com a reeleição de Trump, antevejo um futuro tenebroso,
pois os Estados Unidos, queiramos ou não, é o coração do mundo democrático. A
recondução de Trump representará o triunfo do atraso e a sua consolidação.
2 – Por conta da Covid, cerca de
1/4 do eleitorado dos EUA já votou pelos correios. Trump tem denunciado
“fraude” por isso. Como o voto pelos correios devem ser computados depois do
presencial, opção preferencial dos eleitores do presidente, há o receio que se
este sair na frente nos swing states, a apuração seja interrompida sob alegação
de irregularidade. O que poderia levar a questão à Suprema Corte, de maioria
conservadora. O que esperar? E por quê?
Em certa medida, isso já
aconteceu em 2000, com a vitória controversa de George Bush sobre Al Gore. A
decisão final coube à Suprema Corte. O caso de Trump parece mais premeditado.
Ele não admite perder em nada, muito menos a votação para a reeleição. Nesse
sentido, ele chama de fraude a eleição pelos correios, quando, nos Estados
Unidos, o voto pelos correios é perfeitamente legal e seguro. O diretor dos
correios é amigo de Trump. Pode haver atraso na entrega dos votos. Ela já
aparelhou a Suprema Corte indicando uma ministra conservadora da mesma linha
dele. Enfim, tudo indica que Trump está com muito medo de perder e está fazendo
de tudo para que isto não aconteça. Se acontecer, ele não deve reconhecer a
derrota nem cumprimentar o vencedor.
3 – Nos EUA, o voto é facultativo. Em
2016, 90 milhões de eleitores não votaram, o que pode ter gerado o resultado
oposto às pesquisas que apontavam a vitória de Hillary Clinton. Ela teve quase
3 milhões de votos a mais que Trump, mas perdeu no sistema do colégio
eleitoral. Além dos institutos de pesquisa terem aprimorado sua metodologia, os
votos pelos correios e antecipados indicam presença maciça do eleitor em 2020.
Isso pode ajudar Biden? Por quê?
Caso Trump espere a contagem final dos
votos sem alarde, creio que essa votação maciça ajude Biden. Em 2016, quase cem
milhões não votaram, na minha leitura, por não simpatizarem com Trump nem com
Hilary. Não importa se esta foi injustiçada, mesmo tendo 3 milhões a mais de
votos que Trump. O que conta é o colégio eleitoral. Mas agora acredito que a
mobilização está sendo maior porque a população enfrentou quatro anos de um
presidente errático. O Trump de hoje não é o Trump de ontem. Agora, ele foi
testado no governo. Isso conta e muito. Daí acredito que essa mobilização
representa a rejeição de Trump mais que um apoio a Biden.
4 – No final do último debate
presidencial, em 22 de outubro, Biden disse que queria marcar seu governo pela
transição dos EUA da matriz energética do petróleo para alternativas limpas,
como a eólica e a solar. Como ninguém imagina que um ambientalista vá votar em
Trump, mas moderados podem temer as consequências econômicas da mudança da
matriz energética, não era uma promessa a ser evitada pelo favorito nas
pesquisas, a 10 dias da urna?
Claro. Biden podia muito bem que dizer
que vai continuar com a matriz energética e desenvolver fontes alternativas de
geração de energia. Isto não seria mentira. Seria apenas não fazer uma
declaração bombástica que lhe pode ser prejudicial. Sabemos muito bem que a
consciência ambiental aumentou nos países em que o capitalismo está mais
avançado, mas ela ainda não tem força para eleger um presidente. Seria bem
melhor para ele não ter feito esta declaração, que permitiu a Trump
aproveitá-la em seu favor. Bastava dizer que voltaria ao Acordo de Paris e a
declaração desastrada já estaria implícita.
5 – Trump já disse que, se reeleito,
irá mudar o comando do FBI, da CIA e do Pentágono. Após Franklin Delano
Roosevelt, presidente de 1933 até morrer em 1945, os EUA passaram a permitir
apenas uma reeleição presidencial. E aqueles que a conquistaram tiveram o segundo
mandato mais “ideológico”, sem precisar mais se preocupar com as urnas, como
foi com Barack Obama. Quais seriam os limites de Trump em um eventual segundo
mandato?
Sempre existem instituições que podem
estabelecer limites, mas, sem dúvida, Trump estaria mais confortável sabendo
que não poderá mais ser eleito. Isso confere a ele mais liberdade. Os eleitores
de Biden que se danem. Ele nunca foi o presidente de todos, como costumam
proclamar os presidentes eleitos. Trump nunca desejou paz para unir o país. Com
a reeleição de Trump, só se pode esperar a radicalização da sua linha ideológica
caótica, mas, ao mesmo tempo, reacionária. E não apenas para os Estados Unidos.
Sua possível reeleição teria repercussão internacional.
6 – Os EUA são o único país do mundo
que votam e elegem seus governos de quatro em quatro anos, desde 1789. Tradição
que mantiveram mesmo a despeito da Guerra de 1812, quando Washington foi
incendiada pelos britânicos; do país dividido pela Guerra de Secessão, da I e
II Guerras Mundias (1914/1918 e 1939/1945), Guerra da Coréia (1950/1953), a do
Vietnã (1955/1975), as duas Guerras do Golfo (1990/1991 e 2003/2011) e a do
Afeganistão (2001 aos dias atuais). Não são provas de fogo demais para uma
democracia temer por Trump? Por quê?
Por esse aspecto, a República dos
Estados Unidos é notável: teve apenas uma constituição com emendas, enquanto o
Brasil teve sete também com emendas e nem sempre resultantes de assembleias
constituintes livres e populares. Idem para o Chile, que acaba de dar um bom
exemplo. Os Estados Unidos também repeliram historicamente golpes de Estado. Mas
a democracia dos Estados Unidos não é plena por conta da eleição indireta. Nem
sempre que ganha nas urnas se elege. O colégio eleitoral foi criado para evitar
o governo de aventureiros e acabou elegendo um. Confesso que vejo em Trump uma
ameaça muito grande à democracia dos Estados Unidos. Ele já vem manchando a
Constituição sem precisar rasgá-la. Vejamos o caso da indicação de uma juíza
conservadora já empossada como mais um trunfo para sua reeleição. E o tempo
todo ele põe à prova a Constituição do país. Estaríamos, então, vivendo uma
distopia.
7 – Acusado por Trump de “socialista”,
Biden sempre foi um moderado em seus 47 anos de vida política. A despeito de
ter feito promessas bem progressistas nesta campanha presidencial, como taxar
as grandes fortunas para custear a assistência social aos mais pobres e impor
um salário mínimo de US$ 15 por hora nos EUA. Como entender os liberais como a
esquerda dos EUA, quando a ótica latino-americana sempre coloca os liberais à
direita?
Nos Estados Unidos, o ponto de
referência para as tendências políticas é muito particular. O que lá se entende
por esquerda, na França, por exemplo, não passa de liberalismo. Existe um
partido comunista nos Estados Unidos, mas ele não tem o mínimo peso
político-eleitoral. Acusar Biden de comunista é uma arma de retórica que pode
causar algum estrago. O próprio Biden se saiu bem no debate ao dizer que ele
derrotou as tendências mais progressistas e que a sua posição é centrista.
Talvez até demais e já comprovada ao longo da sua vida política. Quanto a taxar
fortunas, é um desafio para Biden, muito embora já exista um movimento de
milionários mal vistos pela sua ambição pedindo taxação sobre suas fortunas.
8 – Os governos do PT no Brasil foram
considerados progressistas, assim como o governo Obama nos EUA. E, a despeito
da grande popularidade que chegaram a alcançar, eles foram sucedidos no voto
por governos de espectro político no extremo oposto. Considerada a diferença do
impeachment aqui, como o PT de Lula e Dilma e os Democratas de Obama
contribuíram nas ascensões respectivas de Trump e Jair Bolsonaro (sem partido)?
Não tenho dúvidas de que o PT
contribuiu para colocar Bolsonaro no governo, mesmo que de forma indireta e sem
intenção. O PT não conseguiu sequer unir os progressistas. Pelo contrário, as
vaidades partidárias e pessoais levaram o PT a acreditar que tinha o monopólio
das esquerdas e a liderança delas. Quanto aos Estados Unidos, entendo que Obama
fez um bom governo em termos de política interna e externa, com os excessos
típicos do país. Teve boa atuação na questão ambiental. Revelou-se um grande
estadista. Mas Trump acordou forças sombrias que sempre existiram no país. Elas
engoliram Hilary e o elegeram. Creio que o globalismo de Obama contribuiu para
os discursos de Trump em favor do America first.
9 – Negacionismo científico, flerte com
o racismo, a misoginia e a homofobia, aliança com os neopentecostais no limite
do estado laico, armamentismo entre civis, anticomunismo generalizado a
qualquer adversário ou crítico, guerra contra a imprensa, a intelectualidade e
classe artística, governar em eterno modo campanha, com disseminação de fake
news nas redes sociais para insuflar suas bases mais radicais. A caixa de
Pandora aberta por Trump em 2016, e clonada no Brasil em 2018, ficará mais
próxima do fim se ele não se reeleger?
Do fim, não creio. Nos Estados Unidos,
a caixa de Pandora parece aberta desde a independência. Embora todos os males
tenham saído dela, eles não conseguem sempre se concentrar para se tornar uma
ameaça à democracia. Mas quando os guetos fundamentalistas encontram um gênio
do mal, eles mostram sua garra. Nenhum presidente, por mais progressista que
tenha sido, conseguiu controlar a indústria das armas. Elas representam uma
faceta forte da cultura do país. Essas forças macabras continuarão existindo,
mas não vão se expressar com a mesma liberdade no desejado governo Biden, pois
não serão estimuladas. Espero que essas forças sombrias sejam contidas, pois um
país não pode viver em clima de ódio constante.
10 – Com uma Europa e seus Partidos
Verdes cada vez mais fortes, a “boiada” do ministro brasileiro Ricardo Salles
“passando” na forma das queimadas na Amazônia e no Pantanal parece não ter mais
vez. Com a China, após as restrições até à vacina contra a Covid em parceria
com o Butantan, para salvar vidas de brasileiros, as coisas também não andam
bem. Se Biden se eleger nos EUA, o Brasil de Bolsonaro se torna de vez um pária
mundial? Por outro lado, e se Trump vencer, o presidente brasileiro ganha força
na sua reeleição em 2022?
Parece que o Brasil de Bolsonaro deseja
ser pária. Jornalistas disseram que a vitória de Biden representará a queda de
Ernesto Araújo e de Ricardo Salles. Eles fazem parte do núcleo ideológico,
agora mais enfraquecido. Tem havido muita pressão interna e externa para
enquadrar o governo de Bolsonaro, mas ele tem se mostrado recalcitrante. É de
pasmar um governo tão retrógrado como o dele. Não houve um regresso de duzentos
anos. Afinal, D. Pedro II tinhas ideias progressistas e gostava da ciência,
embora vivendo um contexto esclavagista. Bolsonaro vive num lugar que não existe
fora dos seus fãs. Foram poucos os presidentes progressistas no Brasil, mas Bolsonaro
vive num casulo fora do mundo. Tem e não tem vida própria. Fala para seus
eleitores e sobrevive com apoio de Trump. Se este perder, Bolsonaro deve perder
também em 2022. Não se pode esperar nada digno de um estadista da parte dele.
Apenas que não se reeleja.
11 – Ninguém mais parece duvidar que a
China tende a se tornar a principal potência econômica do mundo. Mas pelo poder
bélico e cultural, além do econômico, os EUA ainda são e serão por algum tempo
o mais próximo do Império Romano à Antiguidade. Em que esta condição pode ser
reforçada ou abreviada pela vitória de Biden ou Trump? Como analisa o fato de
nenhum dos dois prometer armistício na guerra comercial com a China?
Em termos de equilíbrio bipolar, a
China substituiu a URSS com uma diferença: trata-se de uma potência capitalista
com uma ditadura de partido único que se intitula comunista. Mas os marxistas
não entendem esse governo como marxista. A China se tornou uma potência
econômica e política sem caráter proselitista. Não há mais como ignorá-la. Não
cabe mais colocá-la como bode expiatório. Não é mais possível excluir a China.
Trump a colocou como inimigo número 1 doe Estados Unidos. Não convém a Biden,
nesse momento, declarar que vai manter boas relações com a China, mas, se
eleito, creio que relaxará as tensões entre os dois países, ao mesmo tempo
restabelecendo a Parceria Transpacífica. Se Trump fosse verdadeiramente
anti-chinês, não teria desfeito este acordo nem mantido uma conta em banco da
China.
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