O FOGO E A FLORESTA
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 03 de outubro de 2020
O fogo e a floresta
Arthur Soffiati
Gosto de ler autores antigos,
principalmente historiadores. Ainda que seus pressupostos teórico-metodológicos
e suas contribuições empíricas estejam superados, encontro nesses autores algo
que permanece. Nos historiadores atuais, temos a impressão de que suas pesquisas
enterram os antigos ou aproveitam deles o mínimo. Falta-lhes a percepção
epistemológica segundo a qual o conhecimento só é científico se for refutável.
Se tivéssemos tal postura, não estamparíamos a arrogância muito comum nos
medalhões nem desprezaríamos a contribuição dos antigos.
Acabo de ler o ensaio “As queimadas
e as secas”, incluído em “Aspectos da economia colonial”, do historiador João
Dornas Filho. O livro foi publicado pela Biblioteca do Exército em 1958. Lembro
que, naquele tempo, os intelectuais ainda não desconfiavam do que provinha das
forças armadas. Além do ensaio que acabei de ler, o livro contém mais quatro:
“O tropeiro, o ‘cometa’ e o mascate”; “O aparelhamento mecânico da agricultura
colonial”; “A saúva e o Brasil” e “O tabaco e as sociabilidade do brasileiro”.
No início de suas ponderações,
Dornas Filho considera injusto Euclides da Cunha e Caio Prado Jr atribuírem aos
indígenas o uso do fogo para desmatar. Em 1958, a Mata Atlântica já estava
assustadoramente destruída. Quando os europeus chegaram à América, a Amazônia e
os demais biomas que historicamente ficarão dentro das fronteiras brasileiras
se apresentavam íntegros. As inúmeras nações indígenas que os habitavam já
conheciam o fogo, que era usado para abrir apenas algumas clareiras. O tempo se
incumbia de regenerá-las quando abandonadas.
Dornas Filho mostra que o fogo já
era usado para destruir florestas e outras formas de vegetação na Europa antes
de Colombo e Cabral. No reinado de D. João II (1481-1495), chegaram-lhe reclamações de
terras abandonadas que eram castigadas com incêndios propositais. Em 1416,
prossegue o autor, o fogo foi usado para desbravar as ilhas Canárias. Os
incêndios grassaram durante sete anos. A finalidade era abrir campo para o
plantio de cana procedente da Sicília e de Chipre. Como sabemos, a cana é
originária da Índia, mas já havia sido plantada nas ilhas do Mediterrâneo em
sistema de capitania hereditária e de sesmaria.
Assim, o fogo é usado em consonância
com o modo de produção. Dornas Filho não lida com esse conceito explicitamente,
mas, na prática, tem plena consciência de que o fogo usado por uma economia de
subsistência é infinitamente menos danoso do que quando usado por economia de
mercado, que requer terras em larga escala para plantar, criar ou mesmo para
ter o seu domínio a título de poder, como acontece ainda hoje com muitos latifúndios.
Mas o ensaio não se restringe ao
emprego do fogo como ferramenta para o desmatamento. Ele também trata de algo
que aprendi num manual de escotismo quando era pré-adolescente: meteorologia
popular. Escreve também sobre as grandes secas e as grandes enchentes,
notadamente em Minas Gerais. Invocando Paul Gaffarel, em sua “História do
Brasil francês”, defende que o desflorestamento do Brasil se iniciou com o
primeiro europeu. “Iniciada com o descobrimento, nunca mais a destruição
inconsiderada teve fim, agravando-se com a instituição da indústria açucareira,
cujas fornalhas, segundo Antonil, queimavam de 12 a 16 carros de lenha por
dia.”
E ele prossegue transcrevendo
impressões de viajantes que estiveram no Brasil. A mais tocante é a de John Luccock,
que, por ser muito extensa, não cabe nos limites desse artigo. Dornas Filho se
utiliza de uma fonte vista de través pelos historiadores: a experiência pessoal,
as recordações de situações vividas. Se um historiador recorrer a este tipo de
fonte, está sujeito a censura de seus pares.
Com fogo ou sem fogo, ele conclui
que, “dada a frequência com que se repetem essas calamidades (enchentes e
secas), como as da Zona da Mata no ano de 1948, em que uma área de cerca de 30
mil quilômetros quadrados ficou reduzida a destroços, é natural que a
regularidade das chuvas em Minas possa ser atribuída à devastação inconsiderada
das matas.”
Era raro algum estudioso, na década
de 1950, atribuir ao desmatamento com fogo ou machado, enchentes catastróficas
ou secas causticantes. As mudanças climáticas já estavam em marcha, mas não
existiam informações para que algum estudioso as relacionassem com fenômenos
extremos. Há pelo menos uns trinta anos, cientistas e ambientalistas têm
propalado que o clima está mudando drasticamente. Mas governantes e povo em
geral não acreditam, por serem elas gradativas e por não verem algo denominado
aquecimento global. Como disse João Evangelista, “Ama a Deus, que não vê, e
odeia o próximo, que vê”. É como crer em Deus, que não se vê, mas descrer as
mudanças climáticas, que se sente através de chuvas, secas, altas temperaturas,
ventos destruidores, baixa umidade do ar e incêndios colossais.
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