A HUMANIDADE E AS PANDEMIAS
O Jornal, Marataízes, 28 de setembro de 2020
A humanidade e
as pandemias
Arthur Soffiati
Durante cerca de um milhão de anos,
as sociedades dos hominídeos viveram da coleta, da pesca e da caça. O nomadismo
era a norma. Deslocar-se em busca do alimento. Essa mobilidade contribuía para
evitar-se as doenças infecciosas, causadas por microrganismos. Elas ocorriam,
mas não eram endêmicas. Morria-se mais por acidente, ataque de animais e
guerra. Com a sedentarização de algumas sociedades, a partir de dez mil anos
passados, tudo mudou. A agricultura passou a produzir alimentos em parte
guardados para períodos de escassez. Estocados, eles atraíam roedores que,
normalmente transportavam vírus e bactérias. Insetos picavam os animais e
picavam os humanos, transmitindo-lhes doenças muitas vezes mortais.
A peste bubônica, transmitida pela
bactéria Yersinia pestis, e outras
doenças infecciosas eram muito comuns. Com a emergência das primeiras
civilizações e das cidades, as doenças se tornaram mais frequentes. Sua
propagação se tornava mais fácil pelo sedentarismo, pela aglomeração e pelo
deslocamento de pessoas. As condições de higiene eram precárias. Não havia
coleta e tratamento de esgoto e de lixo. Daí a frequência das epidemias. Como
não se conheciam os agentes das doenças e os processos de transmissão e de tratamento,
normalmente as mortes provocavam reduções drásticas de população. As doenças
transmissíveis eram vistas como parte integrante da vida cotidiana. Elas eram
creditadas a deuses, espíritos e demônios, e não a agentes naturais e a
desequilíbrios ambientais. Quando muito, as doenças podiam ser atribuídas à
água e ao ar pestilentos.
Inscrições em pedra, argila e
pergaminho registraram, de forma nem sempre clara, a ocorrência de surtos
epidêmicos na Mesopotâmica, no Egito, em Israel, na Índia, na China etc. A mais
conhecida epidemia das civilizações pré-ocidentais foi a de Atenas, quase
certamente um surto de peste bubônica, que matou muitos habitantes da cidade,
inclusive Péricles, o grande representante da democracia. Nenhuma ganhou
caráter pandêmico porque as sociedades ou não tinham contato ou mantinham
contatos superficiais e esporádicos. A menos que se entenda como pandemia um
surto que atingisse o mundo conhecido na época.
A rigor, a primeira pandemia ocorreu
no século VI d. C. e perdurou até meados do século VIII em ciclos epidêmicos.
Ela recebeu o nome de Peste Justianiana
por ter sido melhor registrada, sobretudo para os ocidentais, no reinado de
Justianiano, imperador romano (c. 482 -565). O império estava praticamente
restrito à Turquia. A doença veio da África oriental, chegou ao Egito em 540 e
se espalhou pelos portos do mar Mediterrâneo. Deles, atingiu o Império Romano
do Oriente, alcançando a Europa ocidental, o norte da África e o Império
Sassânida, com centro na Pérsia e compreendendo o Iraque, parte do Paquistão,
todo o oriente médio e parte da Turquia. Paulo Diácono, no século VIII d. C.,
registrou: “as cidades foram despovoadas, os campos se esvaziaram e as
habitações humanas se tornaram retiros para animais selvagens. ” Paralelamente,
o mundo romano, ou o que restara dele, estava sob pressão de povos considerados
bárbaros.
A
segunda pandemia foi a conhecida Peste
Negra, que atingiu a Europa em 1347-1350, vinda da Ásia central e se
alastrando pela Ásia menor, Índia, oriente médio, Egito, Arábia e norte da
África. Ela se perpetuou em ciclos epidêmicos até início do século XV. Esta
pandemia é mais conhecida hoje. Na época, era vista como fruto de miasmas,
contaminação pelo contato direto ou indireto de pessoas, castigo de Deus, praga
de judeus ou de feiticeiras. Na verdade, ela foi precedida por uma grande fome,
que varreu a Europa entre 1316 e1320. Creditemos-lhe também as precárias
condições sanitárias. As cidades, na fase de formação do ocidente (muito
conhecida como Idade Média), eram poluídas por esgoto e lixo. Os ratos eram tão
comuns e familiares que não eram mencionados nas crônicas, assim como o
bicho-de-pé no Brasil durante muito tempo. Só se tem mais conhecimento das
infestações causadas por ele através dos escritos deixados pelos naturalistas e
viajantes europeus em virtude de eles terem eles sido inclementemente atacados
por essa espécie de pulga.
Estima-se
que a Peste Negra tenha matado entre 30% a 60% da população europeia. Podemos supor que 100 milhões de pessoas
sucumbiram diante da pandemia. A população mundial devia girar em torno de 475
milhões. Ela deve ter caído para 375 milhões no século XIV. Para recuperar-se
do baque, a Europa levou cerca de 200 anos. A peste retornou várias vezes em
surtos epidêmicos localizados. Por esse prisma, a Peste Negra do século XIV foi
a mais letal pandemia da história. A pandemia causada pelo novo corona vírus da
atualidade matou menos de um milhão até o fim de agosto de 2020 numa população
mundial de nove bilhões.
Depois da Peste de Londres, em 1665-66, haverá ainda uma terceira pandemia desta doença, muito pouco conhecida pelo público leigo, e duas pandemias viróticas, além de pandemias potenciais que foram contidas.
Médicos usavam
máscaras com bico de pássaro durante a peste bubônica
Enquanto
a maioria das pessoas conhece, ainda que superficialmente, a Peste Negra e sua
devastação na Europa, poucos ouviram ou leram sobre a Peste Justiniana ou sobre
a Terceira Pandemia de peste
bubônica, no século XIX. Esta começou na fronteira do Tibete com a China e se
espalhou lentamente até Hong Kong, onde chegou em 1894, e daí se alastrou para
todos os portos do mundo pelos navios a vapor. A pandemia atingiu
principalmente Índia e China, Austrália, Escócia, Brasil, EUA. Nestes dois
últimos países, os surtos foram locais e logo contidos.
Supõe-se
que a origem dela se localize na província chinesa de Yunnan, começando em 1855.
A disseminação das doenças transmissíveis ainda era lenta nessa época. O agente
de transmissão viajava de navio para alcançar o mundo. Curiosamente, a Terceira
Pandemia não entrou na Europa. Ressalte-se que os tempos eram outros. Pasteur
já havia descoberto os micróbios. Entre aqueles que estudaram com ele, estava o
cientista franco-suíço Alexander Yersin, que identificou a bactéria causadora
da Peste Negra em Hong-Kong no ano de 1894. Em sua homenagem, ela recebeu o
nome científico de Yersinia pestis.
Os responsáveis por uma doença que matou tantas pessoas e exerceu imenso terror
não eram mais os judeus, as feiticeiras, os gatos etc. Era um ser vivo
microscópico.
Definiu-se
o tripé em que se sustentava a peste bubônica: bacilo causador, rato preto hospedeiro
e pulga vetor. Como os ratos e outros roedores também morriam, entendeu-se que
a alta mortalidade deles obrigava as pulgas a buscarem novos corpos para se
alimentarem, passando a picar pessoas e animais domésticos. Matar ratos para
combater a doença liberava as pulgas para atacarem humanos mais rapidamente. As
pesquisas mostraram que a bactéria causadora inibe seletivamente a resposta
imune inata, que é a primeira linha de defesa do organismo. Algo como um ladrão
desligando o controle de alarme de uma casa para melhor trabalhar.
Seguindo
de perto os livros O enigma da Peste
Negra, de Fernando Portela Câmara (Rio de Janeiro: E-papers, 2015), e A história e suas epidemias, de Stefan
Cunha Ujvari (Rio de Janeiro/São Paulo: Senac, 2003), assustamo-nos com a forma
implacável de morte causada pela bactéria. “O hálito, os vômitos, as fezes e a
urina desses doentes têm um odor intensamente pútrido. É frequente, nesses
casos, a gangrena de extremidades (dedos dos pés e das mãos, podendo se
estender, algumas vezes, para os testículos e a ponta do nariz) e órgãos
internos (baço, fígado, pulmões, ponta do coração, rins, intestinos)”. Assim
Câmara resume suas manifestações.
Contribuíram
para a disseminação da peste a guerra civil chinesa e a construção de
ferroviais nas planícies geladas da Manchúria até a Rússia. Houve perturbação
na ecologia dos gerbilos (ratos-do-deserto) e marmotas, intensificando seu
contato com populações de trabalhadores, militares e refugiados. A exportação
de peles de marmota a partir de 1908 também contribuiu para a propagação da
doença. Em 1910, caçadores mongóis e membros da tribo Buriat perceberam uma
mortandade de marmotas no campo e fugiram. Era uma forma pragmática antiga de
detectar a epidemia.
![]() |
Adicionar legenda |
Existe
uma corrente de pesquisadores que associa os surtos de peste bubônica a
mudanças climáticas. Ocorreu um resfriamento natural no século VI d.C.,
provocando um colapso na agricultura e atingindo o império romano em cheio. Na
mesma época, ocorre a Peste Justiniana. Da mesma forma, houve um forte
resfriamento natural no século XIV, depois de um breve aquecimento global
natural. Ao mesmo tempo, alastrou-se a Peste Negra. A forte explosão do vulcão
Krakatoa, na Indonésia, em 1887-8, não apenas detonou completamente a ilha em
que se situava, como a poeira lançada na atmosfera envolveu o mundo todo e
bloqueou parcialmente a radiação solar. Com isso, ocorreu um resfriamento
natural que deve ter contribuído para a pandemia.
Desde
a revolução industrial do final do século XVIII, emanações gasosas,
principalmente de gás carbônico, estão mudando a composição da atmosfera. Atualmente,
as mudanças climáticas produzidas por atividades humanas tornam-se cada vez
mais acentuadas. Tempestades devastadores, secas inclementes, ventos fortes,
aumento da temperatura média global podem contribuir para novas ondas
epidêmicas e pandêmicas. As epidemias de peste bubônica costumavam acontecer
depois de chuvas intensas que causavam o crescimento da vegetação consumida por
roedores. Já se pode estabelecer uma relação entre chuvas intensas e a
propagação da dengue, da malária e de outras doenças transmitidas por vetores.
Sendo
causada por uma bactéria, a peste bubônica pode atualmente ser combatida com
antibióticos. Mas o tratamento deve começar logo aos primeiros sinais, pois ela
progride em poucos dias, levando à morte.
De
maneira mordaz, o historiador canado-estadunidense William Hardy McNeill
escreveu num de seus livros: “Se olharmos o mundo do ponto de vista de um
patógeno faminto... ele é hoje um magnífico pasto para bilhões de corpos
humanos... que dobra em número a cada 20 a 27 anos, um maravilhoso alvo para
qualquer patógeno que possa se adaptar para melhor nos invadir.” Ainda hoje,
depois de tantos avanços científicos, vírus, bactérias, protozoários, fungos,
vermes e outros parasitas são vistos como algum tipo de maldição solta para atacar
a humanidade. Geralmente, os acusados pela maldição nada têm a ver com as
epidemias e pandemias.
Se
examinamos muito rapidamente as três pandemias de peste bubônica, concluímos
agora com as pandemias da gripe espanhola e da covid-19. Até aqui, lidamos com
doenças infecciosas e transmissíveis causadas pela bactéria Yersinia pestis. Bactéria é um ser vivo
unicelular com estrutura celular e genoma completo sem mitocôndrias
individualizadas nem núcleo diferenciado. Realiza metabolismo energético e
funções genético-reprodutivas próprios.
A
gripe espanhola e a covid-19 foram provocadas por vírus, que são genes
encapsulados em contêiner proteico, algumas vezes envolvidos por membrana.
Estão codificados em DNA ou RNA e dependem de células para produzir réplicas.
Não têm metabolismo energético nem sintetizam por si mesmos suas moléculas.
Por
mais detestáveis que sejam os microrganismos causadores de doenças, é preciso
considerar que a vida depende fundamentalmente desses seres invisíveis. As
bactérias construíram a atmosfera favorável aos grandes animais, inclusive
humanos, e devem sobrevier a uma possível extinção de todos os seres
pluricelulares.
Fernando
Portela Câmara escreve: “A cada conquista sobre o meio ambiente que nos permite
viver melhor e mais confortavelmente, criamos vulnerabilidades que poderão nos
trazer grandes catástrofes. Ao criarmos diques contra as doenças infecciosas,
com antibióticos, vacinas, medidas sanitárias etc., estamos represando
patógenos na esperança de controlá-los, mas desconhecemos a pressão de mutações
que surgem, criando novas adaptações imprevisíveis e novos canais
epidemiológicos.”
Na
quarta pandemia, entra em cena um vírus. Não que ele fosse desconhecido. Os
vírus que acometiam plantas foram descobertos em 1876. Retrospectivamente,
sabemos que várias epidemias do passado foram causadas por vírus. Em 1881, foi
identificado o vírus da febre amarela. Em 1918, último ano da Primeira Guerra
Mundial, eclodiu a Gripe Espanhola,
uma virose pandêmica. Ela se expandiu no seio de uma grande mortandade fruto de
um conflito também global.
Quem
denunciou a morte de muitas pessoas por uma doença contagiosa foi a Espanha,
país não envolvido no conflito. Daí o nome da gripe. O avião já existia, mas
ainda não era usado para voos comerciais. O vírus da febre viajou de navio. A
propagação foi lenta, mas ampla. Os locais primeiramente atingidos foram os
portos. Depois, valendo-se do trem principalmente, ele chegou às cidades do
interior.
O
historiador John M. Barry (A grande gripe.
Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020) acredita que a virose originou-se nos Estados
Unidos e se difundiu pelo mundo graças à guerra. Segundo seus cálculos,
morreram 50 milhões de pessoas numa população mundial de 1.800 bilhão. Só na
cidade do Rio de Janeiro, teriam morrido 35 mil pessoas. Mas são números
estimados, já que os censos não tinham precisão naquele tempo. A Gripe
Espanhola grassou entre 1918 e 1920 em três ondas. Houve o uso de máscaras e
internações, mas não havia ainda respiradores mecânicos e unidades de tratamento
intensivo.
Entre
a quarta e a quinta pandemias, houve surtos potencialmente globais, como a
gripe asiática, a disseminação do vírus HIV, do ebola, da dengue, da zica e da
chikungunya. Assim como a gripe, essas doenças parecem ter vindo para ficar em
forma epidêmica. Em 2002, eclodiu uma epidemia causada pelo vírus Sars-CoV-1;
em 2012, outra pelo vírus Mers-CoV, ambas com potencial pandêmico, mas
contidas. Agora, o mundo é invadido pelo Sars-CoV-2.
A epidemia brotou na China em fins de 2019. A princípio, entendeu-se que se
tratava de uma epidemia localizada. Mas ela se espalhou por todo o hemisfério
norte, atingindo Rússia, Europa Ocidental e Estados Unidos. Depois, ganhou a
direção sul, chegando à Índia, à África e ao Brasil.
O
vírus saiu da natureza devido a contatos promíscuos de humanos com ela. Ganhou
o mundo de avião, chegando primeiro às metrópoles internacionais; depois,
interiorizou-se. As grandes aglomerações humanas, a pobreza, a velhice, a
incompetência dos governantes e a cultura da população facilitam sua
propagação. Os vírus mostram como a humanidade é vulnerável a doenças por mais
que julgue ter superado o perigo dos microrganismos. A Organização Mundial de
Saúde alerta para a ocorrência de futuras pandemias.
Comentários
Postar um comentário