NOSSA FILHA EM KIRIBATI
Nossa filha em Kiribati
Afrânio Sobral
–
Cíntia, assim que puder, mande notícias. Sua mãe e eu estamos apreensivos com
sua viagem. Queremos saber se tudo correu bem.
–
Desculpem a demora, mãe e pai queridos. O que eu fiz não foi uma viagem. Foi
uma expedição a um mundo perdido. Bem que Alfred me disse que eu ficaria
assustada com o voo. Eu também sabia. Aliás, vocês e todos da família sabiam e
disseram que seria uma loucura. Tio Mauro chegou a comentar que não valia a
pena casar com um homem que mora tão longe, por mais jovem, bonito e rico que
ele fosse, kkkkk. Mas, durante e depois da viagem, eu caí na real. Imaginem o
que é sair de Campos de ônibus e pegar um avião para São Paulo. Até aí, tudo
bem. Mas em seguida embarcar para Porto Alegre e de lá para Santiago do Chile.
Já fiz voos mais longos. Já atravessei o oceano Atlântico quando viajei para a
Europa. Foram onze horas dentro de um avião. Senti medo ao ver o oceano em
baixo de mim. Mas nada se compara ao que vivi há uma semana. Saí de Santiago em
direção a Auckland, na Nova Zelândia.
O
Atlântico é café pequeno perto do Pacífico. Depois de dormir em Santiago,
levantamos voo. Aquele oceano mete medo. Eu olhava pra baixo e não via nenhuma
ilha. E ele não acabava nunca. Eu dormia. Quando acordava, lá estava ele. Eu
comia. Quando acabava, lá estava ele. E se o avião caísse? Mesmo que a gente se
salvasse, ninguém chegaria a tempo para nos socorrer. Eu imaginava meu corpo
dentro de um tubarão. De nada serviu tudo o que aprendi de geografia na
faculdade. Nada do que fiz antes nos meus 30 anos se compara ao que eu vivi
nessa viagem louca. Isso não é para humanos, mas para rôbos.
Auckland finalmente. Finalmente
nada. Você dorme e no dia seguinte pega um avião menor até Kiribati. Ao todo,
são 2 dias e 3 horas de viagem. Dizem que nós estamos vivendo num mundo em que
as distâncias se encurtaram. Puxa! Juro por Deus que eu preferia viajar de
navio. Finalmente, cheguei ao aeroporto de Bonriki, onde Alfred me esperava. Quando
desci do avião, não aguentei. Corri para ele e chorei muito. Ele pensou que
fosse de emoção pelo reencontro. Na verdade, chorei por me sentir segura. Em
terra, de onde eu nunca deveria ter tirado os pés. Desculpe essa longa
mensagem. O sinal aqui não é muito bom.
–
Puxa, filha. Que loucura. Conheci duas moças que também se casaram assim como
você. Elas foram passear na Europa e conheceram rapazes com quem acabaram se
casando. Uma mora na Escócia e outra na Austrália. Por mais longe que sejam
esses países, eles são conhecidos. Você também conheceu o Alfred na Europa, mas
confesso que nunca tinha ouvido falar em Kiribati. Só depois procurei esse
lugar no Google. Sua mãe chora muito. Ela sente muito a sua falta. Acha que
nunca mais a verá. Que nunca conhecerá os netos se você tiver filhos. Acha que
você nunca mais virá nos visitar. Não temos mais idade para enfrentar uma
jornada como essa que você nos contou. Não temos condições de ir aí. Você está
gostando? Sente saudades de nós.
–
Mãe e pai queridos, estou escrevendo um e-mail porque o sinal aqui é bom na
região, mas não tão bom para falar com o mundo, kkkkk. Estou rindo para não
chorar de saudade daí. Ao sair do aeroporto, pegamos uma estrada asfaltada que
liga as ilhas do arquipélago. Passamos por Bikenibeu, Eita, Banraeaba, Nanikai,
Terawa Sul, que é a capital de Kiribati, e chegamos a Betia, onde Alfred mora.
A casa dele é deslumbrante. Eu disse que gosto de sentir meus pés firmes na
terra. Mas isso aqui não é terra. Parece mais uma piscina. Em certos pontos,
parece que a estrada flutua sobre o mar. O arquipélago é um atol. O país é
formado por 33 ilhas. Moramos numa que forma um cordão com outras. Se olho para
o interior, vejo uma piscina. Se olho para fora, vejo o oceano aberto. A água é
tão transparente, que vejo tudo com nitidez. Parece que estou num aquário. Mas
também não me sinto segura. Parece que isso tudo vai afundar.
–
Que língua se fala aí? Pelo que vejo, é um país maluco. Sua mãe não para de
chorar. Seu irmão Armando está na fazenda preparando os cavalos para a
Exposição Agropecuária.
–
Morrendo de saudade de vocês. Beijos pro Armando. Aí dá pra andar de cavalo.
Por aqui, acho que ninguém sabe que bicho é esse. As ilhas que formam Kiribati foram conquistada
pelos ingleses. O capitão Davis as transformou em protetorado em 1892. Já tinha
gente morando aqui. Mas sabe como eram os europeus, né? O arquipélago no fim do
mundo recebeu o nome de Ilhas Gilbert no início do século XIX. A língua dos
nativos passou a ser chamada de gilbertês. É a língua oficial do país, mas se
fala muito o inglês também. Em nossa volta, existem ilhas pertencentes aos
Estados Unidos e à França.
– Filha, e essa pandemia, heim? O vírus chegou aí. Vocês estão bem? Já chegou em Campos. Existem alguns casos confirmados. O Brasil está uma bagunça. Ninguém se entende. O presidente está brigando com governadores e prefeitos e dizendo que não há motivo para pânico, que a pandemia é uma gripezinha. Que ele tem histórico de atleta, que a doença não o assusta.
–
Pai e mãe, casei em fevereiro e cheguei aqui nessa piscina natural no início de
março. Logo depois, dez países parecidos a este fecharam os aeroportos: Palau,
Micronésia, Ilhas Marshall, Nauru, Ilhas Salomão, Tuvalu, Samoa, Vanuatu, Tonga
e Kiribati. Estamos literalmente ilhados. Ninguém entra e ninguém sai. Estamos
livres do vírus, mas também não está entrando o dinheiro dos turistas. A
maioria vem da Austrália e da Nova Zelândia. Acho que os americanos e os
europeus não sabem que existem esses países inviáveis. São lindos, mas muito
inseguros. Os hotéis, restaurantes e comércio sofreram uma queda muito grande.
Por mais que Alfred seja um executivo de uma firma importante de turismo, temo
por ele. Mas ele não. Diz que ocupa um cargo importante na empresa e que sempre
haverá convite para trabalho se for despedido. Não sou otimista como ele. Até que
se ele perdesse o emprego e fosse procurar outro na Austrália, na Nova Zelândia
ou na Europa eu gostaria. Estaria mais perto do Brasil. Sem vírus, mas sem
turistas e sem exportar pescado. Por esse lado, vocês podem ficar tranquilos.
–
Querida filha, parece que só eu escrevo, mas sua mãe está aqui nas mensagens,
de corpo, coração, alma e lágrimas. Hoje, seu colega e amigo Soffiati escreveu
um artigo na Folha da Manhã dizendo que o novo coronavírus é a demonstração
mais cabal da globalização, pois está presente em todos os países do mundo, por
menores e mais escondidos que estejam. Pelo que você falou, ele está dizendo
bobagem. Mando o link do artigo pra você ler. Talvez assim você não se sinta
tão afastada de sua terra.
Por
falar em Soff, andei fazendo uns passeios por aqui e encontrei uma planta que
ele vai gostar. É um mangue parecido com o que vi em Gargaú quando fizemos a
excursão. Não lembro o nome dele, mas lembro que Soff falou que o mangue
colonizou toda a região tropical do mundo muito antes que a gente aparecesse.
Ele disse que o mangue globalizou a região tropical do mundo. Eu gostei dessa
sacação. Acho que por isso guardei o que ele falou na minha lembrança. Tirei
uma foto da planta que vou mandar para o e-mail dele. Eles aqui plantam mangue
para conter a erosão do mar. Encontrei um grupo de nativos plantando esse
mangue cheio de ramos sob supervisão de um biólogo. Conversei com ele no meu
mau inglês. Ele entendeu. Perguntei a ela o nome científico do mangue por que
Soff disse que o nome popular muda muito facilmente. O biólogo é nativo. Cursou
biologia na Austrália. Me falou que o nome científico daquela planta é
Rhizophora mucronata. Pedi a ela para escrever de forma correta.
Aliás,
tenho feito contato com algumas amigas daí pela internet. É um jeito para não
me sentir tão sozinha. O Alfred é ótimo, mas ele entende que a gente sinta
falta dos parentes e amigos. Beijos para a mãe, você e Armando. Para meus sobrinhos
e tios também. Para todos os amigos e amigas. Já estou chorando.
– Mãe e pai, eu aqui de novo. Esse país é
incrível. Não apenas por ser um conjunto de ilhas frágeis e lindas. Parece
mesmo o paraíso da Bíblia. Por isso, acho que, no máximo, elas podiam ser
visitadas. Nunca habitadas. Talvez só pelos nativos, que chegaram aqui
primeiro. Mas fiquei sabendo que Kiribati é o país mais oriental do mundo.
Achei coisa de ocidental. Qual o ponto de referência tomado para essa
conclusão? Se for Kiribati, o país mais próximo ao oriente podem ser Canadá,
Estados Unidos e México. O mais distante pode ser a Austrália, que fica
relativamente perto daqui. Mas ficou convencionado e pronto.
Mas
existe uma característica que independe de preconceito. Kiribati tem ilhas
espalhadas pelos quatro hemisférios da Terra. Teoricamente, você pode botar um
pé no hemisfério norte e outro no hemisfério sul. Um no hemisfério leste e
outro no oeste. É o único país do mundo com terras (ou ilhas de coral) nos
quatro hemisférios. E não dá pra gente dizer que é um país gigantesco como a
Rússia ou o Brasil. Kiribati é um dos menores países do mundo. Mas não é só
isso. Quando no oeste de Bairiki, uma das ilhas do país, é manhã de domingo, no
leste de Kiribati é manhã de sábado. Aqui começa o dia e o ano novo.
Agora,
ficou convencionado que o marco zero é a ilha Caroline, onde não mora ninguém.
Dizem que o escritor Umberto Eco andou por uma dessas ilhas malucas para
escrever seu romance “A ilha do dia anterior”.
–
Eu gostaria de te visitar levando sua mãe, mas não temos mais idade para isso.
Armando disse que vai até aí quando baixar saudade muito forte. Ele, Mariana e
as crianças. Adorei as fotos que você nos mandou. O lugar é mesmo lindo, mas
muito longe. Deus não podia ter feito esse arquipélago no litoral brasileiro?
Kkkkk.
–
Receberemos Armando, Mariana, Cristiano e Eneida com a maior alegria. Diga a
eles que a casa é muito grande. Há muitos quartos. E só eu e Alfred moramos
nessa mansão. Alfred está mais tranquilo porque a firma dele garantiu seu
emprego, mas não aceitou sua transferência para um lugar mais civilizado,
kkkkk. O país parece rico, mas é pobre. Não há mais minério para explorar. O
turismo, mesmo em tempos normais, é meio fraco porque o país é muito longe. Por
mais que o solo seja mínimo, o que garante a economia é a produção de copra, a
polpa seca do coco, o mesmo coco da Bahia que a gente conhece. Só que ele é
originário da Ásia. Eu queri arranjar um
emprego aqui. Não nasci para ser dondoca. Já falei isso para as minhas amigas
daí. Saudades do Nilo Peçanha.
–
Filha, está acontecendo alguma coisa? Você não dá notícias a um mês. Por aqui,
todos bem. Sua mãe e eu não saímos de casa. Seu irmão e sua cunhada saem muito
protegidos. Armando gosta muito da fazenda dele em Quissamã. Lá venta muito.
Ele diz que o lugar é muito saudável e que deve ser melhor que Kiribati.
–
Oi, pai e mãe queridos. Desculpe o silêncio. Por aqui tudo bem. Com o
fechamento doa aeroportos, como já falei, o vírus não tem como entrar. Só se
vier nadando, kkkkk. Tenho passado o dia percorrendo as ilhas atrás de emprego.
Encontrei uma família mineira que mora aqui doida para voltar ao Brasil. Só não
encontrei ainda um campista, kkkkk. Dizem que eles estão em toda parte do
mundo. Aqui tem um campus da Universidade do Sul do Pacífico. Pra entrar é
preciso concurso e é preciso ter doutorado reconhecido. Está quase certo que eu
entre numa escola particular para lecionar geografia. Mas preciso adquiri mais
fluência no inglês. Aqui, a maioria da população é cristã e dessa maioria mais
da metade é católica seguidora do papa. A outra parte é protestante de diversas
igrejas. Tem muita igreja por aqui.
–
Que bom, filha. Estamos torcendo para você conseguir o emprego. Vai lhe fazer
bem.
–
Pai, mãe, consegui o emprego, mas tenho uma outra notícia muito boa que me
enche de alegria e também de tristeza. Estou grávida. Vou trabalhar até quando
der. Estou triste porque vocês não vão conhecer seu neto. Farei de tudo para
que meu filho nasça em Campos. Espero que a pandemia termine nesses nove meses
que faltam para o nascimento. Beijos felizes para todos.
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