MANGUE VERMELHO: NOTAS DE UM HISTORIADOR
Mangue vermelho: notas de um historiador
Arthur Soffiati
Vermelho é o mangue/Vermelho o aratu/Vermelho é o sangue/Vermelho o
caju/Vermelho o guará/Também o guaraná/Vermelho é o tiê/Vermelho a pitanga.
Mangue
vermelho: marca registrada e símbolo da globalização do manguezal
O gênero “Rhizophora”
está presente, com suas várias espécies, em todos os manguezais do planeta.
Assim como a atmosfera e a vida, o manguezal está presente em todo o mundo
intertropical, avançando um pouco acima do trópico de Câncer e um pouco abaixo
da trópico de Capricórnio. De preferência, nos estuários, mas também em certas
ilhas e certas praias que lhe oferecem condições mínimas para prosperarem. O
mangue vermelho estava presente na origem desse ecossistema tão singular, no Sudeste
Asiático. Dali, ele navegou a leste e a oeste, passando pela seleção natural,
adaptando-se e gerando novas espécies. Sempre com sua característica: o caule
se ramifica e assume o aspecto de uma aranha. Sua semente (propágulo) é também
inconfundível: comprida como uma vareta e afilada numa das pontas, como uma
caneta. É a árvore perfeita do manguezal, funcionando como sua marca registrada
ao lado da lama em que se sustenta.
Muitas são suas
espécies, todas elas integrantes de um gênero: “Rhizophora annamalayana”, “R.
apiculata”, “R. harisonii”, “R. lamarckii”, “R, mangle”, “R. mucronata”, “R.
racemosa”, “R. samoensis”, “R. stylosa”. Convencionou-se que o país mais
oriental do mundo, o primeiro país a servir como ponto zero para a contagem do
dia, é Kiribati, formado por 33 ilhas coralígenas no oceano Pacífico. Lá, o
mangue vermelho é comum. Depois, o encontramos nos demais países formados por
ilhas também no Pacífico, na Austrália, nas incontáveis ilhas da Indonésia, no
sul da China, no Sudeste Asiático, na Índia, no Sri Lanka, nas costas oriental
e ocidental da África, na costa oriental da América e na sua costa ocidental
até o rio Tumbes e no arquipélago de Galápagos.
Os manguezais mais afastados da linha
equatorial, ao norte, encontram-se no Japão. Mais precisamente na foz do rio Minatogawa,
na ilha de Tanegashima. Nessa ilha, cujas coordenadas são 30°34′26″N 130°58′52″L., ocorreu o primeiro encontro entre japoneses e portugueses, no século
XVI. A confiar na informação de Gerard Taaffe, que não parece ser um
especialista em manguezais, a espécie que aí ocorre, é a “Rhizophora candel” (TAAFFE, Gerard. Rare mangroves
left unprotected. The Japan Times, 28
de fevereiro de 2001). Os estudiosos sabem que
as plantas de manguezal diminuem de porte à medida que se afastam da linha do
equador. Nessa ilha, as plantas são arbustivas, de pequena estatura. Mas lá
está o mangue vermelho a assinalar que ali se encontra um manguezal.
Encontro
pessoal
Encontrei o mangue
vermelho pela primeira vez em 1955, na ilha do Mel, baía de Paranaguá, Paraná.
Meu pai foi designado para chefiar o forte Nossa Senhora dos Prazeres nas
férias de seu comandante. Eu tinha oito anos e era encarregado de buscar a
marmita da família numa senhora que cozinhava para fora. Certo dia, desci a
escada de madeira do forte em direção à casa da cozinheira e passei por um
córrego que descia de um morro e defluía no mar quando a maré permitia. Era uma
água avermelhada. Parei para admirá-la. Olhei para o córrego e vi uma árvore
dentro d’água com seus tentáculos. Fiquei maravilhado e, ao mesmo tempo,
assustado. Aquela árvore contrariava o padrão conhecido de árvore: um tronco
sobre um aranhol de raízes e mergulhado n’água.
Só em 1980, voltei a
encontrar o mangue vermelho, dessa vez na foz do rio Paraíba do Sul, então
totalmente envolvida pelo município de São João da Barra, que se constituiu em
torno de suas margens. Mais uma vez, contemplei a sua imponência. Sessenta e
seis anos depois, voltei ao local do meu primeiro encontro, mas não havia
nenhum exemplar adulto do mangue vermelho no riacho, que continuava lá. Apenas
uma muda que prometia crescer se deixassem. Os manguezais orlam a ilha, com o
mangue vermelho presente em outros pontos.
Plântula de mangue vermelho no ponto 0 da minha vida
Encontro dos
europeus com o mangue vermelho
Milhões de anos após a colonização
da zona intertropical pelo manguezal, outras globalizações de civilizações se
processaram e, finalmente, a maior de todas as globalizações humanas começou no
século XVI. Ela foi iniciada pelos portugueses no século XV, representando a
civilização ocidental. Até então, as informações sobre o manguezal eram
escassas e chegavam através de livros de greco-romanos e islâmicos. Os europeus
não conheciam o ecossistema que se desenvolvia preferencialmente nos estuários
de rios com curso na zona intertropical.
Durante todo o século XV, os
portugueses devem ter topado com ele, mas ainda não se conhecia a palavra
mangue. Navegantes famosos, como Cadamosto, Pedro Sintra (CADAMOSTO, Luís
de e SINTRA, Pedro de. Viagens.
Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1948), Duarte Pacheco Pereira (PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo de Situ Orbis. Lisboa:
Tipografia Universal, 1905),
Bartolomeu Dias, Cristóvão, Vasco da Gama (GAMA, Vasco da. O descobrimento das Índias: o diário de
Vasco da Gama. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998), Pedro Álvares Cabral (PEREIRA, Paulo Roberto (org). Os três únicos testemunhos do descobrimento
do Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999) e Fernão de Magalhães (PIGAFETTA, Antonio. A primeira viagem ao redor do mundo. Porto Alegre: L&PM, 1997) (a serviço da Espanha) falam de vegetação
em suas rotas, mas não a descrevem de modo que possamos identificá-la. Ahmad
Ibn-Magid, o piloto árabe que orientou Vasco da Gama na rota da África Oriental
à Índia, também não faz registro explicitador: “São baixios pantanosos, juntos
a montanhas – conhece-os só o meu Deus, Senhor glorioso.” (CHUMOVSKY, T.
A. Três roteiros desconhecidos de Ahmad
Ibn-Majid. Lisboa: Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da
Morte do Infante D. Henrique, 1960).
Teixeira da Mota
observa que “O termo ‘mangue’ regista-se em várias fontes desde fins do século
XVI. Hoje, no português, prevalece a forma ‘mangal’, embora também se use
‘mangue’, para designar várias espécies de “Rhizophora”, “Laguncularia” e “Aviccenia”.
(MOTA,
A. Teixeira. Notas a DONELHA, André. Descrição
da Serra Leoa e dos rios de Guiné e do Cabo Verde. Lisboa: Junta de
Investigações Científicas do Ultramar, 1977). No século XIX, Martius esclarecerá que a palavra “mangue” tem origem
malaia. Portanto, ela não podia ser empregada no século XV e em boa parte do
século XVI, até ser incorporada à língua portuguesa.
Consta que, no Brasil, a primeira
descrição do ecossistema mangue e da planta mangue vermelho foi feita pelo
Padre José de Anchieta em carta datada de maio de 1560: “DA ÁRVORE MANGUE: Também
há outras árvores, que por toda parte cobrem os braços de mar, onde crescem:
cujas raízes estendendo-se, umas desde quase o meio do tronco, outras do ponto
em que os galhos ao nascer se levantam, quase do comprimento da lança, pouco a
pouco vergam para a terra, até lá chegarem depois de muitos dias.” (ANCHIETA, José
de. “Carta fazendo a descrição das inúmeras coisas naturais, que se encontram
na província de S. Vicente hoje S. Paulo”. In: - Cartas
inéditas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/Instituto de
Documentação, 1989).
No século XVI, Gabriel Soares de
Souza também se admira diante da árvore:
“Canapaúba é outra casta de mangues, cujas árvores são muito tortas e
desordenadas, muito ásperas da casca, cujas pontas tornam para baixo em ramos
muito lisos, enquanto novos e direitos, e vêm assim crescendo para baixo, até
que chegam à maré; e como esta chega a eles logo criam ostras, com o peso das
quais vêm obedecendo ao chão até que pega dele, e como pega logo lança ramos
para cima, que vão crescendo mui desafeiçoados, e lançam mil filhos ao longo
d’água, que tem tão juntos que se afogam uns aos outros”. (SOUSA, Gabriel
Soares de. Tratado descritivo do Brasil
em 1587, 3ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938). Ainda no século XVI, Fernão Cardim
maravilhava-se com aquela estranha árvore: “E logo deitam muitas trempes, e
raízes na terra, e todas estas árvores estão encadeadas e feitas em trempes, e
assim as raízes, e estes ramos tudo fica preso na terra; enquanto são verdes
estes gomos são tenros, e porque são vãos por dentro se fazem deles boas
frautas.” (CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980).
Depois de fracassar na criação de
uma colônia no Rio de Janeiro, em meados do século XVI, os franceses fizeram
nova tentativa no século XVII no Maranhão. Pretendia-se criar a França
Equinocial. Vários franceses envolveram-se no empreendimento. Missionários
também se engajaram, entre eles Ive Devreux e Claude d’Abeville. Este segundo
também deslumbrou-se com o manguezal e com o mangue vermelho: “há tantas ilhas
ao longo da costa que se faz impossível chegar à terra firme; tanto mais quanto
esta se acha coberta de certas árvores que dão o nome de Apparituriers, cujos
galhos se vergam ao tocarem o chão, criam raízes formando outras árvores que
crescem e deitam novos galhos, os quais criam raízes e formam novas árvores; e
de tal modo se entrelaçam árvores e raízes que parecem constituir uma só planta
alastrando-se por toda parte. Quando outra coisa não houvesse, isso bastaria
para tornar a costa inacessível a ponto de não se poder imaginar sem o ter
visto. Somente um puro espírito, suscetível de penetrar através das coisas, ou
um pássaro capaz de voar por cima delas, poderia atravessar esses baluartes
erguidos por Deus e pela natureza em redor do país. Mas o acesso se torna tanto
mais difícil quanto nessas ilhas e sob os apparituriers, só se deparam charcos
e areias movediças, nas quais a gente afunda até a cintura e mesmo até a cabeça
e das quais uma vez atolado, não há força humana capaz de safar o sujeito. E
acontece ainda que duas vezes ao dia, cobre a maré esses pântanos e areias
movediças e passa por cima das raízes dos apparituriers erguidas além da
superfície da terra, em muitos lugares à guisa de altas muralhas.” (ABEVILLE, Claude d’. História da
missão dos padres Capuchinhos na ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975).
Da zona costeira da
África, também chegaram notícias de portugueses e nativos aculturados sobre o
manguezal. André Alvares D’Almada, menciona o ecossistema várias vezes, mas não
entra em detalhes (ALMADA,
André Alvares D’. Rios de Guiné do Cabo Verde. Porto: Tipografia Comercial Portuense,
1841). Em 1625, André Donelha
escreve sobre o mangue vermelho na costa ocidental da África: “O mangue é mui
rijo; as folhas arremedam a do loureiro, mas mais grossas e lisas; não dá
fruto, mas dá umas flores pequenas, a modo de coroa de romã. Delas sai a raiz,
a modo de uma vela de cera, e vem crescendo para baixo a buscar a terra, sempre
direitos como um pique, delas de grossura de um dedo e como a vara da justiça,
delas de comprimento de dois e três piques e de menos, segundo a altura do mangue,
e se faz algum nó dele saem cinco ou seis raízes. Tanto que dá na vasa, prende
e se engrossa e deita ramos e folhas, que cresce para cima até dar flor e
deitar outras raízes. Não se achará mangue que tenha o pé em terra, senão no
ar, sobre raízes, de maneira de um braço e mão com os dedos abertos postos
sobre uma mesa ou no chão, que servem das raízes. Sempre têm os mangues as
folhas verdes, posto que caiam muitas, não se verão sem folhas.” (DONELHA,
André. Descrição da Serra Leoa e dos rios
de Guiné e do Cabo Verde. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do
Ultramar, 1977).
Na “Descrição da costa da Guiné desde Cabo Verde até a Serra Leoa etc”, atribuída a Francisco de Azevedo Coelho e datada de1669, assim como na “Descrição da costa de Guiné e situação de todos os portos e rios dela”, creditada a Francisco de Lemos e datada de 1684, o mangue é mencionado várias vezes, mas sem destaque para o mangue vermelho (PERES, Damião (introdução e anotações históricas). Duas descrições seiscentistas da Guiné. Lisboa. Academia Portuguesa da História, 1953).
Da costa oriental da África,
menciono apenas um relatório nomeando a ocorrência de “Rhizophora mucronata” em
Moçambique, mas sem desenho (GOVERNO DE MANICA E SOFALA. Breve notícia sobre Manica e Sofala, 1956).
Ao enumerar as espécies
de manguezal de Timor, Affonso de Castro começa com o gênero “Rhizophora”, mas
não a ilustra com nenhum desenho (CASTRO,
Affonso de. As possessões portuguesas na
Oceania. Lisboa: Imprensa Oficial, 1867). Os portugueses eram avaros com representações visuais.
Economia
Os povos pioneiros das terras intertropicais incorporaram os manguezais à
sua economia, com o mangue vermelho merecendo atenção especial. Existe uma
espécie de ostra que se desenvolve nas ramificações do caule da planta. Era
comum cortar a ramificação e levar o cacho de ostras com o fim de prepará-las
ou comê-las diretamente. Existe mais de um relato sobre as propriedades
medicinais do caule, das folhas e da semente (propágulo) do mangue vermelho.
No período colonial
brasileiro, Antonil percebeu a importância econômica do manguezal: “Ter
olaria no engenho, uns dizem que escusa maiores gastos, porque sempre no
engenho há necessidade de formas, tijolo e telha. Porém, outros entendem o
contrário, porque a fornalha da olaria gasta muita lenha de armar, e muita de
caldear, e a de caldear há de ser de mangues, os quais, tirados, são a
destruição do marisco, que é o remédio dos negros. E, além disto, a olaria quer
serviço de seis, ou sete peças, que melhor se empregam no canavial ou no
engenho, quer oleiro com soldada, roda e aparelho, e quer apicus, ou barreiro,
donde se tire bom barro, e tudo isto pede muito gasto, e com muito menos se
compram as formas e as telhas que são necessárias. O melhor conselho é meter um
crioulo em alguma olaria, porque este ganha a metade do que faz, e em um ano
chega a fazer três mil formas, das quais o senhor se pode valer com pouco
dispêndio. Tendo, porém, o senhor do engenho muita gente, lenha e mangues para
mariscar de sobejo, poderá também ter olaria, e servirá esta oficina para
grandeza, utilidade e comodidade do engenho.” (ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. São Paulo: Melhoramentos/Brasília:
INL, 1976).
O mangue vermelho não
aparece na passagem. O autor se refere apenas ao ecossistema. No Rio de Janeiro
do século XVII, Jesuítas e moradores da cidade se enfrentaram por conta do
manguezal. A população ganhou a contenda. Na Bahia, curtumes e pescadores
também se chocaram por causa de interesses econômicos antagônicos. Os ricos
desejavam o monopólio do mangue vermelho para obtenção de tanino para a
curtição. Os pescadores queriam a árvore em pé para atrair o pescado. A Coroa
portuguesa interveio no conflito, baixando um alvará (SOFFIATI, Arthur. O manguezal
na história e na cultura do Brasil.
Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2006).
Ciência
A
rigor, os primeiros cientistas que olharam para o mangue no Brasil e no mundo
tropical foram os holandeses. No Brasil, Guilherme Piso, durante a dominação
holandesa do Nordeste, entre 1530 e1554, teve a sua atenção atraída para o
mangue vermelho. Em seu tempo, ainda não existia a nomenclatura binária para
batizar espécies. Assim, o naturalista holandês chamo o mangue pelo nome que os
nativos lhe davam. Ele desenhou um cacho de propágulos da planta em seu livro
(PISO, Guilherme. História natural e
médica da Índia Ocidental. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro,
1957).
Representação de propágulo de mangue vermelho (Rhizophora sp) por Guilherme Piso, em 1648
Estampa de “Rhizophora mangle” contidas em “Relato de uma seleção de plantas da América”
O grande naturalista alemão Carl Friedrich Philipp von Martius também
dedicou um capítulo da sua monumental obra ao mangue vermelho. Seu encontro com
a planta, exótica para um europeu, ocorreu em São Paulo (MARTIUS, Carolus
Fridericus Philippus de e EICHLER, Augustus Guilielmus (Urban, Ignatius, iisque
defunctis successor). Flora Brasiliensis
Enumeratio Plantarum in Brasilia Hactenus Detectarum. S/l: s/d.).
Mangue vermelho na obra de Martius
John
James Audubon (1785–1851)
foi um naturalista nascido nos Estados Unidos, dedicando-se à ornitologia e à ilustração.
Ao tratar do cuco-do-mangue, onde ele faz a ave pousar? Poderia ser em qualquer
árvore do mangue sem a preocupação de detalhá-la. Mas ele pousa o cuco no ramo
de um mangue vermelho (AUDOBON, John James. The
birds of America, volume four. New York: Dover Publications, 1967).
Na
baia da Guanabara, o naturalista alemão Hermann
Burmeister observa: “Ao entrar no rio
Macacu, os arbustos de mangue (“Rhizophora mangle” L.) aproximam-se de ambos os
lados cada vez mais, e a água torna-se francamente castanha, mas clara, assim
como um café bem fraco.” (BURMEISTER, Hermann. Viagem ao Brasil.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980).
E
o naturalista brasileiro Francisco Freire Alemão escreveu sobre o manguezal e o
mangue vermelho quando esteve no Ceará, presidindo a Comissão
Científica de Exploração (ALEMÃO,
Francisco Freire. “Mangue de aspecto florestal” 02/05/1859. Vol 2 (maio-junho).
Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, I-28,7,3 (1-20). No início do texto, ele desenha um grupo da espécie
em forma de esboço. Ele também deixa uma nota sobre o ecossistema: “Uma boa parte desse alagadiço, à beira do
rio, está coberta de mangues. Foi para mim de grande admiração e surpresa a vista
desses mangues; e custou-me a acreditar que estas enormes árvores eram os
mesmíssimos nossos mangues. Figure-se uma floresta de árvores de
Freire
Alemão estava diante de um bosque de mangue nas proximidades do equador, onde
eles assumem dimensões florestais, como aqueles que conheci no Pará e no rio
Parnaíba. Num deles, eu subi para beijar seu tronco em sinal de respeito e
fascínio.
E o notável botânico campista
Alberto José de Sampaio escreveu: “Assim,
“Rhizophora mangle” na América, na África e nas Costas da Oceania; “R.
mucronata” na costa asiática; essas duas espécies são vicariantes, uma
representa a outra, representando o gênero Rhizophora que dá uma mesma
fisionomia aos mangues da Ásia, da América, África e Oceania. Há no entanto
outros mangues, com uma flora genérica e específica diversa; o que quero frisar
é que os mangues do Brasil não são nem exclusivamente brasileiros, nem somente
americanos” (SAMPAIO,
Alberto José de. Fitogeografia do Brasil, 3ª ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1945).
Sensível a observação de Sampaio.
Por um lado, ele conclui que o manguezal não é um ecossistema que se possa
entender como brasileiro num livro sobre os biomas brasileiros, mas que povoa o
mundo intertropical. Ele traz fundamento à tese que defendo de uma globalização
promovida pelo manguezal, assim como o ar, a flora e a fauna. Mas aqui, a flora
está mais especificada.
Arte
Geralmente desconhecedores das minúcias do manguezal, o
artista plástico tem sua atenção logo voltada para o mangue vermelho. É a
espécie dos estuários tropicais mais retratada juntamente com a lama e com o
caranguejo. Mencionarei apenas Rugendas para ilustrar esse fascínio pela planta
no século XIX, que muitas vezes vinha de mistura com repúdio pela vasa fétida (RUGENDAS, João Maurício. Viagem
pitoresca através do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp,
1979).
Detalhe do manguezal na foz do rio Inhomirim, baía de Guanabara. João Maurício Rugendas
Vários outros artistas o retrataram posteriormente. Armando
de Magalhães Corrêa ilustrou dois livros seus com o mangue vermelho,
destacando-o mais no dedicado às ilhas da baía de Guanabara, em que assume
postura científica e pedagógica (CORRÊA,
Armando de Magalhães. Águas
cariocas: a Guanabara como natureza. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2016).
Detalhes de folhas, flores e propágulos de mangue vermelho em bico-de-pena de Magalhães Corrêa
Nesse bico-de-pena, o artista anota
que o mangue vermelho é também conhecido como mangue verdadeiro, como procede
Manuel Pio Corrêa no verbete “Mangue-verdadeiro” (CORRÊA, Manuel Pio. Dicionário das plantas úteis do Brasil e das
exóticas cultivadas, vol.V. Rio
de Janeiro: Ministério da Agricultura/Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal, 1984).
Na arte popular, o
mangue vermelho é também o que se apresenta com grande plasticidade para os
artistas. Alguns deles vivem na borda do mangue e dependem dele como fonte de
subsistência. Nas minhas andanças pelo Brasil, tenho procurado adquirir telas
de pintores desconhecidos, mas íntimos do manguezal. Selecionei um quadro de
Cavalcante, pintor paraense, para ilustrar a arte naïf inspirada pelo
manguezal, notadamente pelo mangue vermelho e pelo guará, que também é
vermelho.
Flor do mangue, de 1965. Mangue vermelho como inspiração
O maior centro produtor de arte que toma o manguezal
como motivo é Recife. Os manguezais de Pernambuco inspiraram a poesia de João
Cabral de Melo Neto, a ficção de Josué de Castro, a música do “Manguebeat”, a
fotografia de Maureen
Bisiliat e coreografia de Deborah Colker. Atualmente, é grande o número de pintores que
passam pelo mangue e percebem a plasticidade do mangue vermelho. Ele está
presente nas telas de Antonio Mendes, Sandro Maciel, Wagner Ribeiro, Marcelo Peregrino Samico, Filipe Arruda,
Feliciano dos Prazeres, Bruno de Souza Leão e outros. Tomemos uma tela de
Feliciano dos Prazeres para ilustrar essa onda promissora de artistas
interessados pelo manguezal, frequentemente ilustrando este ecossistema com o
mangue vermelho.
Mangue I – Feliciano dos Prazeres
Minha terra
tem mangue vermelho/Onde canta o martim-pescador
O território que se transformaria no suporte da região norte do Estado do
Rio de Janeiro é limitado, ao norte, pelo rio Itabapoana e, ao sul, pelo rio
Macaé. Entre ambos, correm os rios Guaxindiba, Paraíba do Sul, o antigo Iguaçu
(hoje com a barra fechada e com o nome de Açu) e o canal da Flecha, aberto por
força humana e ligando a lagoa Feia ao mar). Além desses, existem, nos
tabuleiros de São Francisco de Itabapoana, vários córregos que, no passado,
contavam com manguezais. Também as lagoas de Gruçaí e Iquipari abrigavam
manguezais.
Atualmente, o mangue
vermelho habita os rios Itabapoana, Guaxindiba, Paraíba do Sul e Macaé. O maior
de todos é o rio Paraíba do Sul. Existem nele exemplares expressivos de mangue
vermelho. Assim também, mas em menor proporção, no rio Itabapoana. Podemos
encontrar alguns exemplares pujantes no pequenino rio Guaxindiba e uma
população acachapada de mangue vermelho na lagoa do Açu. No rio Macaé, a
espécie está seriamente ameaçada pela urbanização desenfreada que vem ocupando
as margens do rio de mesmo nome e suprimindo os manguezais. Exemplares isolados
e raquíticos podem ser encontrados na lagoa de Iquipari.
Conjunto de mangue vermelho na lagoa do Açu
Medidas urgentes para
proteção dos resquícios de manguezal e para a ampliação de sua área tornam-se
urgentes.
Estuário do rio Paraíba do Sul – desenho de Percy Lau mostrando mangue vermelho, caranguejo-uçá e martim-pescador
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