AS CINCO PANDEMIAS DA HUMANIDADE
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 05 a 19 de setembro de 2020
As cinco pandemias da humanidade
Durante cerca de um milhão de anos,
as sociedades dos hominídeos viveram da coleta, da pesca e da caça. O nomadismo
era muito frequente. Essa mobilidade contribuía para escapar-se das doenças
infecciosas causadas por microrganismos. Elas ocorriam, mas não eram endêmicas.
Morria-se mais por acidente, ataque de animais e guerra. Com a sedentarização de
algumas sociedades, a partir de dez mil anos passados, tudo mudou. A
agricultura passou a produzir alimentos em parte guardados para períodos de
escassez. Estocados, eles atraíam roedores que, normalmente transportavam vírus
e bactérias. Insetos picavam os animais e picavam os humanos, transmitindo-lhes
doenças muitas vezes mortais.
A peste bubônica, transmitida pela
bactéria “Yersinia pestis”, e outras doenças infecciosas eram muito comuns. Com
a criação das primeiras civilizações e das cidades, as doenças se tornaram mais
frequentes. Sua propagação se tornava mais fácil pelo sedentarismo e pela
aglomeração de pessoas. As condições de higiene eram precárias. Não havia
coleta e tratamento de esgoto e lixo. Daí a frequência das epidemias. Como não
se conheciam os agentes das doenças e os processos de transmissão e de
tratamento, normalmente as mortes provocavam reduções drásticas de população.
As doenças transmissíveis eram vistas como parte integrante da vida cotidiana.
Elas eram creditadas a deuses, espíritos e demônios, e não a agentes naturais e
a desequilíbrios ambientais.
Inscrições em pedra, argila e
pergaminho registraram, de forma nem sempre clara, a ocorrência de surtos
epidêmicos na Mesopotâmica, no Egito, em Israel, na Índia, na China etc. A mais
conhecida epidemia das civilizações pré-ocidentais foi a de Atenas, quase
certamente um surto de peste bubônica, que matou muitos habitantes da cidade,
inclusive Péricles, o grande representante da democracia da cidade-estado.
Nenhuma ganhou caráter pandêmico porque as sociedades ou não tinham contato ou
mantinham contatos superficiais e esporádicos. A menos que se entenda como
pandemia um surto que atingisse o mundo conhecido na época.
A rigor, a primeira pandemia ocorreu
no século VI d. C. e perdurou até meados do século VIII em ciclos epidêmicos.
Ela recebeu o nome de Peste Justianiana por ter sido melhor registrada,
sobretudo para os ocidentais, no reinado de Justianiano, imperador romano (c.
482 -565). O império estava praticamente restrito à Turquia. A doença veio da
África oriental, chegou ao Egito em 540 e se espalhou pelos portos do mar
Mediterrâneo. Deles, atingiu o Império Romano do Oriente, alcançando a Europa
ocidental, o norte da África e o Império Sassânida, com centro na Pérsia e
compreendendo o Iraque, parte do Paquistão, todo o oriente médio e parte da
Turquia. Paulo Diácono, no século VIII d. C., registrou: “as cidades foram
despovoadas, os campos se esvaziaram e as habitações humanas se tornaram
retiros para animais selvagens. ” Paralelamente, o mundo romano, ou o que
restara dele, estava sob pressão de povos considerados bárbaros.
A segunda pandemia foi a
conhecida Peste Negra, que atingiu a Europa em 1347-1350, vinda da Ásia central
e se alastrando pela Ásia menor, Índia, oriente médio, Egito, Arábia e norte da
África. Ela se perpetuou em ciclos epidêmicos até início do século XV. Esta
pandemia é mais conhecida hoje. Na época, era vista como fruto de miasmas,
contaminação pelo contato direto ou indireto de pessoas, castigo de Deus, praga
de judeus ou de feiticeiras. Na verdade, ela foi precedida por uma grande fome,
que varreu a Europa entre 1316 e1320. Creditemos-lhe também as precárias
condições sanitárias. As cidades, na fase de formação do ocidente (muito
conhecida como Idade Média, expressão propositalmente evitada pelo autor), eram
poluídas por esgoto e lixo. Os ratos eram tão comuns e familiares que não eram mencionados
nas crônicas, assim como o bicho-de-pé no Brasil durante muito tempo. Só se tem
mais conhecimento das infestações causadas por ele através dos escritos
deixados pelos naturalistas e viajantes europeus em virtude de eles terem eles
sido inclementemente atacados por essa espécie de pulga.
Estima-se que a Peste Negra tenha
matado entre 30% a 60% da população da europeia. Podemos supor que 50 milhões de pessoas
sucumbiram diante da pandemia. A população mundial devia girar em torno de 475
milhões. Ela deve ter caído para 375 milhões no século XIV. Para recuperar-se
do baque, a Europa levou cerca de 200 anos. A peste retornou várias vezes em
surtos epidêmicos localizados até XX. Por esse prisma, a Peste Negra do século
XIV foi a mais letal pandemia da história. A pandemia causada pelo novo
coronavírus da atualidade matou menos de um milhão até o fim de agosto de 2020
numa população mundial de nove bilhões.
Depois da Peste de Londres, em
1665-66, haverá ainda uma terceira pandemia desta doença, muito pouco conhecida
pelo público leigo, e duas pandemias viróticas, além de pandemias potenciais
que foram contidas. Essas três pandemias serão abordadas no próximo artigo.
Enquanto a maioria das pessoas
conhece, ainda que superficialmente, a Peste Negra e sua devastação na Europa,
poucos ouviram ou leram sobre a Peste Justiniana ou sobre a Terceira Pandemia
de peste bubônica, no século XIX. Esta começou na fronteira do Tibete com a
China e se espalhou lentamente até Hong Kong, onde chegou em 1894, e daí se
alastrou para todos os portos do mundo pelos navios a vapor. A pandemia atingiu
principalmente Índia e China. Austrália, Escócia, Brasil, EUA. Nestes dois
últimos países, os surtos foram locais e logo contidos.
Supõe-se que a origem dela se
localize na província chinesa de Yunnan, começando em 1855. A disseminação das
doenças transmissíveis ainda era lenta nessa época. O agente de transmissão
viajava de navio para alcançar o mundo. Curiosamente, a Terceira Pandemia não
entrou na Europa. Ressalte-se que os tempos eram outros. Pasteur já havia
descoberto os micróbios. Entre aqueles que estudaram com ele, estava o
cientista franco-suíço Alexander Yersin, que identificou a bactéria causadora
da Peste Negra em Hong-Kong no ano de 1894. Em sua homenagem, ela recebeu o
nome científico de “Yersinia pestis”. Os responsáveis por uma doença que matou
tantas pessoas e exerceu imenso terror não eram mais os judeus, as feiticeiras,
os gatos etc. Era um ser vivo microscópico.
Definiu-se o tripé em que se
sustentava a peste bubônica: bacilo causador, rato preto hospedeiro e pulga
vetor. Como os ratos e outros roedores também morriam, entendeu-se que a alta
mortalidade deles obrigava as pulgas a buscarem novos corpos para se
alimentarem, passando a picar pessoas e animais domésticos. Matar ratos para
combater a doença liberava as pulgas para atacarem humanos mais rapidamente. As
pesquisas mostraram que a bactéria causadora inibe seletivamente a resposta
imune inata, que é a primeira linha de defesa do organismo. Algo como um ladrão
desligando o controle de luz de uma casa para melhor trabalhar.
Seguindo de perto os livros “O
enigma da Peste Negra”, de Fernando Portela Câmara (Rio de Janeiro: E-papers,
2015), e “A história e suas epidemias”, de Stefan Cunha Ujvari (Rio de
Janeiro/São Paulo: Senac, 2003), assustamo-nos com a forma implacável de morte
causada pela bactéria. “O hálito, os vômitos, as fezes e a urina desses doentes
têm um odor intensamente pútrido. É frequente, nesses casos, a gangrena de
extremidades (dedos dos pés e das mãos, podendo se estender, algumas vezes,
para os testículos e a ponta do nariz) e órgãos internos (baço, fígado,
pulmões, ponta do coração, rins, intestinos)”. Assim Câmara resume suas
manifestações.
Contribuíram para a disseminação
da peste a guerra civil chinesa e a construção de ferroviais nas planícies
geladas da Manchúria até a Rússia. Houve perturbação na ecologia dos gerbilos
(ratos-do-deserto) e marmotas, intensificando seu contato com populações de
trabalhadores, militares e refugiados. A exportação de peles de marmota a
partir de 1908 também contribuiu para a propagação da doença. Em 1910,
caçadores mongóis e membros da tribo Buriat perceberam uma mortandade de marmotas
no campo e fugiram. Era uma forma pragmática antiga de detectar a epidemia.
Existe uma corrente de
pesquisadores que associa os surtos de peste bubônica a mudanças climáticas.
Ocorreu um resfriamento natural no século VI d.C., provocando um colapso na
agricultura e atingindo o império romano em cheio. Na mesma época, ocorre a
Peste Justiniana. Da mesma forma, houve um forte resfriamento natural no século
XIV, depois de um breve aquecimento global natural. Ao mesmo tempo, alastrou-se
a Peste Negra. A forte explosão do vulcão Krakatoa, na Indonésia, em 1887-8,
não apenas detonou completamente a ilha em que se situava, como a poeira
lançada na atmosfera envolveu o mundo todo e bloqueou parcialmente a radiação
solar. Com isso, ocorreu um resfriamento natural que deve ter contribuído para
a pandemia.
Desde a revolução industrial do
final do século XVIII, emanações gasosas, principalmente de gás carbônico,
estão mudando a composição da atmosfera. Atualmente, as mudanças climáticas
produzidas por atividades humanas tornam-se cada vez mais acentuadas.
Tempestades devastadores, secas inclementes, ventos fortes, aumento da
temperatura média global podem contribuir para novas ondas epidêmicas e
pandêmicas. As epidemias de peste bubônica costumavam acontecer depois de
chuvas intensas que causavam o crescimento da vegetação consumida por roedores.
Já se pode estabelecer uma relação entre chuvas intensas e a propagação da
dengue, da malária e de outras doenças transmitidas por vetores.
Sendo causada por uma bactéria,
a peste bubônica pode atualmente ser combatida com antibióticos. Mas o
tratamento deve começar logo aos primeiros sinais, pois ela progride em poucos
dias, levando à morte.
De maneira mordaz, o historiador
canado-estadunidense William Hardy McNeill escreveu num de seus livros: “Se
olharmos o mundo do ponto de vista de um patógeno faminto... ele é hoje um
magnífico pasto para bilhões de corpos humanos... que dobra em número a cada 20
a 27 anos, um maravilhoso alvo para qualquer patógeno que possa se adaptar para
melhor nos invadir.” Ainda hoje, depois de tantos avanços científicos, vírus,
bactérias, protozoários, fungos, vermes e outros parasitas são vistos como
algum tipo de maldição solta para atacar a humanidade. Geralmente, os acusados
pela maldição nada têm a ver com as epidemias e pandemias.
Se, nos dois artigos anteriores,
examinamos muito rapidamente as três pandemias de peste bubônica, concluímos
agora com as pandemias da gripe espanhola e da covid-19. Até aqui, lidamos com
doenças infecciosas e transmissíveis causadas pela bactéria “Yersinia pestis”.
Bactéria é um ser vivo unicelular com estrutura celular e genoma completo sem
mitocôndrias individualizadas nem núcleo diferenciado. Realiza metabolismo
energético e funções genético-reprodutivas próprios.
A gripe espanhola e a covid-19
foram provocadas por vírus, que são genes encapsulados em contêiner proteico,
algumas vezes envolvidos por membrana. Estão codificados em DNA ou RNA e
dependem de células para produzir réplicas. Não têm metabolismo energético nem
sintetizam por si mesmos suas moléculas.
Por mais detestáveis que sejam
os microrganismos causadores de doenças, é preciso considerar que a vida
depende fundamentalmente desses seres invisíveis. As bactérias construíram a
atmosfera favorável aos grandes animais, inclusive humanos, e devem sobrevier a
uma possível extinção de todos os seres pluricelulares.
O autor que muito nos ajudou nas
pesquisas para esses três artigos é Fernando Portela Câmara. É ele quem
escreve: “A cada conquista sobre o meio ambiente que nos permite viver melhor e
mais confortavelmente, criamos vulnerabilidades que poderão nos trazer grandes
catástrofes. Ao criarmos diques contra as doenças infecciosas, com
antibióticos, vacinas, medidas sanitárias etc., estamos represando patógenos na
esperança de controlá-los, mas desconhecemos a pressão de mutações que surgem, criando
novas adaptações imprevisíveis e novos canais epidemiológicos.”
Na quarta pandemia, entra em
cena um vírus. Não que ele fosse desconhecido. Os vírus foram descobertos em
1876 afetando plantas. Retrospectivamente, sabemos que várias epidemias do passado
foram causadas por vírus. Em 1881, foi identificado o vírus da febre amarela.
Em 1918, último ano da Primeira Guerra Mundial, eclodiu a Gripe Espanhola, uma
virose pandêmica. Ela se expandiu no seio de uma grande mortandade fruto de um
conflito também global.
Quem denunciou a morte de muitas
pessoas por uma doença contagiosa foi a Espanha, país não envolvido no
conflito. O avião já existia, mas ainda não era usado para voos comerciais. O
vírus da febre viajou de navio. A propagação foi lenta, mas ampla. Os locais
primeiramente atingidos foram os portos. Depois, valendo-se do trem
principalmente, ele chegou às cidades do interior.
O historiador John M. Barry (“A
grande gripe”. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020) acredita que a virose
originou-se nos Estados Unidos e se difundiu pelo mundo graças à guerra.
Segundo seus cálculos, morreram 50 milhões de pessoas numa população mundial de
1.800 bilhão. Só na cidade do Rio de Janeiro, teriam morrido 35 mil pessoas.
Mas são números estimados, já que os censos não tinham precisão naquele tempo.
A Gripe Espanhola grassou entre 1918 e 1920 em três ondas. Houve o uso de
máscaras e internações, mas não havia ainda respiradores mecânicos e unidades
de tratamento intensivo.
Entre a quarta e a quinta
pandemias, houve surtos potencialmente globais, como a gripe asiática, a
disseminação do vírus HIV, do ebola, da dengue, da zica e da chikungunya. Assim
como a gripe, essas doenças parecem ter vindo para ficar em forma epidêmica. Em
2002, eclodiu uma epidemia causada pelo vírus Sars-CoV-1; em 2012, outra pelo
vírus Mers-CoV, ambas com potencial pandêmico, mas contidas. Agora, o mundo é
invadido pelo Sars-CoV-2. A epidemia brotou na China em fins de 2019. A
princípio, entendeu-se que se tratava de uma epidemia localizada. Mas ela se
espalhou por todo o hemisfério norte, atingindo Rússia, Europa Ocidental e
Estados Unidos. Depois, ganhou a direção sul, chegando à Índia, à África e ao
Brasil.
O vírus saiu da natureza devido
a contatos promíscuos de humanos com ela. Ganhou o mundo de avião, chegando
primeiro às metrópoles internacionais; depois, interiorizou-se. As grandes
aglomerações humanas, a pobreza, a velhice, a incompetência dos governantes e a
cultura da população facilitam sua propagação. Os vírus mostram como a
humanidade é vulnerável a doenças por mais que julgue ter superado o perigo dos
microrganismos. A Organização Mundial de Saúde alerta para a ocorrência de
futuras pandemias.
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