UM PNEU APAIXONADO
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 18 de agosto de 2020
Um pneu apaixonado
Edgar Vianna de
Andrade
Num ambiente quase desértico e
degradado, um carro de polícia trafega lentamente por uma estrada de terra
derrubando cadeiras dispostas a esmo. Demolição do cinema? Pode ser. Da mala,do
carro, sai um xerife e se posiciona diante da câmara para fazer uma declaração.
Ele pergunta ao público por que o et de Spielberg é marrom; por que, em “Love
Story” um casal apaixonado morre de amor; por que em “JFK”, de Oliver Stone, o
presidente é morto; por que no excelente “O massacre da serra elétrica” ninguém
vai ao banheiro; por que em “O pianista”, de Polansky, o artista sofre tanto. A
resposta para todas as perguntas é que não existe razão nenhuma. E anuncia a
exibição de um filme dedicado à falta de razão.
Naquela paisagem inóspita, tipica de
“Paris, Texas”, de Win Wenders, algumas pessoas se posicionam diante de um
lixão, recebem binóculos possantes de um funcionário e esperam o início do
filme. Entre os escombros, há um pneu careca que se exercita até conseguir se
levantar. Então, ele sai rodando. Primeiro esmaga um escorpião; depois um
coelho e, logo após, uma ave. Quando não consegue matar com seu peso, ele se
vale de uma força que advém do seu íntimo. Sempre que ele trepida, sabe-se que
irá atacar.
Esse pneu vai para a estrada e vê um
carro em alta velocidade dirigido por uma moça cuja beleza o encanta. Então,
ele usa seu dom e provoca um defeito no automóvel com o fim de pará-lo. Outro
veículo passa por ela com o motorista dizendo alguma coisa para a moça. Ele
para logo adiante e tem sua cabeça detonada pelos poderes do pneu. A moça se
hospeda num hotel de beira de estrada. O pneu também. Ele entra num quarto sem
que ninguém perceba e se posta diante de uma televisão. Depois toma banho. Pela
porta entreaberta do quarto da moça, ela a vê nua no chuveiro.
Qual o propósito de tudo isso?
Nenhum. Por que um pneu e não um maníaco sexual ou uma cratura sobrenatural?
Perguntas sem resposta. A moça entra na piscina e o pneu também. Ele está
apaixonado. Ele mata a faxineira do hotel. A polícia investiga a morte. Mais
uma vez, o xerife não vê propósito em tudo aquilo. Manda que um dos políciais
atirem nele para matar. As balas atingem seu coração. Ele não morre porque no
cinema é tudo mentira. É tudo truque.
Enquanto isso, as pessoas com seus
binóculos acompanham o filme do pneu. O funcionário que aparece o início fornece alimento envenenado ao
público. Todos morrem, menos um que está interessado mais nas aventuras do pneu
assassino que na comida. A investigação prossegue, concluido-se que o pneu é
verdadeiramente o culpado e que está apaixonado pela moça. A polícia coloca uma
boneca com o corpo carregado de explosivos, esperando que o pneu caia na
armadilha. Ele não cai. O único espectador vivo interfere no roteiro e sugere
um outro caminho. O xerife elimina o pneu com um tiro de arma potente.
Fim? Não. A alma do pneu se
incorpora num velocípede e sai pela estrada seguido por muitos pneus
abandonados, como em “Forrest Gump” (1994), de Robert Zemeckis, as
pessoas correm atrás de um homem sem saber por que razão fazem isso. O fim
mostra o velocípede à frente de uma legião de pneus entrando em Hollywood, a
meca do cinema. Em síntese, esse é o enredo de “O pneu assassino”, dirigido por
Quentin Dupieux em 2010. O filme foi classificado na categoria de comédia, de
ficção científica, de terror. Não ficou bem em nenhuma. Foi parar na lata do
lixo como “trash”. Voltamos à velha discussão do que seja “trash” no cinema.
Geralmente, trata-se de uma produção de baixo orçamento, com artistas obscuros,
com roteiro sofrível, com fotografia de qualidade inferior. Enfim, um filme que
está no lixo. Em “O pneu assassino”, o
orçamento é baixíssimo, mas a fotografia é de boa qualidade. O roteiro tem ou
não tem sentido, conforme quem o assista.
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