MICRÓBIOS, FICÇÃO E CIÊNCIA
Folha da Manhã, Campos, 12 de agosto de 2020
Micróbios, ficção e ciência
Arthur Soffiati
Há dez mil anos, os grupos humanos
são atacados por microrganismos. As primeiras comunidades que se sedentarizaram
graças à agricultura e ao pastoreio passaram a produzir alimentos que eram
acumulados antes do consumo e também lixo. Esses estoques atraíam animais
hospedeiros de vírus, bactérias e protozoários. Insetos picavam os hospedeiros
e picavam os humanos, transmitindo-lhes doenças. Desconhecendo o processo de
infecção, as pessoas atribuíam as doenças a fatores sobrenaturais. Registros de
epidemias foram encontrados nas primeiras civilizações. A literatura e a
pintura também retrataram surtos epidêmicos. Alguns assumiram proporções
pandêmicas, como a peste justianiana no Império Romano e a Peste Negra, no
século XIV. Como América e Austrália ainda não haviam sido incorporadas ao
mundo euroasiático, as epidemias oriundas do velho mundo não chegavam até lá.
Mas passaram a chegar com virulência a partir do século XV.
O mais antigo relato literário de
uma epidemia pandêmica é o livro “Decameron”, do escritor italiano Boccaccio,
retratando a Peste Negra na Europa ocidental (Lisboa: Relógio D’Água, 1990).
Sete jovens se refugiam da epidemia num castelo e lá contam histórias para
enfrentar a quarentena. Petrarca também registrou a peste bubônica em alguns de
seus poemas. A doença contagiosa o poupou, mas matou sua amada Laura.
O tempo passou até que Daniel Defoe,
o conhecido autor de “Robinson Crusoé”, lançou, em 1722, o livro “Um diário do
ano da peste”. Quando criança, ele escapou de uma epidemia de peste bubônica
que assolou Londres no verão de 1665, matando cerca de 17.500 dos seus
estimados 93 mil habitantes. Campos já existia como vila ainda não reconhecida
oficialmente. O livro foi motivado por um surto de peste bubônica em Marselha
dois anos antes. Defoe cria uma ficção com base na realidade inglesa da qual
ele não mais se recordava. Valeu, portanto, a invenção. Mas de tal forma ela é
veraz que passa por um livro de jornalismo investigativo e de resgate. Li o
livro na edição de “Artes e Ofícios” (Porto Alegre, 2014).
Um clássico pouco conhecido é “O
último homem”, de Mary Shelley. Dela é o muito conhecido “Frankenstein”, que
foi popularizado pelo cinema. “O último homem” foi escrito em 1826, narrando
uma grande epidemia oriunda de uma guerra que assolou o mundo. Lionel Verney é
o último sobrevivente da pandemia. Todos morreram e sua narrativa não será lida
por ninguém. O livro toca em dois temas muito atuais: a guerra e a pandemia. A
edição que li é bilíngue e de excelente qualidade (São Paulo: Landmark, 2007).
Num salto grande, alcançamos “A
peste”, famoso livro de Albert Camus editado em 1947. É também ficção que alude
a situações humanas limítrofes. Camus leu Defoe e caminhou bastante no mesmo
sentido. Só que com mais dramaticidade. Tenho a edição da Record (Rio de
Janeiro/São Paulo: 2020).
Sobre a gripe espanhola, que se
alastrou no mundo no fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, e perdurou até
1920, existe a grande pesquisa de John M. Barry, que resultou no livro “A
grande gripe” (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020). Segundo o autor, a gripe
espanhola matou cerca de 50 milhões de pessoas no mundo com uma população total
de um bilhão e oitocentos milhões. Por esse prisma, foi a maior pandemia da
globalização ocidental até o momento. Já existia o avião, mas não a aviação
comercial. O vírus circulava o mundo mais lentamente a bordo de navios. Havia
menos conhecimento científico também. Os vírus eram praticamente desconhecidos.
No Brasil, muitos anos depois da
gripe espanhola, um paulista que se fixou em Curitiba escreveu livros bastante
curiosos na perspectiva do modernismo, associando escrita e imagem. Nasceu,
assim, o livrinho “O mez da grippe”, em 1981, de Valêncio Xavier. A princípio,
seus trabalhos difundiam-se em âmbito restrito. Sua originalidade foi
reconhecida e cinco de suas ficções experimentais foram reunidas em livro
editado pela Companhia das Letras: “O mez da grippe”, “Maciste no inferno”, “O
minotauro”, “O mistério da prostituta japonesa & Mimi-Nashi-Oichi” e “13
mistérios+O mistério da porta aberta”. O volume com a reunião dos cinco recebeu
o nome de “O mez da grippe” (São Paulo: 1998). Em 2020, apenas “O mez da
grippe” mereceu reedição, aproveitando-se da pandemia causada pela
Covid-19.
A pandemia originada pelo corona
vírus está motivando edições e reedições. O médico Stefan Cunha Ujvari lançou a
2ª edição de “A história da humanidade contada pelos vírus, bactérias,
parasitas e outros microrganismos...” (São Paulo: Contexto, 2020). Trata-se de
um livro de fácil leitura mostrando a presença de micróbios e outros patógenos
na vida humana. O autor escreve sobre herpes, HPV, piolho, hepatite, vírus e
animais hospedeiros.
Outro médico a escrever um livro de
revisão histórica é Fernando Portela Câmara. Seu título é “O enigma da Peste
Negra” (Rio de Janeiro: E-papers, 2015). Embora o título passe a impressão de
que o autor só analisa a grande pandemia do século XIV euroasiática, ele vai
aos primórdios das civilizações, enfocando o quarteto
micróbio-hospedeiro-transmissor-infectado. Com um bom conhecimento histórico,
ele examina documentos escritos e pictóricos antigos para encontrar neles
indícios das pestes.
Um aspecto nem sempre lembrado e
valorizado frente aos patógenos microscópicos é a capacidade que os organismos
infectados têm de reagir criando anticorpos. É o que procura mostrar o
jornalista Matt Richter em “Imune” (Rio de Janeiro: Harper Collins, 2019).
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