LUIZ COSME

 


Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 26 de agosto de 2020

Luiz Cosme

Arthur Soffiati

            Sons em profusão invadem minha mente, sobretudo quando estou no banho. São sons da minha adolescência e juventude. Sons que se combinam e formam melodias por vezes inteiras, por vezes incompletas. Lembro a melodia, a harmonia, o contraponto e a orquestração, mas nem sempre recordo os nomes dos autores e das composições. No casamento do príncipe Harry com Meghan Markle, foi executada uma música belíssima que eu conhecia muito bem. Acompanhei-a cantarolando. Foi a única coisa que me interessou naquele casamento. Quem era seu autor? Eu não lembrava. Pertencia a que movimento musical? Eu não lembrava. Era música erudita? Claro que sim. Ou será que não? Impossível. Eu havia me esquecido daquela melodia? Ou ela estava na minha mente e carecia apenas de uma nota para recordá-la? Deve ser isso. Tanto que não mais a esqueci. Não conheço nenhum site que me permita entoá-la para que venha a resposta. Nem no Google nem no Youtube.

            Aguardo que ela toque novamente em algum momento com as informações sobre seu título e compositor. Recentemente no chuveiro, outra melodia começou a tocar na minha mente. Creio que, com o envelhecimento, esquecerei as palavras ou ao menos seu significado e lembrarei dos sons. Dessa vez, identifiquei a composição e seu autor: “Salamanca do Jarau”, de Luiz Cosme. Eu não a ouvia desde os tempos em que eu era um disciplinado ouvinte da Rádio Ministério da Educação e Cultura há uns cinquenta anos.

            Eu gostava desse poema sinfônico e praticamente o sabia de cor. Nunca encontrei um disco com composições de Luiz Cosme, nem em vinil nem CD. Mas devo reconhecer que o Youtube compensou bem os programas que eu ouvia na emissora governamental. Com uma diferença: na Rádio MEC, eu não escolhia o que seria apresentado. A programação era feita por pessoas cujos nomes eu desconhecia. Então, era preciso muita atenção para memorizar as músicas. No Youtube, é preciso saber de antemão o que se deseja. Escrevi Luiz Cosme no espaço de busca. Prontamente, apareceu “Salamanca do Jarau” e algumas outras composições. Ouvi primeiro a música que eu conhecia do autor gaúcho. Depois as outras. Muito poucas por sinal. Procurei algum disco para adquirir. Nada. Nem em vinil nem e CD. Esses artefatos estão em extinção.

            Luiz Cosme nasceu em Porto Alegre, em 1908, e morreu no Rio de Janeiro em 1965. Sua obra se insere na primeira geração modernista. Foi amigo do escritor Augusto Meyer e do compositor Radamés Gnatalli. Tal como Villa-Lobos, ele acompanhou filmes mudos como violinista. Villa tocava violoncelo. Cosme ganhou bolsa para estudar nos Estados unidos. Aperfeiçoou-se em violino no Conservatório de Ohio. Tornou-se spalla da Orquestra do Conservatório de Cincinnati. Dois anos depois, transferiu-se para Paris, onde entrou em contato com compositores contemporâneos. Foi um período de alta efervescência nas artes.

            Em 1930, ele retornou a Porto Alegre. Passou a dar aulas no Instituto Musical da cidade e no Colégio Metodista Americano. Iniciou sua carreira de compositor, estreando suas primeiras obras em 1931. Eram canções e peças de câmara. Fez sucesso no Rio de Janeiro e transferiu-se para essa cidade. Tornou-se violinista da Orquestra da Rádio Nacional e da Orquestra do Teatro Municipal. Trabalhou também no Instituto Nacional do Livro como diretor de música da “Enciclopédia Brasileira”. Manteve contato com Mário de Andrade.  Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Música, onde ocupou a cadeira nº 9.

            Na década de 1940, organizou programas radiofônicos na Rádio MEC. Foi um momento feliz para ele, pois suas composições foram divulgadas na Europa e nos Estados Unidos. Parou de compor entre 1938 e 1946. Ao retornar à composição, aderiu ao dodecafonismo, como Claudio Santoro. Uma doença neurológica causou sua morte. Na fase final da vida, dedicou-se a escrever livros e abandonou a composição.

            Sua obra musical é pequena, incluindo canções: “Acalanto” (1931), “Três manchas gaúchas” (1931), “Bombo” (1934), “Cantiga” (1947), “Chorinho” (1947), “Modinha” (1947), “Madrugada no campo” (1948). Suas composições de câmara mais conhecidas são “Sambalelê” quarteto de cordas, (1931), “Vamo, Maruca” (quinteto com piano, 1931), “Mãe d'água canta” (violino e piano, 1931), “Oração a Teiniaguá (violino e piano, 1932), “Falação de Anhangá-Pitã” (violoncelo e piano, 1933), “Quarteto nº 1” (quarteto de cordas, 1933), “Pequena suíte” (quarteto com piano, 1932) e “Brincando de pegar” (violino e piano, 1935).

Para orquestra, ele compôs “Prelúdio” (1937), “Oração a Teiniaguá” (1939), “Falação de Anhangá-Pitã” (1939), trilha sonora do filme “Maria Bonita” (1942, partitura perdida), trilha sonora do filme “Vento Norte” (1949, partitura perdida), “O menino atrasado” (para marionetes com texto de Cecília Meireles - 1946), “Salamanca do Jarau” (poema sinfônico e bailado – 1936) e alguns outros títulos. Sua obra foi pequena perto da de outros compositores brasileiros.

A mais conhecida delas e “Salamanca do Jarau”. Trata-se de uma lenda gaúcha com origem espanhola. Salamanca é uma caverna encantada em que estão presos o Santão de Salamanca, um sacristão sacrílego, e a princesa Tainiaguá, transformada numa lagartixa. O campeiro Blau Nunes mobiliza toda a sua coragem para salvar o casal de amantes do encantamento. Então, ele passa por perigosas provas. Existem muitas histórias com essa estrutura, desde a epopeia mesopotâmica de Gilgámesh até os poemas de Homero, passando pela luta que Teseu trava com o Minotauro em Creta.

Luís Cosme compôs um poema sinfônico inspirado nessa lenda que também pode ser bailado. Enquanto poema sinfônico, ele busca descrever com sons a história do Blau Nunes. Enquanto bailado, além dos sons, ele busca contar a lenda com movimentos corporais dos bailarinos. Como já comentei, toda música expressa algo. Talvez apenas a música de vanguarda, com seus sons aleatórios, possa ser entendida como música absoluta. Mozart não revela sentimentos, mas suas composições ilustram a vida de uma nobreza decadente. Beethoven, em sua fase adulta, revela sentimentos em sua música, como de resto, todos os românticos. Os impressionistas expressam imagens. Os modernos não fogem de alguma ilustração.

Mas o poema sinfônico, o bailado e a ópera são gêneros muito presos ao visual. Essa particularidade compromete a composição. No ato de descrever, a música pode perder qualidade. “Salamanca do Jarau” é obra inspirada. Luiz Cosme concebe boas melodias. Antes de tudo, música é melodia. Esse é meu entendimento. O compositor gaúcho alia modernismo, música brasileira e música regional. Creio que nenhum compositor brasileiro tenha sido tão regionalista quanto ele. Os românticos fizeram música estrangeira, com exceção de Alberto Nepomuceno, que faz a transição do romantismo para o modernismo nacionalista. Villa-Lobos é excessivamente nacional. Guerra-Peixe busca o regionalismo, mas não consegue ficar apenas nele.

“Salamanca do Jarau” tem muito de Villa-Lobos e algo de Stravinsky. Talvez um pouco de Respighi. De Villa-Lobos, parece que a grande inspiração foi o “Choros n° 10”, obra magnífica em todos os sentidos. Nela, Villa-Lobos usa e abusa da dissonância, do colorido dos instrumentos, da cacofonia, do experimentalismo. Até as dissonâncias de Villa são consonantes. A instrumentação é portentosa e arrojada. Ninguém consegue compor no clima da Villa-Lobos, o homem que disse não saber o que era inspiração por estar sempre inspirado.

Luiz Cosme consegue criar um clima para “Salamanca do Jarau”. A concepção melódica e instrumental é boa. Mas a sensação que se tem é a de que o compositor não conseguiu resolver alguns problemas, notadamente o da instrumentação. A orquestra funcionaria bem se não houvesse os buracos que o compositor não soube tapar. Em Villa-Lobos não há silêncio. Tudo é som, e som profuso, diversificado e inesperado. Em Stravinsky, a invenção rítmica e tonal é extraordinária. Assim, fica a sensação de incompletude na obra de Luiz Cosme. Ele teve tempo de aprimorar sua arte, mas parece não ter conseguido.

Como escritor, também não foi muito longe. Nadando nas águas de Mário de Andrade, ele se repete muito em seus poucos livros. Apenas “Introdução à música” (Rio de Janeiro: Simões, 1954) é mais sistematizado. Trata-se de uma pequena história da música que não se tornou marcante.







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