LUIZ COSME
Luiz Cosme
Arthur Soffiati
Sons em profusão invadem minha mente, sobretudo quando
estou no banho. São sons da minha adolescência e juventude. Sons que se
combinam e formam melodias por vezes inteiras, por vezes incompletas. Lembro a
melodia, a harmonia, o contraponto e a orquestração, mas nem sempre recordo os
nomes dos autores e das composições. No casamento do príncipe Harry com Meghan
Markle, foi executada uma música belíssima que eu conhecia muito bem.
Acompanhei-a cantarolando. Foi a única coisa que me interessou naquele
casamento. Quem era seu autor? Eu não lembrava. Pertencia a que movimento
musical? Eu não lembrava. Era música erudita? Claro que sim. Ou será que não?
Impossível. Eu havia me esquecido daquela melodia? Ou ela estava na minha mente
e carecia apenas de uma nota para recordá-la? Deve ser isso. Tanto que não mais
a esqueci. Não conheço nenhum site que me permita entoá-la para que venha a
resposta. Nem no Google nem no Youtube.
Aguardo
que ela toque novamente em algum momento com as informações sobre seu título e
compositor. Recentemente no chuveiro, outra melodia começou a tocar na minha
mente. Creio que, com o envelhecimento, esquecerei as palavras ou ao menos seu
significado e lembrarei dos sons. Dessa vez, identifiquei a composição e seu
autor: “Salamanca do Jarau”, de Luiz Cosme. Eu não a ouvia desde os tempos em
que eu era um disciplinado ouvinte da Rádio Ministério da Educação e Cultura há
uns cinquenta anos.
Eu
gostava desse poema sinfônico e praticamente o sabia de cor. Nunca encontrei um
disco com composições de Luiz Cosme, nem em vinil nem CD. Mas devo reconhecer
que o Youtube compensou bem os programas que eu ouvia na emissora governamental.
Com uma diferença: na Rádio MEC, eu não escolhia o que seria apresentado. A
programação era feita por pessoas cujos nomes eu desconhecia. Então, era
preciso muita atenção para memorizar as músicas. No Youtube, é preciso saber de
antemão o que se deseja. Escrevi Luiz Cosme no espaço de busca. Prontamente,
apareceu “Salamanca do Jarau” e algumas outras composições. Ouvi primeiro a
música que eu conhecia do autor gaúcho. Depois as outras. Muito poucas por
sinal. Procurei algum disco para adquirir. Nada. Nem em vinil nem e CD. Esses
artefatos estão em extinção.
Luiz
Cosme nasceu em Porto Alegre, em 1908, e morreu no Rio de Janeiro em 1965. Sua
obra se insere na primeira geração modernista. Foi amigo do escritor Augusto
Meyer e do compositor Radamés Gnatalli. Tal como Villa-Lobos, ele acompanhou
filmes mudos como violinista. Villa tocava violoncelo. Cosme ganhou bolsa para estudar nos Estados unidos. Aperfeiçoou-se em
violino no Conservatório de Ohio. Tornou-se spalla da Orquestra do
Conservatório de Cincinnati. Dois anos depois, transferiu-se para Paris, onde
entrou em contato com compositores contemporâneos. Foi um período de alta
efervescência nas artes.
Em 1930, ele retornou a Porto Alegre. Passou a dar aulas
no Instituto Musical da cidade e no Colégio Metodista Americano. Iniciou sua
carreira de compositor, estreando suas primeiras obras em 1931. Eram canções e
peças de câmara. Fez sucesso no Rio de Janeiro e transferiu-se para essa
cidade. Tornou-se violinista da Orquestra da Rádio Nacional e da Orquestra do
Teatro Municipal. Trabalhou também no Instituto Nacional do Livro como diretor
de música da “Enciclopédia Brasileira”. Manteve contato com Mário de
Andrade. Foi um dos
fundadores da Academia Brasileira de Música, onde ocupou a cadeira nº 9.
Na
década de 1940, organizou programas radiofônicos na Rádio MEC. Foi um momento
feliz para ele, pois suas composições foram divulgadas na Europa e nos Estados
Unidos. Parou de compor entre 1938 e 1946. Ao retornar à composição, aderiu ao
dodecafonismo, como Claudio Santoro. Uma doença neurológica causou sua morte.
Na fase final da vida, dedicou-se a escrever livros e abandonou a composição.
Sua
obra musical é pequena, incluindo canções: “Acalanto” (1931), “Três
manchas gaúchas” (1931), “Bombo”
(1934), “Cantiga” (1947), “Chorinho” (1947), “Modinha” (1947), “Madrugada no campo” (1948). Suas
composições de câmara mais conhecidas são “Sambalelê” quarteto de cordas, (1931), “Vamo, Maruca” (quinteto com piano, 1931), “Mãe d'água canta” (violino e piano,
1931), “Oração a Teiniaguá (violino
e piano, 1932), “Falação de
Anhangá-Pitã” (violoncelo e piano, 1933), “Quarteto nº 1” (quarteto de cordas, 1933), “Pequena suíte” (quarteto com piano,
1932) e “Brincando de pegar”
(violino e piano, 1935).
Para orquestra, ele compôs “Prelúdio” (1937), “Oração
a Teiniaguá” (1939), “Falação
de Anhangá-Pitã” (1939), trilha sonora do filme “Maria Bonita” (1942, partitura perdida), trilha sonora do filme “Vento Norte” (1949, partitura
perdida), “O menino atrasado” (para
marionetes com texto de Cecília Meireles - 1946), “Salamanca do Jarau” (poema sinfônico e bailado – 1936) e alguns
outros títulos. Sua obra foi pequena perto da de outros compositores
brasileiros.
A mais conhecida delas e “Salamanca do Jarau”. Trata-se de uma lenda gaúcha
com origem espanhola. Salamanca é uma caverna encantada em que estão presos o
Santão de Salamanca, um sacristão sacrílego, e a princesa Tainiaguá,
transformada numa lagartixa. O campeiro Blau Nunes mobiliza toda a sua coragem
para salvar o casal de amantes do encantamento. Então, ele passa por perigosas
provas. Existem muitas histórias com essa estrutura, desde a epopeia
mesopotâmica de Gilgámesh até os poemas de Homero, passando pela luta que Teseu
trava com o Minotauro em Creta.
Luís Cosme compôs um poema sinfônico inspirado nessa lenda que também
pode ser bailado. Enquanto poema sinfônico, ele busca descrever com sons a
história do Blau Nunes. Enquanto bailado, além dos sons, ele busca contar a
lenda com movimentos corporais dos bailarinos. Como já comentei, toda música
expressa algo. Talvez apenas a música de vanguarda, com seus sons aleatórios,
possa ser entendida como música absoluta. Mozart não revela sentimentos, mas
suas composições ilustram a vida de uma nobreza decadente. Beethoven, em sua fase
adulta, revela sentimentos em sua música, como de resto, todos os românticos.
Os impressionistas expressam imagens. Os modernos não fogem de alguma
ilustração.
Mas o poema sinfônico, o bailado e a ópera são gêneros muito presos ao
visual. Essa particularidade compromete a composição. No ato de descrever, a
música pode perder qualidade. “Salamanca do Jarau” é obra inspirada. Luiz Cosme
concebe boas melodias. Antes de tudo, música é melodia. Esse é meu
entendimento. O compositor gaúcho alia modernismo, música brasileira e música
regional. Creio que nenhum compositor brasileiro tenha sido tão regionalista
quanto ele. Os românticos fizeram música estrangeira, com exceção de Alberto
Nepomuceno, que faz a transição do romantismo para o modernismo nacionalista.
Villa-Lobos é excessivamente nacional. Guerra-Peixe busca o regionalismo, mas
não consegue ficar apenas nele.
“Salamanca do Jarau” tem muito de Villa-Lobos e algo de Stravinsky.
Talvez um pouco de Respighi. De Villa-Lobos, parece que a grande inspiração foi
o “Choros n° 10”, obra magnífica em todos os sentidos. Nela, Villa-Lobos usa e
abusa da dissonância, do colorido dos instrumentos, da cacofonia, do
experimentalismo. Até as dissonâncias de Villa são consonantes. A
instrumentação é portentosa e arrojada. Ninguém consegue compor no clima da
Villa-Lobos, o homem que disse não saber o que era inspiração por estar sempre
inspirado.
Luiz Cosme consegue criar um clima para “Salamanca do Jarau”. A
concepção melódica e instrumental é boa. Mas a sensação que se tem é a de que o
compositor não conseguiu resolver alguns problemas, notadamente o da
instrumentação. A orquestra funcionaria bem se não houvesse os buracos que o
compositor não soube tapar. Em Villa-Lobos não há silêncio. Tudo é som, e som
profuso, diversificado e inesperado. Em Stravinsky, a invenção rítmica e tonal
é extraordinária. Assim, fica a sensação de incompletude na obra de Luiz Cosme.
Ele teve tempo de aprimorar sua arte, mas parece não ter conseguido.
Como escritor, também não foi muito longe. Nadando nas águas de Mário de
Andrade, ele se repete muito em seus poucos livros. Apenas “Introdução à
música” (Rio de Janeiro: Simões, 1954) é mais sistematizado. Trata-se de uma
pequena história da música que não se tornou marcante.
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