CIVILIZAÇÃO
Complexus, 13 de agosto de 2020
Civilização
Arthur
Soffiati
É sempre difícil definir o momento
em que cultura começa a distinguir-se de natureza porque sociedade e cultura
precedem os hominídeos. De forma eventual ou sistemática, manifestações
protoculturais estão associadas ao chimpanzé, aos macacos japoneses, aos
babuínos, ao macaco prego, os cetáceos, ao corvo e até a larvas de insetos da
ordem tricóptera. Vamos, então, definir um marco convencional. A distinção
clara entre natureza e cultura, nos hominídeos, torna-se patente com a espécie
“Homo habilis”, que viveu na África entre 2,2 milhões a 780 mil anos passados.
Atribui-se a ele o uso das primeiras ferramentas de pedra lascada. Podemos
situar nele o início do paleolítico, que se estendeu até 10 mil anos atrás.
Assim, o mais longo e menos conhecido período da história humana durou cerca de
2.190.000 anos. Com o aquecimento climático do Holoceno, algumas sociedades
paleolíticas se sedentarizaram com a criação da agricultura e do pastoreio,
recebendo o nome de neolíticas. Em torno
de 5 mil anos antes do presente, algumas sociedades neolíticas consolidaram as
divisões técnica, sexual, territorial e social do trabalho, resultando em
sociedades civilizadas.
Fala-se
na necessidade de aprimorar a civilização. O aperfeiçoamento da democracia
corresponde a um avanço civilizacional. O emprego superficial do termo
civilização e derivados dá ideia de que civilização é um estágio superior de
cultura e a de negação da barbárie. Aliás, por muito tempo, as esquerdas
empregaram muito a dualidade civilização X barbárie.
Reexaminei o conceito de civilização
em Gordon Childe, Spengler, Braudel e Huntington. Todos estes autores enfatizam
a importância da cidade para caracterizar o estágio de civilização, superior
aos estágios de cultura paleolítica e neolítica. Voltei a Toynbee, autor que
sempre admirei e que segui literalmente por muito tempo. No seu entender,
“Houve sociedades sem cidades que, no entanto, tiveram um processo de
civilização que deve ser entendida como um estado da sociedade no qual uma
minoria da população, ainda que pequena, fique liberta da tarefa não apenas de
produzir alimentos, mas de trabalhar em qualquer outra atividade econômica –
por exemplo, a indústria e o comércio – que tenha de ser realizada a fim de
manter a vida da sociedade no plano material, ao nível de civilização. Estes
especialistas não-econômicos – soldados profissionais, administradores e
talvez, principalmente, sacerdotes – têm certamente sido habitantes das cidades
no caso da maioria das civilizações que conhecemos.”
Assim, civilização é uma sociedade
com divisão social e territorial do trabalho. A maioria trabalha no campo e na
cidade, se esta houver, para deixar livre uma minoria que cuidará da religião,
do governo, da defesa ou do ataque e da arte. Nas sociedades paleolíticas, que
dependiam da caça, pesca e coleta, todos trabalhavam. No máximo, havia divisão
sexual e técnica do trabalho. Ou seja, as mulheres se incumbiam da coleta e do
cuidado com os filhos e idosos, enquanto os homens caçavam e pescavam. Nas
sociedades paleolíticas superiores, as técnicas e tecnologias já exigiam algum
nível de especialização. Havia aqueles que se especializavam em fabricar pontas
de flecha, batedores, arcos etc.
Nas sociedades neolíticas, a
invenção da agricultura e do pastoreio exigiu uma profunda mudança. Mas não
havia ainda uma clara divisão social do trabalho. De certa maneira, homens e
mulheres trabalhavam para a manutenção da sociedade. As divisões sexual e
técnica se tornaram mais complexas, com muito poucos membros liberados da
tarefa de produção. Se é praticamente certo que algumas sociedades paleolíticas
– nômades – passaram à condição de neolíticas, sedentárias, como resposta ao
desafio representado pelas mudanças climáticas no início da época holocênica,
parece que as civilizações nasceram das sociedades neolíticas, derivadas da
divisão de classes sociais. Um desafio externo (mudanças climáticas) criou as
sociedades neolíticas, que desenvolveram um embrião de estrutura social
vertical (desafio social interno) que conduziram às primeiras civilizações.
Hoje, afasto-me de Toynbee num ponto
muito idealista. A hipótese dele é a de que as civilizações nascem como caminho
para buscar a elevação espiritual através das religiões, notadamente as
religiões universais, ou seja, voltadas para toda a humanidade, como o Budismo,
o Cristianismo e o Islamismo. Numa passagem pequena e perdida num dos seus
muitos livros, ele levanta a hipótese de serem as civilizações a realização de
sonhos individuais. Acho que nunca partilhei esta explicação, embora não tivesse
outra. Hoje, vejo as civilizações como culturas que desenvolveram formas
políticas elaboradas, como a monarquia e a democracia, religiões elevadas e
arte refinada.
Mas o preço para alcançar tais
conquistas foi muito cruel. A maioria dos membros de uma civilização trabalhou
duro, viveu mal, foi excluída das conquistas sociais. Ajudou a produzir obras
de arte, mas não usufruiu delas. Hoje, o mundo foi unido por uma única
civilização: a ocidental. Houve união, mas não unificação. O ocidente
capitalista dominou, mas mesclou-se a outras culturas. Hoje, podemos falar em
diversidade dentro da unidade. Contudo, as condições de vida da maioria não
melhoraram. A população mundial aumentou de forma exponencial. A distribuição
de renda revela-se cada vez mais desigual. A natureza está sendo exaurida.
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