A HUMANIDADE E AS FLORESTAS - II
Blog de Leonardo Boff, 11/08 – Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 15 de agosto de 2020
A humanidade e as florestas (II)
Arthur Soffiati
Quando portugueses e espanhóis chegaram à África e à América
respectivamente, no século XV, as florestas temperadas da Europa já estavam
muito reduzidas. Elas foram progressivamente abatidas. Na África, a floresta
tropical do Congo foi o que restou da grande floresta que cobria o Saara no
início do Holoceno. Não houve um desmatamento descomunal que transformou uma
grande mata num imenso deserto. Foram as mudanças climáticas naturais. Os povos
que viviam na floresta congolesa extraíam recursos dela, mas sem comprometer
sua integridade. O mesmo acontecia com a floresta equatorial da Indonésia. Além
da floresta e do deserto, havia, no continente africano, extensas savanas e
estepes habitadas por uma megafauna, que já era cobiçada pelos navegantes,
sobretudo o elefante.
No grande continente americano, os europeus encontraram as florestas
temperadas do norte, a grande floresta amazônica e a Mata Atlântica. Além
desses biomas, havia, no interior, o Cerrado, a Caatinga, o Pantanal, os campos
do Sul e as zonas geladas do Antártico. Os povos que habitavam a América
(considerando-a um só continente, pois não havia países) usavam as florestas,
mas as consideravam sagradas e merecedoras de respeito. Eles obtinham nelas
recursos para sua subsistência, mas sem ultrapassar limites. Essa visão
contemplativa está demonstrada nos depoimentos de índios da América do Norte
reunidos no livro “Pés nus sobre a terra sagrada”. Na América do Sul, é
ilustrativo o depoimento do xamã yanomami Davi
Kopenawa.
Pesquisas arqueológicas
estão demonstrando que culturas avançadas se desenvolveram na Amazônia antes da
chegada dos europeus. Como se sabe, os solos amazônicos são pobres. As
florestas se retroalimentam naquela vastidão de planície. Solo preto em grande
quantidade vem sendo encontrado pelos arqueólogos. A conclusão é que a floresta
chegou a comportar cerca de dez milhões de habitantes reunidos em culturas
distintas que exploravam a grande floresta mantendo-a em pé. A terra preta era
fabricada para o cultivo de diversas espécies, inclusive arbóreas. As
prospecções sugerem uma ou mais civilizações na Amazônia. As ricas cerâmicas de
Marajó, de Maracá, de Santarém e outras confirmariam que houve ali culturas que
alcançaram grau civilizacional. Cauteloso, prefiro considerá-las neolíticas
avançadas.
Além do mais, os
europeus encontraram as adiantadas culturas dos Andes, da América Central e do
Ártico, sem contar a cultura já declinante dos maias. Esta, ao que tudo indica,
não soube lidar com a floresta e a devastou. Em parte, seu declínio se deve a
essa remoção, segundo os estudiosos. No círculo polar ártico, não existiam
florestas. Os denominados esquimós conseguiram desenvolver uma refinada cultura
para viver no gelo. No México, o grande império asteca impressionou os europeus,
o mesmo ocorrendo com o império inca nos Andes.
Como mostra o
historiador ambiental José Augusto Pádua no seu livro “Um sopro de destruição”,
as luxuriantes florestas encontradas pelos portugueses na América alimentaram
neles a concepção de que elas poderiam ser exploradas indefinidamente. Mais que
concepção, pode-se falar numa síndrome de inesgotabilidade. Para quem deixou um
continente com parcas manchas florestais, encontrar a Mata Atlântica pela
frente alimentou a crença na sua infinitude. Logo nos primeiros tempos, a busca
pelo pau-brasil estimulou um desmatamento ainda em pequenas proporções, ao
mesmo tempo que alterava a concepção dos povos nativos. O famoso diálogo
travado entre um velho tupinambá e o calvinista Jean de Léry ilustra duas visões
de mundo não só distintas como antagônicas. O francês via dinheiro no
pau-brasil. O tupinambá entendia que se tratava apenas de madeira, o que o
levou a concluir que os europeus eram loucos. De fato, o sistema capitalista
era algo inimaginável e inútil para o índio.
Com a escolha da
cana-de-açúcar para colonizar as terras reservadas a Portugal pelo Tratado de
Tordesilhas, o primeiro grande tratado da globalização, exigiu-se desmatamento
mais intensivo. Até século XVII, as terras baixas foram depenadas. As florestas
deram lugar aos canaviais e aos pastos. É de se perguntar por que os
portugueses e seus descendentes no Brasil se contentaram com a Mata Atlântica
até o século XIX. Os colonos tinham 1,3 milhão de quilômetros quadrados de
floresta para explorarem. As árvores eram simplesmente queimadas para abrir
espaço para as lavouras e pastagens. Além de não precisarem da Amazônia, os
colonos não contavam com tecnologia para derrubar uma floresta que parecia
infinita.
Já existem artigos
acadêmicos e livros demonstrando com documentos a visão que se tinha das
florestas. Derrubá-las significava progresso e civilização. Havia algumas vozes
no século XIX que já se opunham a uma tão grande devastação. Mas eram vozes
isoladas. Havia quem condenasse o africano ou seu descendente escravizado como
o culpado pelo desmatamento, quando, na verdade, eles cumpriam ordens do
patrão, que por sua vez atendia às exigências de um capitalismo rasteiro. Por
mais protestos isolados, o Brasil era uma grande fazenda dominada por rudes proprietários.
Alguns cientistas também condenavam o desmatamento excessivo, como foi o caso
de Auguste de Saint-Hilaire ao empreender excursões pelo Brasil. Nem a falta
d’água na cidade do Rio de Janeiro causada pelo desmatamento do maciço da
Tijuca, exigindo seu reflorestamento, foi suficiente para convencer a economia
rural sobre a importância das matas.
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