A HUMANIDADE E AS FLORESTAS (I)
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 08 de agosto de 2020/Blog do Leonardo Boff,
A
humanidade e as florestas (I)
Arthur
Soffiati
Sempre e nunca são palavras que não
devem ser usadas pelo historiador. O senso comum acredita que o ser humano sempre foi desmatador, caçador e
poluidor. Que faz parte da natureza humana destruir a natureza não-humana. Por
outro lado, não é raro ouvir que nunca
houve um período em que a humanidade tenha se relacionado de forma equilibrada
com a natureza. Associo arbitrariamente a origem da cultura ao Homo habilis,
ancestral do Homo sapiens, há 1.400.000 anos passados. Supõe-se que os
primeiros hominídeos, grupo zoológico do qual fazemos parte, desceram das
árvores e se adaptaram às savanas. Sua economia baseava-se na coleta, caça e
pesca. É de se perguntar por que o Homo habilis, o H. erectus, o H. neaderthalensis
e H. sapiens desmatariam. Uma que outra árvore podia ser cortada ou queimada,
mas não toda uma floresta. Não havia necessidade de desmatamento nem tecnologia
capaz de tal proeza. No máximo, um incêndio provocado por raios ou por
combustão espontânea. Também um incêndio ocasional depois da invenção das
técnicas de produzir fogo.
Até 10.000 anos passados, não houve
necessidade de desmatar porque a humanidade se organizava em pequenos grupos
nômades que não incluíam em sua economia o uso de caules em larga escala. Com o
aquecimento climático no início do Holoceno, algumas sociedades nômades
inventaram a agricultura e o pastoreio. Comumente, as áreas para plantar e pastorear
eram aquelas sem floresta, para facilitar o trabalho. Caso necessário, parte
das florestas eram derrubadas para o plantio e o pastoreio. Elas também serviam
para o fornecimento de lenha e de madeira. Contudo, o desmatamento era mínimo,
já que a economia então vigente visava apenas a subsistência das sociedades.
Com a formação das civilizações, o
desmatamento aumentou. Ampliou-se a necessidade de campos de cultivo e de
pastagem, bem como a necessidade de lenha e de madeira para construção. Há uma
conhecida passagem na “Epopeia de Gilgámesh” em que o herói mitológico, com
ajuda de seu amigo Enkídu, mata Humbaba, o protetor da floresta. Eram os
primórdios da civilização mesopotâmica. A natureza ainda era protegida por
entidades divinas e tinha um caráter sagrado. Gilgámesh é meio deus, meio
humano. Depois de matar o protetor, ele destrói a floresta. Progressivamente, o
sagrado cede lugar ao profano.
Também na civilização chinesa, houve
desmatamentos e caçadas colossais logo em sua fase inicial. Alguns historiadores
sustentam que o confucionismo e o taoísmo são respostas culturais aos ataques
contra a natureza e contra os humanos. Algo como uma tentativa de ressacralização
do mundo. Na civilização Índica, que se desenvolveu no vale do rio Indo, atual
Paquistão, a historiografia vem demonstrando que grandes desmatamentos
contribuíram para seu fim. Como não havia pedra, os prédios e monumentos eram
construídos com tijolos. Para seu cozimento, as matas foram transformadas em
lenha. Entre os maias, a explicação mais consistente para explicar seu fim foi um
grande desmatamento para ampliar campos de cultivo. Esses desmatamentos foram
praticados em encostas de morros, contribuindo para a erosão e o assoreamento
das partes baixas, onde havia brejos e lagoas.
No diálogo “Timeu”, Platão narra que
o desmatamento da península Ática transformou um corpo carnudo num esqueleto. Sua
narrativa sobre os processos de erosão, empobrecimento dos solos e assoreamento
do mar nas partes rasas é bastante atual. Na ilha de Páscoa, hoje conhecida com
o nome original de Rapa-Nui, a construção de grandes ídolos de pedra exigiu uma
base rolante para transportá-los do centro da ilha para a costa. Como não se
conhecia a roda, usava-se o tronco da palmeira mais alta do mundo, existente na
ilha, como rolamento. Assim, o desmatamento foi deixando a ilha desprotegida de
cobertura florestal. Além do mais, cada grupo incendiava a mata de outro(s)
como arma de guerra. Quando os europeus chegaram à ilha no século XVIII,
Rapa-Nui estava devastada, erodida e assoreada.
O desmatamento foi praticado em
várias sociedades, com modos de produção distintos. Cada cultura construiu sua
visão sobre as florestas. De sagradas a profanas passando por concepções
intermediárias. Nenhuma concepção, porém, transformou as matas em fonte de
lucro como a ocidental em sua fase capitalista. Na sua fase de formação, entre
o século V ao século XIV, vigorou o sistema feudalista de produção. Nele, as
atividades rurais representavam o sustentáculo da economia. Partindo da Itália,
os missionários cristãos não eram muito simpáticos às florestas porque elas
eram sagradas para os povos ainda não convertidos e motivo de adoração. Depois
de convertidos, eles eram instados a derrubar as matas. Mesmo assim, restaram
muitas florestas, agora com caráter utilitário. Elas complementavam a economia
feudal. Havia florestas comunais, ou seja, florestas que podiam ser usadas por
todos, sobretudo pobres, para obtenção de lenha, madeira, água fresca e caça.
Essa visão começa a ser mudada a partir do século XI, quando o capitalismo
começa a progredir.
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