VERKHOIANSK
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 08 de julho
de 2020
Verkhoiansk
Afrânio Sobral
Não
sei o que estou fazendo neste avião. Saí do Galeão às 18:45. Com aqueles
atrasos normais, acabei saindo às 19:15. Viajo para Moscou. Primeiro, pararemos
no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Novamente vou cruzar o Atlântico
nesse super-avião da Air France. São 11:25 de viagem, mas sempre demora mais
que isso. Já fiz esse percurso algumas vezes. Morro de medo daqueles aviões que
parecem transatlânticos aéreos. Como um bicho daqueles, com dois andares, todo
de aço, carregando mais de 300 pessoas, consegue sair do solo, viajar a metade
de um dia e aterrissar? E ainda leva carga... O mais aterrorizante é saber que,
na maior parte do percurso, temos um profundo oceano sob os pés, sob os corpos.
Se esse brontossauro cair, não conseguiremos nadar até a costa da África. Se
houver algum bote inflável aqui dentro, não seremos encontrados a tempo em alto
mar.
Loucura,
simplesmente loucura o que estou fazendo mais uma vez. Voo a noite toda e chego
em Paris de manhã. Com atraso, é claro. A União Europeia não está permitindo a
entrada de brasileiros nos países que a integram por causa das altas taxas de
infecção pelo vírus registradas no Brasil. Só os uruguaios estão entrando lá.
Mas descerei do avião apenas para embarcar numa enorme aeronave da Aeroflot.
Com máscara, é claro. Desde o Rio, uso máscara. Vou continuar usado até o
destino. No local, continuarei usado. Ela acabará fazendo parte do meu corpo. A
mudança de um avião para outro dura 1 hora e 40 minutos. A empresa afirmou que
o espaço para as pernas é de 74 cm, abaixo da média das aeronaves de outras
empresas. Imagine voar mais de 11 horas em situação desconfortável? Ainda mais
pra mim, que tenho pernas compridas. Preciso computar também o atraso na
partida, as quase duas horas de espera os atrasos habituais. O avião já está no
ar e eu estou arrependido. É sempre assim. Tenho esses rompantes e depois me
arrependo. Mas não tomo jeito.
Se
eu fosse casado, tenho certeza de que minha mulher não aguentaria minhas
aventuras. Ela as consideraria caprichos. Viajar para Buenos Aires, Santiago,
Nova Iorque, Lisboa, Madri, Roma, Paris, Londres, Viena, Berlim, tudo bem. São
cidades de gente civilizada. Mesmo Moscou, para onde estou indo, permite
respirar cultura. Não estamos mais no mundo cristão romano, mas ainda nos sentimos
um pouco em casa com aquelas magníficas igrejas ortodoxas. A língua é muito
estranha e a escrita dela mais estranha ainda. De Moscou, podemos visitar as
capitais dos países vizinhos, que apresentam alto nível de vida. Podemos ir a
Atenas, inclusive, com facilidade. Para poder viajar em paz, eu não me casei.
Quando
comecei a trabalhar, aos 25 anos, criei um fundo para financiar minhas viagens.
Só comecei a viajar cinco anos depois. Minha primeira viagem foi à ilha de
Marajó. De Soure, parti para outras cidades da ilha. Conheci o lago Arari. Para
a maioria das pessoas, basta conhecer uma cidade da lá para dar por conhecida
todas as outras porque, dizem, são todas iguais. Não é bem assim. Há diferenças
sutis entre elas, tanto quanto há de um búfalo para outro.
Eu
podia ter escolhido Buenos Aires ou Santiago para minha viagem seguinte, mas
escolhi Cusco e Machu-Pichu. Admirei Cusco, tomei chá de coca, visitei a pedra
dos onze ângulos, adorei os prédios construídos pelo império inca, que foram
parcialmente destruídos pelos europeus para servirem de alicerce das igrejas
católicas. Dois anos depois, passei 15 dias na ilha de Páscoa. Saí do Rio, fiz
escala em São Paulo e baldeação em Santiago para chegar à ilha, que hoje se
chama Rapanui. Disseram que eu era louco em me meter no meio daquelas grandes
estátuas de pedra. Mas adorei a viagem. Como os polinésios puderam esculpir e
erguer aqueles monumentos enormes? Estive também no arquipélago de Galápagos,
respirando o ar que Darwin respirou no século XIX.
Numa
das minhas muitas férias, subi o rio Amazonas até Tabatinga, na fronteira do
Brasil com a Bolívia. Creio que sou um turista influenciado por leituras. Na
adolescência, li um livro da biblioteca do meu pai intitulado “À sombra do
inferno verde”, do médico militar M. Baliú Monteiro, narrando sua vida em
Tabatinga quando serviu lá. Não faz muito tempo, encontrei o livro e o comprei.
Foi publicado em 1946. Também por influência de leitura, prossegui a viagem até
Iquitos, já no Peru. Na volta, passei uma semana em Manaus e subi o rio Negro
até São Gabriel da Cachoeira, única cidade do Brasil em que quatro línguas são
oficialmente reconhecidas: o português e mais três línguas indígenas.
Já
me meti em muitas bibocas. Escrever sobre as viagens que fiz daria um grosso
diário. Mas agora estou em Paris, dentro de um avião, viajando na classe
econômica para Moscou. Depois de quase duas horas, o gigante da Aeroflot
levanta voo. São mais quatro horas de viagem até Moscou. Vou pensando nas
minhas maluquices e me arrependendo delas. Ir a Moscou não é doideira. Afinal,
trata-se de uma cidade procurada por muitos turistas brasileiros. Mas acontece
que não vou conhecer Moscou. Meu destino é Verkhoiansk, pequena cidade na
Sibéria. Consta que é uma das cidades mais frias do mundo. Chegamos ao
aeroporto de Sheremetievo. Passo um dia em Moscou num hotelzinho
barato. Preciso descansar. Afinal, não sou mais o jovem aventureiro de 40 anos
passados. E essa mudança de fuso horário atordoa a gente. Não nascemos para
mudanças bruscas.
No
dia seguinte, pego um trem urbano e viajo 45 minutos até o aeroporto de
Domodedovo. Embarco num avião que me levará a Yakutsk com escala em Deputatsky.
A viagem é tão longa quanto do Rio a Paris. Voarei durante 12 horas e 10
minutos mais os atrasos habituais. De lá, percorrei 13 horas e 40 minutos de
carro até Verkhoiansk. Será a mais longa viagem da minha vida. Do Rio ao meu
destino final, são 26 horas. Minha viagem vai ser mais longa que um dia. Vou
chegar lá completamente perdido e exausto. Com o atraso na partida e com o
taxeamento no destino, calculo 29 horas, meu Deus! Viajo mal, garanto que essa
será minha última aventura, prometo a mim mesmo sabendo que não vou cumprir a
promessa. Durmo, leio o que está no encosto do avião. Mentira, apenas vejo as figuras
porque está tudo escrito em inglês e russo. Lancho, almoço, janto, bebo uísque,
vinho. Custa a passar.
Fim da viagem? Agora, e só pegar um taxi para
Verkhoiansk? Nada disso. Você vai pagar 330 reais por um automóvel que vai
viajar 683 quilômetros durante nada mais nada menos que 14 horas. Já que
cheguei até aqui, o jeito é encarar. Lá vamos nós para Verkhoiansk. Poupo o
possível leitor do que vi durante a viagem. Nada falarei da estrada. Já é noite
quando chegamos. Vou para o hotelzinho que reservei com antecedência e com
muita dificuldade de comunicação. Estou exausto. Deito-me depois de uma leve
refeição e durmo profundamente durante 12 horas.
No dia seguinte, acordo completamente zonzo pela
mudança de fusos horários. Saí do da longitude 43° oeste, cheguei perto do 0°
de Greenwich e me desloquei para 67° leste. Abro a janela do meu quarto e
aprecio Bepxorhck, a grafia em cirílico de Verkhoiansk.
Ninguém acreditará ou aceitará o motivo da minha viagem. Vim conhecer uma das
cidades mais frias do mundo. No auge do inverno, em janeiro, a média da
temperatura é de −50°C. Ela é campeã de frio ao lado de Oymyakon, que
não pretendo visitar. Se estou aqui é porque a temperatura, nesse verão de
2020, chegou a 38°C. No meu primeiro dia na cidade, o calor não foi tão alto,
mas eu me sentia no Rio de Janeiro do século XVII porque só 1.434 almas a
habitam e a temperatura estava boa para um carioca.
Sim,
leitor, a cidade se ergueu às margens do rio Yana, que desemboca no mar glacial
ártico. Embora haja um porto em Verkhoiansk,
não há pista para aviões comerciais. Só uma pequena pista. A cidade foi fundada
em 1638 por cossacos (meu Deus, o quê esses caras vieram fazer aqui?!. Melhor,
como eles vieram parar aqui?). A vila de Campos ainda não tinha sido fundada
nesse ano. Na verdade, eles ergueram um povoado a 90 quilômetros daqui. Em
1775, esse núcleo se deslocou para a margem esquerda do rio Yana a fim de
facilitar a coleta de impostos. Será que algum cobrador de imposto chega até
aqui? Certamente que sim. Para cobrar impostos, o Estado vai ao inferno.
Em 1817, o local foi elevado ao status de cidade
apenas pelo seu caráter histórico, que eu não percebi muito bem, pois é uma das
menores cidades do maior país do mundo. De 1860 a 1917, tornou-se um local de
exílio dos críticos do czarismo. A amplitude térmica aqui é talvez a maior do
mundo. No inverno, a temperatura já foi a −69.9°C. no ano de 1892 e nesse verão chegou a +38°C.
Some os dois números e imagine o que é sair de −60° C no inverno e chegar a +38°C no verão. 60+38=98.
Quase 100°C entre o inverno e o verão. Não há saúde que resista. No Rio de
Janeiro, a pessoa fica gripada no inverno apenas com 15°C. Venham morar aqui,
cariocas e campistas.
Passei uma semana em Verkhoiansk, até para descansar
e recuperar forças para o retorno. Andei pela cidade. Visitei uma igreja
ortodoxa, com seus bulbos sempre maravilhosos. Esse é um ponto sagrado: numa
aldeia de três casas na Rússia, uma é igreja. O ritual é pomposo. Embora
pequena, a cidade tem carros transitando freneticamente por suas poucas ruas.
Conheci o comércio. A cidade tem um shopping e um supermercado. No outro lado
do mundo, senti um certo conforto. Não por gostar de shoppings e supermercados,
mas por saber que a globalização tornou os lugares, seja o mais remoto deles,
parecidos entre si. Mas, pensado bem, isso é detestável.
Portanto, ao mesmo tempo, não gostei. Eu queria
sentir o desconforto de estar fora de um mundo conhecido. Havia pessoas
circulando pelas ruas. Pelo jeito, muitos turistas. Muitas caras familiares e
algumas pessoas com traços mongóis. Planejei mal minha viagem. É o meu
açodamento. Eu devia ter planejado conhecer, na Sibéria, aqueles povos em
extinção que ainda vivem de modo tradicional, pescando, caçando, morando em
casas típicas, com suas roupas vistosas e falando suas línguas nativas, apesar
da russificação da Sibéria. Eu devia ter planejado uma viagem para conhecer os
esquimós siberianos (sim, eles não estão só na América do Norte), os Nenets e os Nanai. Sei que o processo de
aculturação desses povos já está avançado. Eles já usam celulares melhores que
o meu e já andam de trenó motorizado. De qualquer maneira, eu ainda conheceria
um pouco de culturas distintas da nossa, que invadiu o mundo inteiro.
Julguei que nenhum vírus chegaria aqui. Não apenas
os vírus, mas qualquer micro-organismo. Enganei-me. Todos circulavam pelas ruas
usando máscaras, embora sem manter distanciamento físico. E já existem casos de
contaminação com morte. Se nesse fim e começo de mundo, o vírus já chegou, não
há como fugir dele.
Comprei um calção (eles não usam shorts como os
nossos) e tomei banho de rio, numa praia de rio relativamente frequentada.
Depois, procurei um ponto alto para tirar fotos. Na verdade, não foi difícil fotografar
a cidade inteira. No meu último dia, encontrei um brasileiro que mora aqui com
a família há 10 anos. Não há lugar no mundo sem brasileiro. Não é raro também
encontrar campista. Bom, não relatarei minha viagem de volta por ser algo muito
monótono. Pouparei o leitor.
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