TRILHA SONORA
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 13 de julho de 2020
Trilha sonora
Edgar Vianna de Andrade
Antes do advento do cinema, a música
considerada erudita podia ser agrupada em duas grandes categorias: de um lado,
a música pura; de outro, a música de programa. A pura é aquela que não pretende
descrever nada, resumindo-se a criar arte com sons. Antes da música de
vanguarda, nunca se conseguiu que a música pura fosse realmente absoluta. Ela
sempre transmitiu algum tipo de emoção. A música pura de Bach está repleta de
religiosidade. A música pura de Mozart retrata a aristocracia em seus
estertores, com sua frivolidade. A música pura de Beethoven é de uma rebeldia
nervosa. A música puríssima de Brahms reflete a nostalgia pelo fim da velha
Alemanha e do romantismo.
A música de programa pretende narrar
uma história com sons. O exemplo que mais se aproxima da música pura é o poema
sinfônico. Richard Strauss pretendeu que se imaginasse o estertor de uma pessoa
em “Morte e transfiguração”. Uma espécie de composição a descrever algo que se
vê é a música para dança, gênero em que Tchaikovsky se tornou famoso. Contudo,
o gênero mais ambicioso de música de programa é a ópera. Nela, os sons não
apenas sugerem algo à visão ou descrevem algo que se vê, mas ela mesma – a
música – é entoada pelos participantes, que, além de cantarem, também
representam uma peça teatral.
Com a invenção do cinema, cria-se
uma nova categoria: a trilha sonora. Desde os tempos do cinema mudo, a música
foi usada, fora da película, como acompanhamento. Um pianista, um violoncelista
ou um pequeno grupo produziam sons de acordo com os movimentos da tela, ora
mais calmos, ora mais agitados. Estudiosos da nova arte afirmam que era
possível acoplar a música diretamente à fita, mas tratava-se de um processo
demorado e caro.
Quando,
em 1927, conseguiu-se reunir imagem e som na película, a trilha sonora começou
a ganhar importância no cinema. O genial cineasta alemão Ernst Lubitsch,
trabalhando nos Estados Unidos, dirigiu “A parada do amor” em 1929, o primeiro
musical do cinema. Daí em diante, o cinema não mais dispensou a música. Mas não
podia ser qualquer música. Por duas ocasiões, Villa-Lobos, que tocou violoncelo
em cinema quando jovem, foi convidado para compor trilhas sonoras. Ele se saiu
bem em todos os gêneros musicais, mas fracassou na composição de trilhas
sonoras por considerar o cinema uma arte menor que a música. A primeira
experiência foi com o filme “O descobrimento do Brasil”, dirigido por Humberto
Mauro em 1937. Para ele, Villa-Lobos compôs uma belíssima cantata, porém mais
longa que o filme. Sua última composição foi “A floresta amazônica”, de 1959,
também escrita sob encomenda para musicar um filme norte-americano medíocre.
Foi um fracasso. Só um autor compôs trilhas sonoras sobre cada quadro de
filmes. Trata-se de Philip Glass, nos filmes “Koyaanisqatsi” (1982), “Powaqqatsi” e (2002)
“Naqoyqatsi” (2002) do inspirado
cineasta Godfrey
Reggio, dono de uma reduzida filmografia. Glass compôs muitas outras trilhas
sonoras, mas elas foram editadas de acordo com os filmes. Os três mencionados
são documentários sem palavras. Daí a música poder ser apresentada na íntegra.
O grande compositor de trilha
sonora deve ter a humildade de reconhecer que sua música não é maior que o
filme e que deve ilustrá-lo. Assim, ele pode se tornar grande. Pode-se dizer que
a Itália produziu três mestres em trilhas sonoras: Mario Nascimbene, Nino Rota
e Ennio Morricone, este último falecido recentemente. Nascimbene é autor das
trilhas sonoras de “A condessa descalça” (1954), “Alexandre, o grande” (1956), “Os
vikings” (1958), “Salomão e a rainha de Sabá” (1959), “Cartago em chamas”
(1960), “Constantino e a cruz” (1961), “Francisco de Assis” (1961), “Os
Mongóis” (1961), “Barrabaá” (1961) e muitos outros.
Nino Rota imortalizou-se como
compositor das trilhas sonoras dos filmes de Federico Fellini. Dos três, Ennio
Morricone é o mais conhecido e aclamado. Suas trilhas sonoras são criativas,
experimentalista que ele foi, usando ocarina e sons ambientes. Quando um fagote
emitindo notas mais graves do que o comum entrou na trilha de “Os oito
odiados”, de Quentin Tarantino, disse a mim mesmo: essa trilhe merece o Oscar.
Acertei. Ele o arrebatou sem hesitação. Não cabe listar suas composições. A
imprensa já o fez exaustivamente depois de sua morte. Faço apenas o registro de
sua relação com Sergio Leone em filmes do chamado faroeste espaguete. Suas
trilhas se tornaram imortais. Hoje, a música passou a ter tanta importância
quanto o filme.
Comentários
Postar um comentário