QUEM ESTÁ FORA NÃO ENTRA E QUEM ESTÁ DENTRO NÃO SAI
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 14 de julho de 2020
Quem está fora não entra e quem
está dentro não sai
Afrânio Sobral
Só dez anos depois de controlada a
pandemia causada pelo novo corona vírus, o caso de Santo Isidro foi revelado em
sua integralidade. A pandemia só arrefeceu depois da terceira onda e com a
vacina escolhida entre muitas pela Organização Mundial da Saúde. No todo, o
vírus assolou a humanidade por dois anos.
Santo Isidro é um lugarejo no
interior do Nordeste brasileiro que contava, na época da pandemia, com 531
habitantes. Uma pequena agricultura de subsistência completada com a criação de
alguns animais era a base da economia local. Algum excedente era vendido para
outros lugares. Semanalmente, um caminhão ia até lá levando artigos
necessários, como alimentos industrializados, roupas e remédios, aproveitando
para comprar parte da produção agrícola e artesanal do lugarejo.
Tratava-se de um local tipicamente
nordestino, com casas baixas, coladas e pintadas em cores muito vivas. Povo
pobre e tranquilo formado por velhos e crianças. Os jovens saíam para os
grandes centros à procura de emprego, pois não queriam ficar na roça
trabalhando nas atividades tradicionais de seus pais e avós. Em todo o
Nordeste, esse fenômeno estava ocorrendo.
Não havia médicos em Santo Isidro. A
pequena população recorria a uma velha senhora, que atuava como parteira e
curandeira. Também uma vez por semana, Dr. Gerson, médico do estado, visitava o
lugar para atendimento de rotina. Ele viajava no seu próprio automóvel, com
todas as despesas custeadas pelo governo estadual, além do salário. As doenças
mais frequentes podiam ser curadas de forma simples com remédios fornecidos
pelo próprio Dr. Gerson. Se aparecia um caso especial, ele o encaminhava para a
capital ou para o centro mais próximo com capacidade de atendimento. Esse
transporte geralmente era feito por ele mesmo em seu carro.
Quando a pandemia começou, poucos
cientistas e médicos acreditaram que ela tomaria as proporções que tomou no
Brasil. Pensou-se que o primeiro caso em São Paulo seria contido com a
contaminação de poucas pessoas. Ela nunca atingiria Santo Isidro, lugarejo no
fim do mundo. Mesmo assim, Dr. Gerson passou a ter cautela em suas visitas.
Antes que se insistisse no uso de máscaras, ele passou a usá-las nos seus
atendimentos para proteger seus pacientes, sobretudo os idosos. Os habitantes
gostavam muito dele e achavam desnecessária a sua máscara. Mas ele respondia
que o atendimento devia ser feito como um médico procede durante uma cirurgia:
o uso de máscara par proteger o doente, não o médico. A explicação visava
também desarmar qualquer impressão de que ele estava se protegendo da
população.
Com o agravamento da pandemia, dr.
Gerson passou a usar sobre a máscara de pano também uma máscara de acrílico,
além de luvas para exames tópicos. Entre uma visita e outra, dr. Gerson testou
positivo para a covid-19. Certamente, ele contraiu o vírus em outro hospital em
que trabalhava, não na remota Santo Isidro. Na última vez em que estivera lá,
atendeu três pacientes: duas senhoras e um idoso muito querido na cidade. Antes
de ser hospitalizado dr. Gerson tentou contato com a comunidade. Lá, ninguém
conhecia computador. Celular só mesmo daqueles antigos. Mesmo assim, nem todos
possuíam um. O sinal era sofrível.
Ele pediu a seu filho que
continuasse tentando contato com os três pacientes que atendeu na sua última
vez. O filho tentou ir ao local, mas foi desaconselhado pelo próprio pai, já
que ele também podia estar contaminado. A recomendação foi entrar em contato
com o motorista de caminhão que visitava a remota localidade uma vez por
semana. Mas este já havia passado dos 60 anos e suspendeu suas viagens. Antes
de morrer, dr. Gerson insistiu muito com seus colegas sobre o risco que sofria
a população isidrense, mas todos estavam muito envolvidos com os contaminados
pelo vírus, que entupiam os hospitais. Santo Isidro não era prioridade e foi
deixado a sua própria sorte.
As três pessoas atendidas pelo dr.
Gerson na sua última ida ao lugarejo manifestaram sintomas da doença duas
semanas depois. Elas a contraíram, mesmo com todas as precauções tomadas pelo
médico. Todas elas tinham família numerosa, principalmente irmãos, cunhados e
netos. Sem se preocuparem em tomar cuidado, os três contaminaram outras pessoas
que, por sua vez, passaram o vírus adiante. A filha de um dos moradores do
local e que não morava mais lá conseguiu fazer contato com sua mãe e ficou
sabendo de tudo. Ela quis visitar sua família, mas teve receio de também se
contaminar. Parecia mais seguro ficar num centro maior e se proteger em casa do
que voltar para seu lugar de origem. Na cidade onde morava, havia recursos. Em
Santo Isidro não havia nenhum. A notícia da morte do dr. Gerson abalou todos os
habitantes do lugar.
Essa moça avisou as autoridades sobre
a situação crítica de Santo Isidro. Foi pior, pois, por determinação
governamental, a localidade toda foi isolada do mundo. Quem estava dentro não
saía e quem estava fora não entrava. Os cuidados aos doentes ficaram por conta
da curandeira, que também contraiu a doença e morreu. Ao mesmo tempo em que o
lugarejo tinha a vantagem de ficar isolada do mundo, mostrava a desvantagem de
não contar com ajuda por ser distante, desconhecida e desimportante para os
governos municipal, estadual e federal. Havia prioridades e Santo Isidro não
estava entre elas.
Abandonados a sua sorte, o povo
isidrense teve de se virar. Morreram idosos e crianças. A própria população
teve de enterrar seus mortos e cuidar dos doentes. Todos contraíram a doença.
Mal sabiam eles que o governo federal tomara a decisão de transformar Santo
Isidro num laboratório a céu aberto. O lugar estava fortemente isolado. Um belo
dia, apareceu por lá um médico e dois enfermeiros do exército acompanhado de um
soldado que dirigia um jipe. Todos estavam usando equipamento de proteção
máxima. A finalidade não era levar qualquer socorro, mas examinar o
comportamento de um vírus numa comunidade pobre e isolada.
Dos 531 habitantes, 327 haviam
morrido. Os 204 restantes haviam adoecido e se curado. Todos foram
meticulosamente examinados. Os testes sorológicos revelaram que a maioria tinha
desenvolvido anticorpos. A minoria continuava vulnerável. O vírus continuava
circulando. Por que uns desenvolvem anticorpos e outros não? Havia crianças e
idosos aparentemente imunes enquanto que outro grupo, também de crianças e de
idosos, continuava vulnerável. Haveria uma explicação genética? O médico
observou que a maioria das pessoas eram parentes e contraparentes, resultando
de cruzamentos familiares frequentes, o que era normal numa localidade pequena
como Santo Isidro. Seria esse o segredo da resistência? Mas os grupos
endogâmicos costumam apresentar fragilidades genéticas.
Os resultados foram levados para um
centro de pesquisa a fim de serem examinados. Era isso mesmo: muitos imunes e
poucos não. Dois meses depois, os cientistas envolvidos na experiência secreta
foram surpreendidos pela notícia de uma segunda onda em Santo Isidro. O
resultado foi impressionante. Primeiro, os que se julgavam imunes contraíram o
vírus novamente. Os aparentemente não-imunes morreram. Uma conclusão se
impunha, aliás duas: os anticorpos dos imunes não evitou que eles contraíssem
novamente o vírus, ao mesmo tempo quase todos os que se julgavam imunes
resistiram à segunda onda e desenvolveram mais ainda anticorpos.
A população estava agora restrita a
146 habitantes. Concluiu-se que a idade pesava na sobrevivência e na produção
de anticorpos, mas não explicava tudo. Muitos jovens morreram na primeira e na
segunda ondas. Médicos e cientistas concluíram, com base nos resultados
colhidos em Santo Isidro, que a produção de anticorpos não imunizava
definitivamente aqueles que contraíam a doença. Tratava-se de uma conclusão
precipitada, pois as condições sociais do lugarejo nordestino eram restritas.
Chegou o ano de 2021 com uma vacina
produzida em tempo recorde. Os idosos foram os primeiros a recebê-la. Depois,
as outras faixas etárias. Por último, os sobreviventes de Santo Isidro. A
partir de então, a vacina passou a ser ministrada anualmente, como acontece com
a vacina contra influenza.
Em 2030, Alonso, filho do dr.
Gerson, estudou em sua tese de doutorado o caso de Santo Isidro. Os documentos
foram parcialmente liberados. A divulgação de Alonso ganhou o mundo por ter
Santo Isidro se transformado num laboratório humano sem que princípios éticos
básicos fossem observados. O presidente do Brasil na época perdeu as eleições
de 2022. Na de 2024, ele se elegeu deputado novamente. Em 2030, ele estava
recolhido em sua casa, na Barra da Tijuca, depois de ter sido considerado
culpado por crimes contra a humanidade pelo Tribunal de Internacional de Haia.
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