QUADRINHOS: DA REVISTA AO LIVRO
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 29 de julho de 2020
Quadrinhos: da revista ao livro
Arthur Soffiati
Quando criança e adolescente, eu era
um aficionado das histórias em quadrinhos. Ganhava revistas dos meus pais e dos
meus avós com os super-heróis da DC Comics, aqueles da primeira geração, como
Super-Homem, Batman, Fantasma, Mandrake, Nick Holmes, Capitão Marvel. Eram
heróis perfeitos. Não tinham vícios. Eram homens e mulheres virtuosos (havia
também as super-heroínas). Não namoravam ou, se namoravam, não havia entre eles
nada de intimidades. Fantasma tinha uma noiva eterna. Super-Homem também.
Batman tinha Robin, o amigo inseparável. Era um mundo seguro e feliz com esses
heróis que representavam os valores dos Estados Unidos, raramente praticados.
Mas eu gostava também dos
personagens da Disney. Pato Donald e os sobrinhos, também com Margarida, sue
eterna namorada; o sovina tio Patinhas, ambicioso mas camarada; Mickey e
sobrinhos, também namorando Minie eternamente. Pateta, Clarabela, Horácio e
tantos outros. Do mundo perfeito, passava-se ao mundo ingênuo.
O que me fascinava eram os
almanaques. Eles eram anuais. Almanaques de “O Tico-Tico”, “Vida Infantil”, “Tiquinho”.
Os heróis brasileiros já eram meio malandros. Disney quis imitá-los com Zé
Carioca, mas não conseguiu. Nunca a ingenuidade de Reco-Reco, Bolão e Azeitona,
de Luís Sá, foi alcançada pelo poderoso Disney. Nunca apareceu um malandro como
Pituca, de Joselito, nos Estados Unidos. Talvez apenas Condorito, de Pepo, no Chile. A liberdade de
criação de Lourolino e Remendado, também de Joselito, me encantava em “Vida
Infantil”. Até hoje me encanta e surpreende. Joselito merece ser redescoberto.
Em
1960, aos 13 anos, troquei os quadrinhos pela literatura, filosofia, ciência e
música. Aquele mundo do desenho aos quadradinhos, como são chamados os
quadrinhos em Portugal, era coisa de criança. Só voltei a eles na década de
1970. Esse desinteresse de dez anos me fez perder os heróis humanizados da
Marvel. E meu retorno se deve ao fato de terem os intelectuais descoberto os
quadrinhos como uma forma de arte. Eu não lia os quadrinhos, mas os livros
sobre os quadrinhos de Moacy Cirne principalmente.
Os
quadrinhos passaram a fazer crítica social e política. Sem muita convicção, vi
neles uma nova forma de arte. Os intelectuais demoraram a concluir que estavam
diante de uma nova expressão artística, assim como aconteceu com o cinema no
início do século XX. Ao lado das revistinhas vendidas em bancas de jornal,
começaram a ser publicados livros de autores considerados artistas. Passei a
lê-los, mas nunca com a frequência da minha inocente infância e
pré-adolescência. Tratava-se agora de quadrinhos adultos.
Em
2019, li quatro livros de quadrinhos. Quando assisti a “Trinta dias de noite”,
filme de 2007, com direção de David Slade e baseado no livro de quadrinho com
mesmo título e de autoria de Steve Niles e Ben Templesmith, desejei logo
comprar o livro (Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2019). O contraste entre o
branco da neve e a escuridão da noite numa cidadezinha do Alasca. O sangue na
brancura e aquela legião de vampiros famintos, mas ao mesmo tempo charmosos,
pareciam inovar o terror com vampiros. Assisti ao filme novamente agora e não
encontrei mais tanto encanto. Talvez tenha sido efeito do livro, com uma
história mais longa que a exibida no filme. A escuridão do desenho em mancha,
mais insinuando a história do que a revelando abertamente, fez com que eu
apreciasse mais o livro que o filme. Os desenhos parecem nascer de sangue
espirrado numa superfície, criando um clima digno de vampiros. Mesmo assim, não
concluí que estava diante de uma obra de arte.
Li
também “Black hole”, de Charles Burns (Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2017),
reunindo várias histórias ou capítulos com os mesmos personagens num mundo de
drogas, sexo e marginalidade. Burns concebe um mundo onírico, sem clímaces.
Personagens estranhos se movimentam nas histórias. Ele nos leva a esperar algum
desfecho vigoroso, mas nada acontece. E o buraco negro do título aparece do
princípio ao fim. Nenhum momento trágico, nenhuma passagem inesperada. Não
direi que seu desenho é elaborado, como insistem seus admiradores.
Já
a quadrinista Emil Ferris é uma grata surpresa. Seus desenhos são feitos com
caneta esferográfica sobre papel que simula um caderno escolar. Algo assim como
quem está estudando e desenha no caderno de tarefas figuras e histórias como
distração. Mas é tudo farsa. Ferris é uma excelente desenhista e roteirista. No
seu alentado álbum “Minha coisa favorita é monstro” (São Paulo: Quadrinhos na
Cia, 2019), ela coloca uma menina com aparência de vampira nada sensual que tem
um irmão envolvido com mulheres de forma misteriosa. A mãe zela pela educação
de ambos. A menina tem dentes de vampiro, mas é uma lobisomem (ou lobismulher)
que sofre preconceitos até ser aceita por poucos.
Ela
se envolveu com um casal cuja mulher é judia e esconde uma história misteriosa
na Alemanha nazista. Um dia, ela aparece morte. São muitos os suspeitos. Seu
marido é o principal. Por conta do irmão, a menina frequenta salões de arte.
No
entanto, a grande descoberta para mim foi Alison Bechdel, outra desenhista.
Dela, chegou até nós “Fun Home: uma tragicomédia em família” (São Paulo:
Todavia, 2019). Bechdel é uma excelente memorialista que se expressa pelos
quadrinhos. No livro, ela mostra a sua relação tensa com seu pai. Há conflito e
ternura nessa relação. O pai é homossexual que esconde a sua condição no
casamento e nos filhos. Tem uma família que ele aparenta ser tradicional. Mas
nos gestos, ele revela a homossexualidade. É preciso atenção. Trata-se de um
homem perfeccionista que gosta de decoração e de interferir no modo de a filha se
trajar, que também se descobrirá lésbica assumida.
O
pai foi dono de uma funerária e gostava de lidar com a morte. Mais
especificamente com os mortos. Inclusive, procurava mostrar cadáveres aos
filhos como algo muito natural. Ele tem um amante. A mãe sabe da sua
existência. Aliás, a vida do casal é amarga. Um dia, ele morre atropelado por
um caminhão. A dúvida fica no ar: acidente ou suicídio?
Pela
primeira vez em minha vida, estou diante de uma autora que consegue colocar em
quadrinhos todo um drama psicológico, a dimensão intimista dela, da mãe e do
pai, as discussões sobre alta literatura. Sua narrativa não é linear. Como
Proust, ela mergulha no mundo da memória, do tempo, das conjecturas, das
dúvidas. A figura narcisista de seu pai a atrai e a repele. A narrativa contida
nesse livro de quadrinhos bem podia ser estampada num livro de memórias. E não
vem ao caso se seu desenho é artístico. Ela desenha e optou pelos quadrinhos
para contar a sua bela, tensa e trágica história.
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