DA LAGOA DA ONÇA A MURITIBA PASSANDO POR GUARUS: UMA VIAGEM AO PASSADO (II)
Campos Magazine News, 30 de
julho de 2020
Da lagoa da Onça a Muritiba
passado por Guarus: uma viagem ao passado (II)
Arthur Soffiati
Vivemos
um momento de redescoberta da natureza. Não de um retorno às relações íntimas
que os povos indígenas mantinham com ela, mas do reconhecimento de que ela é de
suma importante para a vida da humanidade. Precisamos olhar mais para o relevo,
o tipo de solo, os rios e a vegetação nativa. Nas margens dos rios Paraíba do
Sul e Muriaé, em seu curso final, existem três tipos de terreno com idades
diferentes. Descendo da antiga zona serrana, pisamos os tabuleiros da margem
esquerda de ambos os rios. Eles se estendem do Paraíba do Sul ao Itapemirim, no
Espírito Santo, e datam de 5 milhões de anos. A vegetação nativa original que
os recobria era a mata estacional semidecidual, que perde de 20 a 50% na
estação seca. Um mapa de 1747, desenhado por autor desconhecido, assinala esse
tipo de floresta na margem esquerda de um rio Paraíba do Sul descendo de norte
para sul. Dela, restaram algumas manchas, sendo a maior aquela protegida pela
Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba, em São Francisco de Itabapoana.
Na
margem direita do Paraíba do Sul, o rio formou uma vasta planície aluvial com
sedimentos transportados tanto da serra quanto dos tabuleiros. Sua idade é
estimada em cinco mil anos. A vegetação que a recobria era rala por conta do
excesso de água. Próximo à foz, o rio e o mar formaram uma extensa restinga com
cerca de 2.500 anos. A vegetação, ali, pode alcançar o porte de floresta no
interior, ainda que crescendo em substrato arenoso. Perto do mar, sua estatura
se reduz por causa dos fortes ventos e da salinidade presente no ar. Das matas
de restinga também pouco restou pelo desmatamento sistemático. Na foz dos rios
que desembocam no mar, cresciam manguezais. Os principais são os dos rios
Itabapoana, Guaxindiba e Paraíba do Sul
Mapa de autor anônimo de 1747,
mostrando a Serra do Mar (ao fundo), o rio Paraíba do Sul (em primeiro plano),
o rio Muriaé (à direita) e as matas estacionais semideciduais do Sertão de
Cacimbas
Vinte anos depois
do mapa anônimo, o Sargento-Mor Manuel Viera Leão cartografou toda a Capitania
do Rio de Janeiro de forma primorosa para a época. Seu trabalho de
reconhecimento representa um marco na cartografia. Com relação à margem
esquerda do Paraíba do Sul, o destaque recai sobre a lagoa do Campelo, tão
importante no setor norte da restinga quanto a lagoa Feia é importante na
margem direita. Mas Vieira Leão só assinala o rio Camapuam (Itabapoana) e a
Ponta de Manguinhos, sem indicar o tipo de vegetação e a freguesia de Santo
Antônio de Guarulhos.
Carta topográfica do Rio de
Janeiro mostrando a margem esquerda do Paraíba do Sul em seu trecho final –
Manuel Vieira Leão - 1767
Em 1777, Francisco
João Roscio produz um mapa que parece copiado de Vieira Leão, nada
acrescentando sobre a margem esquerda do Paraíba do Sul.
Parte do mapa de Francisco João
Roscio relativa à margem esquerda do rio Paraíba do Sul - 1777
No seu alentado
relatório de 1785, Manoel Martins do Couto Reis, militar da infantaria e cartógrafo,
informa que o Distrito de Campos dos Goytacazes contava com duas vilas e seis
freguesias. As vilas eram Campos e São João da Barra. Macaé não foi incluída
porque, na época, a administração da justiça no Distrito estava por conta da
Ouvidoria do Espírito Santo, estendendo-se até a margem esquerda do rio Macaé.
As freguesias eram São Salvador, São João, Santo Antônio, São Gonçalo, Capivari
e Nossa Senhora das Neves.
Como
estamos enfocando a margem esquerda do Paraíba do Sul e do Muriaé, cabe-nos dar
notícia da Freguesia de Santo Antônio, também denominada Santo Antônio de
Guarulhos e hoje apenas Guarus. Couto reis escreveu que ela era a “quarta em
antiguidade, está situada sobre a barranca boreal do Paraíba com grandiosa
extensão de terreno na sua jurisdição, cujos termos para o norte e oeste se
ignora por não estarem demarcados; ainda tem pouco povo, mas a maior parte dele
bem estabelecido com engenhos de açúcar e outras lavouras: tem dentro dos seus
limites uma capela filial do Divino Espírito Santo.”
Como
vantagens da freguesia, Couto Reis aponta a excelente navegação nos rios
Paraíba do Sul e Muriaé. A fertilidade da terra também é registrada por ele
como própria a todos os gêneros de plantas. O terreno é ondulado, com partes
baixas e planas e partes elevadas. Nas planas, havia muitas terras alagadas e
alagáveis, que ele anota como brejais. Ele está aqui identificando a
caraterística primeira dos tabuleiros: a ondulação. Na margem direita, onde se
instalou a vila de Campos, o terreno é somente plano. Atravessando o rio
Paraíba do Sul da margem direita para a esquerda, deixa-se a planície e
alcançam-se os tabuleiros. O cartógrafo anotou a presença de pedras adequadas
para construções, mas elas não existem nos tabuleiros. A menos que ele esteja
se referindo aos terrenos pedregosos do morro da Onça ou do sertão da Pedra
Lisa, ao norte de Santo Antônio e integrantes da freguesia. A grande vantagem
que ele aponta são as abundantes florestas, que podem fornecer madeira de
árvores diversas. Embora entendendo que o desmatamento não devia ser feito de
forma indiscriminada, o militar, em sintonia com seu tempo, entende que a corte
de árvores e a drenagem de brejos abrem espaço para a civilização.
Sobre
os defeitos que ele percebeu na freguesia, estão, em primeiro lugar, as doenças
epidêmicas, que dificultam o seu progresso. De fato, as epidemias resultam de
doenças endêmicas tanto na margem esquerda do Paraíba do Sul quanto na do
Muriaé. Na época, essas endemias eram atribuídas às emanações mefíticas dos brejos,
quando, na verdade, derivavam de águas represadas e sem peixes para comer os
mosquitos transmissores de morbidades ou a outros transmissores, como a pulga,
por exemplo.
Parte do mapa de Manoel Martins
do Couto Reis relativa à margem esquerda do rio Paraíba do Sul - 1785
No artigo anterior
acompanhamos Couto Reis na sua subida no rio Muriaé até o morro da Onça. Na
verdade, concentramos as atenções no trecho das margens esquerdas entre Santo
Antônio de Guarulhos e a lagoa da Onça, não apenas acompanhando os passos do
capitão cartógrafo, mas também de outros autores. Observamos, nesse trecho, que
a lagoa das Pedras e o canal do Jacaré, que a liga ao Muriaé, já eram bastante
conhecidos. Já existia uma estrada principal de terra entre Guarulhos e a lagoa
da Onça, saindo dela uma estrada secundária para o interior na altura de
Guarulhos. E ao sul da sede da Freguesia? Couto Reis fornece as primeiras
informações mais detalhadas do trecho que se estende de Guarulhos ao rio Cabapuana
(Itabapoana), passando por Muritiba e pelo rio Guaxindiba.
Do
ponto em que o córrego do Cula começava na margem direita do rio Paraíba do Sul
em direção à baixada de restinga, sigamos os passos de Couto Reis na margem
esquerda do mesmo rio rumo ao sul. O cartógrafo registra em seu minucioso o
mapa áreas embrejadas e a lagoa do Campelo ligada ao Paraíba do Sul por um
canal natural. Ela já era bem conhecida e uma verdadeira referência na margem
esquerda. Tudo leva a crer que a ligação com o rio seria feita, como ainda
hoje, pelo córrego da Cataia. Mas há outro canal mais ao norte que se conecta
com o Cataia e chega ao grande rio. Tudo indica ser o valão da Ponte, hoje
desativado.
A
convenção usada no mapa indica que todo o entorno da lagoa do Campelo era
embrejada. Ainda não se sabia que a margem esquerda do rio Paraíba do Sul, da
foz do rio Muriaé ao estuário do grande rio da planície dos goitacás, é
ligeiramente mais alta que o nível médio do rio e que, nas cheias, suas águas
galgavam essa margem até a lagoa do Campelo. Nas estiagens, parte da água
retornava ao leito do rio e outra parte ficava retida em concavidades. Pouco
abaixo da lagoa do Campelo, ele registra a lagoa das Freiras e Frecheiras. Em
seguida, os amplos e inundáveis Campo Novos de São Lourenço. No meio dele, a ilha
Grande, a Lagoinha, Poços, ilha do Engenho Largo, paço do Melimba, um atoleiro
e valeta Porto Velho.
Aspecto da Mata Estacional
Semidecidual na estação seca
Para
o interior, Poço d’Areia, Terra Nova, Genipabu e Muritiba. Este último, ainda
hoje, grande ponto de referência. Mais para o interior, o brejo do Peixe e as
restingas do Aipo e das Velhas. Caminhando cada vez mais em direção ao antigo
Sertão de São João da Barra, aparecem a lagoa do Silva, o brejo da Casa Velha,
o curral Falso, as lagoas da Saudade e do Saco. Chegamos à foz do Paraíba do
Sul, dividida em dois braços: o de Atafona e o de Gargaú, já com esses nomes.
Subindo a costa na margem esquerda do rio, encontramos Gamboa e Curralinho. No
arco costeiro hoje correspondentes às praias de Santa Clara e Sossego, o
cartógrafo anota: “Entrada do Sertão. Neste lugar se fez antigamente uma grande
corveta depois com muita facilidade se lançou ao mar.”
Chegamos
à Ponta de Guaxindiba, onde está assinalado o pequeno rio de mesmo nome. Rumo
ao norte, atingimos a Ponta de Manguinhos, a praia da (nome ilegível), a praia
de Maria Buena, a praia Comprida, a Entrada do Retiro, a Ponta do Retiro, o
baixo Salgado, lagoa Doce e Gamboa Santa Catarina. Couto Reis esteve examinando
os restos da Vila da Rainha, primeira iniciativa de fundar uma colônia europeia
na Capitania de São Tomé por seu donatário Pero de Gois, entre 1539 e 1546.
Tudo indica que, depois desse fracasso, seu filho Gil de Gois, associado a Pero
Leitão, tentou fundar um outro núcleo na margem direita do rio Itapemirim com o
nome de Santa Catarina das Mós. Tanto a vila da Rainha como a de Santa Catarina
homenageiam a rainha de Portugal, D. Catarina. Correndo o percurso de Couto
Reis, chegamos à foz do rio Itabapoana, grafado como Cabapuana. Ele tem uma
grande entrada ao sul e chega ao mar.
Toda
essa área entre o Paraíba do Sul e o Itabapoana recebia o nome de Sertão das
Cacimbas. O nome foi aplicado ao grande brejo das Cacimbas, onde foi aberto,
nos anos de 1830, o canal de Cacimbas. Ainda hoje, o antigo Sertão de São João
da Barra, agora município de São Francisco de Itabapoana, é conhecido como
Sertão das Cacimbas. A denominação vem sendo esquecida. Couto Reis mistura as
convenções para brejos e árvores. De fato, parte da área era alagada ou
alagável, enquanto a outra parte era coberta por vegetação de restinga e de
mata estacional semidecidual.
Aspecto de mata de restinga
arbórea
Também
ao sul de Santo Antônio de Guarulhos, havia uma estrada, que Couto Reis
assinala em vermelho, até Muritiba, onde fazia a curva para o leste se seguia
até a bacia do rio Guaxindiba. Dela, partiam duas ramificações antes da lagoa
do Campelo. Outra chegava à lagoa. Abaixo desta, uma rede de estradas se reunia
numa só que alcançava a ponta leste da lagoa. Na altura da ilha do Engenho
Largo, a estrada principal se ramificava em duas, chegando uma ao litoral e
encontrando com uma estrada costeira que começava na ilha da Convivência (não
nomeada no mapa). A presença da estrada indicaria que ela já seria povoada?
Essa estrada costeira se estende até o rio Guaxindiba. Havia, portanto, duas
estradas de terra paralelas: uma na costa e outra no interior. Esta terminava
no sítio de Pedro Dias dos Santos.
Mó de um engenho da Vila da
Rainha, hoje no Museu do Açúcar, em Recife
Couto
Reis devia indagar sobre os nomes dos proprietários de terra ao longo dessas
estradas, já que, em seu tempo, não havia registro de posse. Os limites entre
uma fazenda e outra deviam ser convencionados pelos donos. É de admirar que
terras alagáveis e alagadas tivessem proprietário. De Santo Antônio de
Guarulhos ao brejo do Espiador, Couto Reis anota os seguintes nomes: Manoel
João F. Ribeiro, Alberto Ferreira, J. Caetano e Cia, Paulo Barreto, Eugenio
Ferreira, Manoel e Cia, Jeroniano da Costa, J. Velho Pinto, João S. Rangel,
Anna Dias, Francisco Jorge, Sebastiana Almeida, D. Anna Maria Maia, Manoel
Rodrigues Pinto, Capitão-mor Belmonte Rangel, Maria das Neves, Antonio
Francisco, Joaquim Gomes, Vicente Ferreira, Manoel Ferreira, Sargento-mor Gregorio
Francisco, Maria do Nascimento (na margem oeste da lagoa do Campelo) e Antonio
(ilegível).
Essa
é a zona mais ocupada por propriedades rurais na margem esquerda do rio Paraíba
do Sul em seu trecho final. Daí em diante, Couto Reis só registra o sítio de
Pedro Dias dos Santos, na bacia do rio Guaxindiba. Por mais meticuloso que
fosse o cartógrafo, ele pode não ter registrado propriedades rurais depois de
Muritiba. Seja como for, a existência de muitas propriedades na margem esquerda
do rio Paraíba do Sul em terras de restinga alagada e alagável era
problemática, pois ainda não havia um dique protetor nem redes de drenagem como
os canais que conhecemos hoje. Pode-se concluir, então, que não importava tanto
a produtividade e a produção da terra, mas sim a sua posse, pois ela conferia
poder ao seu dono.
Essa
foi a herança que a legislação colonial nos deixou: o que conta não é produzir,
mas possuir. Quem possui tem mais poder de receber terras de quem não possui,
como era o caso das sesmarias.
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