DA LAGOA DA ONÇA A MURITIBA PASSANDO POR GUARUS: UMA VIAGEM AO PASSADO (I)
Campos dos Goytacazes, Campos
Magazine News, 21 de julho de 2020
Da lagoa da Onça a Muritiba
passado por Guarus: uma viagem ao passado (I)
Arthur Soffiati
Quem
deseja viajar de Campos a Itaperuna, mais além ou aquém, não encontra
dificuldades. Basta atravessar uma das três pontes que dão mão para Guarus e
tomar a estrada federal BR-356, que liga São João da Barra a Juiz de Fora. Na
estação chuvosa, a estrada está sujeita a rompimentos e alagamentos, pois foi
construída no leito de inundação do rio Muriaé por longo trecho. Em 2012, por
exemplo, era necessário tomar um desvio em estrada de terra antes de Três
Vendas, pois a força do rio arrastou um pedaço da rodovia. Em 2020, o
rompimento ocorreu em Ervália, Minhas Gerais.
Rompimento da BR-356 na altura
de Três Vendas - 2012. Rompimento da BR-356 em Ervália
(MG) - 2020
No
longínquo ano de 1785, o cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis subiu o rio
Muriaé de embarcação até o morro da Onça, hoje bem perto de Campos pela
facilidade de acesso viário. O conceituado militar cartógrafo escreveu em seu
mapa, pouco além do morro: “Daqui não passei diante por embaraços que se
ofereceram, motivados de grandes chuvas que houveram as quais fazem inundar o
rio lhe acrescentam a correnteza de tal modo que se não podia calcular a
distância que se navegava, por cuja causa não dou por seguro a que vai ao
Engenho de Francisco de Azevedo.”
Em
vermelho, seguindo a margem esquerda do Muriaé, ele assinala uma estrada que se
estende das cercanias do morro da Onça até perto da foz do Paraíba do Sul,
curvando-se em direção ao rio Guaxindiba num local de nome Muritiba. Naquele
distante ano, já existia a estrada de Muritiba em direção ao sul, cobrindo
quase toda a extensão da atual estrada estadual RJ-194. Para o norte, tal
estrada acompanhava a margem esquerda do rio Muriaé, como a atual BR-356.
Mas
as condições de trânsito eram bem diferentes das de hoje. A estrada, partindo
da Freguesia de Santo Antônio, hoje conhecida por Guarus, tanto ao norte quanto
ao sul, devia ser usada apenas na estação seca por cavalos e carros de boi. Na
estação chuvosa, os transbordamentos dos rios Muriaé e Paraíba do Sul deixavam
a estrada em baixo d’água. Daí ser mais prático usar os dois rios como estrada.
O Solar da Baronesa tem a sua frente voltada para o rio Muriaé, pois a chegada
até ele era feita mais comodamente pelo Muriaé. No século XIX, um vapor de
médio calado, partindo do rio Paraíba do Sul, alcançava a localidade de Cachoeiras
do Muriaé, hoje Cardoso Moreira.
Mas
continuemos a examinar o mapa de Couto Reis entre as atuais Guarus e Outeiro. Esta
segunda localidade ergueu-se ao pé do morro da Onça, ponto que o cartógrafo não
pôde registrar com a fidelidade que lhe era peculiar. Tanto que escreveu no
mapa: “Este morro foi marcado da praia do Curralinho porque não havia nele um
ponto com que se dirigissem e se encruzassem as visadas com mais acerto, por
isso pode haver alguma diferença.”
E,
cruzando o rio Muriaé de uma margem a outra, vem assinalado em maiúsculas SERTAM
DO MURIAHÉ. A convenção usada por ele, indica que a área toda era coberta por
florestas. Contudo, ainda anotado no mapa, ele esclarece que “Todo o claro que
aqui fica no papel, assim também o arvoredo é ocupado de grandes varjarias,
terras altas, muitos brejais e densas matas que se não assinalam porque se não
podem ver o seu interior.”
O rio Muriaé nasce
na zona serrana, correndo nela em sua maior parte. Atravessa uma área de
tabuleiros. Mais novos que a serra, os tabuleiros são terrenos ondulados de
baixa altitude. A partes altas eram cobertas por florestas estacionais semideciduais.
É a mesma Mata Atlântica, só que adaptada a um ambiente com as estações secas e
chuvosas bem marcadas. Elas recebem este nome por sofrerem influência das
estações. Daí estacionais. São semideciduais por perderem entre 20 e 50% das
folhas na estação seca. Suas madeiras tinham alto valor no mercado. Daí
existirem dela, na região, apenas alguns tufos na região.
Nas
partes baixas, formaram-se incontáveis várzeas, pântanos e lagoas que tinham
comunicação com o rio Muriaé e Paraíba do Sul. Daí Couto Reis observar as
varjarias (várzeas) e os brejais na margem esquerda do Muriaé, baixadas que
encantaram Antonio Muniz de Souza em 1828, viajante sergipano que morou dois
anos em Campos e subiu o rio Muriaé de embarcação. Ao mesmo tempo em que se
encantava com as vastas áreas baixas e com as florestas, Muniz de Souza
informava que a agricultura, a pecuária e os engenhos começavam a subir a
margem esquerda do Muriaé.
Do
morro da Onça até um ponto defronte de Campos onde nascia o finado córrego do
Cula, Couto Reis relacionou os seguintes proprietários rurais: José Duarte
(logo abaixo de sua propriedade, ele registrou o nome Bom Jardim), F. Coutinho,
Domingos Vaz, Felix José, Manuel Pereira da Costa, João L. Machado (abaixo de
sua propriedade, está assinalada a existência de um tabatingal), Luiz Manoel, Manoel
Gouvea e Bento José. Na altura da propriedade desse, para o interior, o
cartógrafo assinalou a lagoa das Pedras ligada ao Muriaé pelo canal do Jacaré.
Foi a única lagoa registrada por ele dentre tantas existentes até o morro da
Onça. Provavelmente as densas florestas não tenham permitido seu acesso às
outras ou ele as identificou aos brejais e várzeas.
Carta corográfica do Distrito
dos Campos Goitacás – Manoel Martins do Couto Reis – 1785
Junto
ao Muriaé e na margem norte do canal dos Jacarés, ele situou a Freguesia de
Santo Antônio. Considerando o detalhamento de Couto Reis, é difícil imaginar
que ele tenha colocado Guarus além do local em que se ergue. Ou foi erro ou
Guarus se deslocou posteriormente para o sul. Mapas posteriores vão colocar
Santo Antônio de Guarus onde ele fica atualmente. Pelo relatório que acompanha
o mapa, Couto Reis descreve Guarus no seu lugar atual. E a lista de
proprietários continua: Dr. Manoel Carlos, Manoel Ribeiro, Ignacio de Araujo e
Manoel João. O cartógrafo deve ter colhido informações sobre propriedades da
boca de informantes que encontrava. Da propriedade desse último, partia para o
interior uma estrada vicinal localizada aproximadamente no ponto da atual BR-101.
Desta, saíam três ramificações à esquerda e três à direita. De certa forma, as
estradas atuais substituíram caminhas carroçáveis do fim do século XVIII.
Depois
do precioso mapa de Manoel Martins do Couto Reis, procuramos a lagoa da Onça e
o Sertão do Muriaé em mapa de autor anônimo datado de 1803. O rio Muriaé
aparece. Assinalamo-lo em azul. Mas só a lagoa do Campelo é registrada. Nem
mesmo a lagoa das Pedras está identificada. Como o mapa destina-se a mostrar
toda a Capitania do Rio de Janeiro, compreende-se a omissão.
Carta da Capitania do Rio de Janeiro
– autor anônimo - 1803
Vinte
anos depois, aparece o famoso mapa de 1823. O Brasil havia proclamado sua
independência em 1822. Esse é o primeiro da Província do Rio de Janeiro,
divisão político-administrativa que substituiu a de Capitania. Novamente, só
figuram nele as lagoas do Campelo e das Pedras. Mas Santo Antônio de Guarus já
está no lugar.
Carta Geográfica da Província do
Rio de Janeiro - Lisboa - 1823
O Sertão de Muriaé passa a ser conhecido
como Sertão do Nogueira. Na margem esquerda dos rios Paraíba do Sul e Muriaé,
nos seus trechos finais, aparecem mais lagoas. Entre elas, a portentosa lagoa
da Onça, ligada ao Muriaé por córrego de mesmo nome.
Carta
corográfica da Província do Rio de Janeiro – Pedro Taulois - 1839
Do
ano seguinte – 1840 – é o mapa da Província do Rio de Janeiro, sem autoria. Ele
parece uma cópia do anterior, tamanhas as semelhanças entre os dois. Os
topônimos se repetem.
Carta
corográfica da Província do Rio de Janeiro – Autor desconhecido - 1840
Joaquim José Nunes, proprietário de
terras nas imediações do morro da Onça, efetuou algumas alterações necessárias
no curso final do rio da Onça para que embarcações de médio calado rebocando
pranchas atravessassem a lagoa da Onça e alcançassem a parte alta do rio de
mesmo nome para transportar toras cortadas na floresta.
José
Fernandes da Costa Pereira, outro grande proprietário de terra naquela região,
tomou a si a tarefa de ampliar e regularizar o canal da Onça, de forma a
facilitar o escoamento de madeiras da bacia do rio da Onça. Com recursos
obtidos por subscrição popular, realizou a obra em tempo recorde. Numa edição
de Monitor Campista de 1840, vinha estampada a seguinte nota:
“AO PÚBLICO
Projetando
o abaixo-assinado, com outras pessoas do lugar, a abertura de um canal que partindo
do sítio do cidadão José Bernardino de Souza no morro da Onça, vá comunicar-se
à lagoa deste nome e sair ao rio Muriaé, aproveitando-se para isso o que
convier de uma vala já aberta pelo cidadão Joaquim José Nunes; convida por isso
a todas as pessoas direta, ou indiretamente na dita abertura, e em geral a
todos os cidadãos prestantes a subscreverem com as quantias que puderem ou
quiserem, na sua casa da rua Beira Rio nº 31, ou 33, prevenidos de que terá
princípio a referida abertura logo que se tenha coligido quantia suficiente.
Sendo reconhecida a vantagem desta via de navegação, tanto para os moradores
daqueles sertões como para o município em geral, pela abundância de madeiras
que eles abundam, víveres, e outros gêneros, que podem abastecer este mercado,
nutre por isso o abaixo assinado bem fundadas esperanças de que todas as
pessoas zelosas do interesse público, concorrerão com suas assinaturas. Campos
6 de abril de 1840. José Fernandes da Costa Pereira
Monitor
Campista, 1840”
Alguns dias depois, a redação do
Monitor Campista elogiava a iniciativa e fazia propostas:
“O Monitor Campista
Em
os nº 7 e 8 desta folha publicamos o convite que fez o Sr. José Fernandes da
Costa Pereira, aos habitantes do nosso município para a abertura de um canal,
que projeta a fim de comunicar a lagoa da Onça, com rio Muriaé, tendo por ponto
de partida as imediações do sítio do Sr. José Bernardino de Souza, e não lhe
ajuntamos logo nossas observações por falta de espaço naquelas ocasiões, o que
fazemos hoje, pois julgamos sempre de grande utilidade, toda e qualquer
empresa, que possa trazer após de si o desenvolvimento, e grandeza do nosso
país.
É
com prazer que vemos ir-se desenvolvendo entre nós o espírito empreendedor, e
certamente ele se teria estabelecido completamente, se as empresas até agora
tentadas já tivessem principiado a apresentar os seus resultados; mau fado
porém as tem acompanhado até hoje, mas não é isto razão para desanimar, porque
são consequências precisas do acanhamento em que nos achamos, e cujos
obstáculos é preciso combater e destruir.
Ninguém
ignora hoje as vantagens resultantes das boas vias de comunicação: a
agricultura e o comércio com elas se fortificam e enriquecem; as incultas matas
se povoam e habitam, os desprezados da fortuna acham mais meios de empregar-se
no trabalho, e a indigência é menos penosa, porque os gêneros necessários à
existência são mais baratos, e por isso mais fácil se torna a manutenção: daqui
a riqueza pessoal, que é sempre a base da riqueza material, e quando um povo é
verdadeiramente feliz, a anarquia, os vícios, e a desordem não mancham as
páginas de sua história.
Somos
informados que é grande a fertilidade dos sertões da Pedra Lisa, ao Norte do
sertão do Nogueira, cujos moradores muito aproveitarão, com a abertura do
projetado canal, ainda que despendam com ela grandes quantias, porquanto em
pouco tempo se acharão compensados das despesas até agora necessárias para a
compra de animais etc, etc, evitando assim o insano trabalho e risco de
caminhar léguas, e léguas de péssimas estradas para chegarem ao porto de
embarque na lagoa das Pedras.
Supomos
porém que o Sr. Fernandes obteria muito mais facilmente os bons resultados a
que aspira, se empreendesse a obra por meio de uma companhia, que autorizada
pelo governo pudesse contar com algum lucro certo do emprego do seu capital;
isto dizemos não porque deixemos de aprovar o seu sistema, mas porque estamos
inteiramente convencidos, que a maioria de nossos concidadãos e que se acham
nas circunstâncias de dispender com o benefício público, com dificuldade se
prestam, senão pressentem que do emprego de seus capitais lhes resultará algum
benefício pessoal; porque seus bens materiais e que indiretamente os virão a
favorecer, com dificuldade ainda compreendem, ao passo que por meio de uma
companhia autorizada pelo governo, receberiam eles interesse de seus capitais
empregados, e se alcançariam os mesmos resultados, concorrendo para empresa
pessoas que não são por ela tão imediatamente interessadas; contudo nós
louvamos muito o Sr. Fernandes, pelo seu empenho, e fazemos votos ao Céu para
que alcance concorrentes a coadjuvá-lo em tão útil empresa, que sem dúvida
transmitirá à posteridade os nomes daqueles que para ela concorrerem.
Ainda
que a obra se não possa fazer perfeita desde já, bom será que se empreenda,
porque fácil será ser ajudada do governo provincial, em seu aperfeiçoamento, no
entanto que se podem ir colhendo os resultados favoráveis que promete essa obra
projetada. Aí está o canal de Cacimbas no município de São João da Barra, que
nos oferece um exemplo de aproveitamento de tais empresas, e que ainda não
aperfeiçoado, já tem prestado meios para o aproveitamento das riquezas de que
abundam aqueles Sertões”.
Todo o editorial é permeado pela
ideia de progresso que ainda hoje nos contamina mais que o novo vírus corona.
A
regularização do canal foi iniciada em 10 de julho de 1840 e concluída em 3 de
novembro do mesmo ano, pois não se tratava de uma abertura, mas do
aproveitamento de um acesso fluvial já existente. No ano seguinte, pela lei nº
244, de 10 de maio, o governo provincial determinou que a Câmara Municipal de
Campos indenizasse José Fernandes da Costa Pereira com a importância de quatro
mil e seiscentos contos de réis e se tornasse proprietária do canal, encarregando-se
de sua limpeza e conservação, bem assim da cobrança de taxas aos usuários.
Em
1844, cerca de 120 colonos belgas lá se instalaram. A experiência malogrou,
permanecendo apenas o belga contratante, que se dedicou a substituir matas por
cafezais. As endemias rurais eram comuns naquela zona e se tornavam epidêmicas
com frequência.
O canal drenou diversos brejos. Num
ponto acima da lagoa, ele se alargava. Ali ficava o Porto da Madeira, onde as
toras eram empilhadas para embarque nas pranchas. No retorno, os rebocadores entravam
na lagoa da Onça e dela saíam em direção ao rio Muriaé. Além de madeira, eram
transportados produtos agrícolas em direção a Campos e São da Barra, onde eram
exportados. Ele cumpriu o mesmo papel dos canais de Cacimbas, do Nogueira, Campos-Macaé
e do Jacaré, este natural e ligando a lagoa das Pedras ao rio Paraíba do Sul,
até que as ferrovias principiassem a substituí-los na segunda metade do século
XIX.
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