A ODISSEIA DO MANGUE
Campos Magazine News, 26 de
julho de 2020
A odisseia do mangue
Arthur Soffiati
Odisseia é um dos dois poemas épicos
de Homero, obra fundante da literatura mundial. O título ganhou sentido
figurado, significando viagem cheia de aventuras extraordinárias, de eventos
imprevistos ou aventuras inesperadas cheias de peripécias, como nos ensinam os
dicionários. O manguezal viveu uma verdadeira odisseia desde a sua origem no
tempo e no espaço. Talvez ainda viva e sobreviva à grande crise ambiental que
assola o mundo todo. Sua história começa há 60 milhões de
anos no Sudeste Asiático. Sabe-se que as plantas tiveram sua origem na água há
muitos milhões de anos. Aos poucos, elas foram ganhando os continentes e se
transformando. Na era dos dinossauros (entre há 250 milhões de anos e 65
milhões de anos), elas ganharam flores, frutos e sementes. Formaram-se, assim,
as plantas completas, com raízes, caule, galhos, folhas, flores, frutos e
sementes. Então, no Sudeste Asiático, um pequeno grupo de plantas decidiu (de
forma figurada, pois planta não decide conscientemente, que se saiba) voltar
para a água. Talvez fugindo da competição de outras, essas plantas molharam
seus pés em água salobra, que é formada pela mistura de água doce com água salgada.
O lugar mais apropriado para as
plantas que originaram o manguezal é o estuário dos rios, ponto em que eles
desembocam no mar. Inútil procurar essas plantas na desembocadura de um rio em
outro rio longe do mar. Inútil também procurar essas plantas em estuários de
rios acima a abaixo dos trópicos. O manguezal é um ecossistema que só cresce na
zona intertropical, podendo se alojar um pouco acima ou abaixo dos trópicos,
mas nunca se afastando muito deles.
Viver na água com o agravante de um
teor de salinidade considerável exige adaptações. As plantas de mangue
adaptaram-se a um ambiente preferencial de estuário entre maré alta e maré
baixa. Quando a maré sobe, a base do caule fica afogada. Uma primeira adaptação
para essa condição é desenvolver raízes respiratórias ao lado de raízes
alimentadoras. As alimentadoras vão para o fundo da terra em busca de
nutrientes, como faz qualquer planta. As respiratórias saem do substrato para
buscar oxigênio, como se fossem tubos de respiração de mergulhadores. Essas
raízes são chamadas de pneumatóforos. Nelas existem células que respiram. Elas
são chamadas de lenticelas. Quando a maré enche e afoga os pneumatóforos, as
plantas aguentam firme até a maré baixar. Invenção genial das plantas para se
adaptarem a um meio carente de ar em determinados momentos.
No período colonial brasileiro, Ambrósio Fernandes Brandão (1555-1618)
escreveu o livro “Diálogos das Grandezas do Brasil”, só publicado em 1930, em
que dois personagens conversam sobre vários aspectos da colônia portuguesa. As
raízes do manguezal merecem breves palavras. Alviano pergunta: “Tendes-me
contado tantas maravilhas, que não tenho essa por estranha, posto que o é
assaz. Mas, pois haveis falado em mangues, dizei se é verdade que tem raízes de
cima para baixo; porque sou tão descuidado que ainda não olhei para isso.”
Brandonio responde: “Os mangues nascem nos alagados entre rios que estão
sujeitos aos fluxos e refluxos da maré, e os mais deles sobre a vasa, dos quais
há aí duas castas, um vermelho e outro branco: o vermelho é mais rijo, e dá-se
melhor na vasa, o outro branco é pau mole, e nasce um pouco mais desviado do
salgado e em terra mais fixa; e todos botam raízes de cima para baixo, mas em
mais quantidade o vermelho.”
Alviano
é o leigo de hoje, que olha e não vê o mangue. Brandonio é o cientista falando
do manguezal e de suas características. Esse diálogo perdura ainda hoje.
Estuário do rio Paraíba do Sul –
desenho de Percy Lau mostrando mangue vermelho, caranguejo-uçá e
martim-pescador
Tapete formado por raízes
respiratórias (pneumatóforos) de siribeira
Mas existe um outro problema a ser
resolvido: a salinidade. A primeira solução é não entrar em ambiente muito
salino. As plantas de mangue têm limites. Também não dá para ficar na água doce
porque existem plantas adaptadas a ela que concorrem com as plantas de mangue.
Ficar na água meio salgada e meio doce é o ambiente ideal para elas. Ali não é
qualquer planta concorrente que entra. Mesmo assim, é preciso lidar com a
salinidade. Algumas espécies barram a entrada de sal em seu organismo. Outras
diluem o sal no seu corpo. Outras ainda absorvem o sal e o expelem pelas
folhas. Todas as soluções são inteligentes, pois as plantas são dotadas de uma
inteligência não metafórica. Isto é, a natureza aprendeu inteligentemente a
lidar com o sal. Inteligência não significa consciência.
As plantas de mangue crescem,
florescem e se reproduzem como todas as outras. A semente represente a
perpetuidade de uma espécie vegetal. Ela tem dentro de si, por menor que seja,
uma outra planta igual à mãe. O problema enfrentado pelas mães-pais dos bebês
mangues é que a semente deve contar com a sorte. Se ela cair com a maré baixa,
pode se fixar na lama e germinar ali perto da família. Se ela cair na maré
cheia, seu destino será diferente. Mesmo antes de germinar, o destino da
semente, que os especialistas denominam de propágulo, era navegar até encontrar
um lugar apropriado para fincar pé, germinar e crescer.
As plantas de manguezal são grandes
navegadoras. Daí a palavra odisseia que estou usando para elas. Odisseu é o
nome grego de Ulisses, personagem central da Odisseia de Homero. Ele também foi
um grande navegador. Saindo do Sudeste Asiático, elas viajaram por todo o mundo
intertropical em direção a leste e oeste. Onde houvesse lugar apropriado para
se fixar, os propágulos o colonizavam. Não apenas em estuários, mas em praias
calmas e com salinidade reduzida, em ilhas com as mesmas condições. Mesmo as
praias violentas e muito salinas tanto quanto os costões rochosos não metem
medo nas plantas de mangue.
Mapa mostrando a distribuição
dos manguezais no mundo. Globalização da zona intertropical por um ecossistema
Exemplos próximos de nós passam
quase despercebidos. Aliás, o manguezal ainda passa por despercebido para o
leigo. Ele ainda continua sendo considerado um ambiente com lama suja é fétida
em que se desenvolve uma árvore cheia de raízes estranhas e caranguejos. As
raízes estranhas saem do caule do mangue vermelho. Na verdade, não são raízes,
mas ramificações do caule em cujas extremidades aparecem raízes. A lama exala
cheiro forte porque, nela, a matéria orgânica morta é decomposta em ambiente
pouco oxigenado. Mas o cheiro não indica sujeira. O ambiente do manguezal é
sadio e só se torna poluído por ação humana, como o despejo de esgoto e de
lixo, por exemplo.
Entre Rio das Ostras e a praia da
Foca, em Búzios, encontramos situações ilustrativas. No alto de um costão
rochoso em Rio das Ostras, encontrei uma pequena população de mangue branco.
Não existe ali uma fonte de água doce além das chuvas. As marés não chegam lá.
Então, como aquela pequena população de mangue branco sobrevive naquelas
condições? Supus que uma resseca lançou sementes no topo do costão. Uma delas
caiu numa cavidade na pedra com um pouco de terra. O propágulo germinou e
cresceu até onde foi possível. A árvore caiu por falta de espaço, mas continuou
se alimentando com o pouco de terra da cova e lançou muitas sementes em volta
que também cresceram até onde lhes foi possível.
População de mangue branco no
topo de costão rochoso em Rio das Ostras
Na Praia Rasa, em Búzios, cresceram
dois manguezais sem a presença de estuários, embora no caso do famoso Mangue de
Pedra exista uma fonte difusa de água doce que verte da colina que fica na sua
retaguarda. A praia é calma e com salinidade baixa. Na Praia da Foca, contudo,
o mar é violento e a salinidade é alta. Nela, num canto discreto, uma população
de siribeira, espécie mais resistente ao sal, cresceu e se reproduziu. Nos três
casos, não houve interferência humana.
Mangue de Pedra – Praia Rasa -
Búzios
Pequena população de siribeira
no primeiro plano – Praia da Foca - Búzios
O período áureo dos manguezais
situa-se entre a sua origem e a constituição da humanidade. Pode-se dizer que
os manguezais viveram com conforto por cerca de 60 milhões de anos. Nos seus
primórdios, as sociedades humanas relacionavam-se bem com os manguezais,
extraindo deles vegetais e animais para sua economia de subsistência. Essa
extração não perturbava nem degradava o ecossistema. Geralmente, os grupos
humanos que dependiam dele eram nômades ou seminômades e não deixaram registros
escritos sobre o ecossistema.
A situação começou a mudar com a
expansão da civilização ocidental pelo oceano Atlântico primeiro, a partir do
século XV. Depois, por todos os oceanos. No princípio, os europeus não
conheciam os manguezais nem tinham um nome para ele. A palavra mangue tem
origem malaia e começou a se generalizar no século XVI. O manguezal passou a
integrar as bordas da economia capitalista, que promoveu a maior globalização
humana. Nascida na Europa, hoje essa economia está presente na mais humilde
ilha habitada e mesmo nas ilhas não habitadas. A ilha Henderson, no Pacífico
Sul, não é habitada por nenhum humano, mas está cheia de lixo do tipo
ocidental.
Na primeira fase da globalização
ocidental, os mangues serviam para fornecer lenha, madeira para construção e
tanino para os curtumes. No fim do século XIX, o jornalista Pedro Soares
Caldeira escreveu uma série de artigos chamando a atenção dos manguezais como
produtores de alimento para crustáceos e peixes e alertando o governo imperial
sobre a destruição desse ecossistema na baía de Guanabara. Enquanto o imperador
Pedro II estava empenhado em restaurar a Mata Atlântica no morro da Tijuca, os
manguezais eram completamente ignorados. Esses artigos foram reunidos num
livrinho em 1884 e representam hoje um marco na defesa do mangue no Brasil.
No século XX, os estudos sobre
manguezais se tornaram mais frequente, mas a importância desse ecossistema só
ganhou mais projeção a partir da década de 1970. Sua proteção só se transformou
em políticas públicas com caráter conservacionista e preservacionista bem
recentemente. Mas no mundo todo e no Brasil, os mangues continuam sendo
destruídos para dar lugar à criação de camarão, como acontece na Ásia e no
Nordeste do Brasil, a pastos (algo pouco comum em substrato lamoso), como no
estuário do rio Paraíba do Sul, para ceder espaço à expansão urbana, como em
Macaé. O mangue ainda sofre com a mortal poluição causada pelo óleo, como
aconteceu na baía de Guanabara com o acidente da Petrobras em 2000.
Pasto no manguezal do rio
Paraíba do Sul
Cidade de Macaé encurralando o
manguezal na ilha Colônia Leocádia
Por mais que os cientistas alertem
sobre a importância dos manguezais como protetores da zona costeira contra a
erosão marinha e os ventos fortes, como fornecedores de alimento para a vida
fluvial e marinha, como rico ambiente de reprodução e proteção de animais de
animais marinhos e fluviais, e ainda como grandes reservatórios de gás
carbônico, o principal gás causador das mudanças climáticas, a economia ainda
não os descobriu em sua importância.
A Mata Atlântica se foi em grande
parte no período colonial, imperial e republicano. A Amazônia é a nova
fronteira de destruição. Contudo, vivemos um novo tempo. Desde os anos de 1970,
cientistas e ambientalistas advertem quanto aos perigos de desmatar a Amazônia.
Só agora, agentes econômicos e políticos nacionais e mundiais perceberam a
importância do grande bioma e começam a pressionar o governo brasileiro para
protege-lo. Não acredito muito na honestidade do mercado, mas acredito que ele
possa ajudar na proteção da maior floresta tropical do mundo
Quando esses agentes econômicos e
políticos abrirão os olhos para os manguezais, o único ecossistema que promoveu
a globalização do mundo na zona intertropical? Os manguezais estão presentes
entre os trópicos em lugares que lhe oferecem condições para se fixar e
prosperar. Às vezes, em lugares inusitados. As espécies variam, mas o
ecossistema é o mesmo. Vi um pequeno manguezal crescer na praia de Imbetiba, em
Macaé, num lançamento de esgoto. A água que saía do cano é doce e transporta
matéria orgânica. O lançamento funciona como um pequeno rio desembocando no
mar.
Pequena população de mangue
branco nascida em lançamento de esgoto na praia de Imbetiba - Macaé
Em Mar do Norte, deparei, no
encontro de um filete de água doce desembocando no mar, com um pé de mangue
vermelho carregado de sementes. Sei que os biólogos não considerarão um
exemplar e uma moita como um verdadeiro manguezal. Eles querem um bosque. Mas
sou historiador ambiental e estou atento para o oportunismo e a maleabilidade
das plantas de mangue.
Exemplar isolado de mangue
vermelho na praia de Mar do Norte
Dia 26 de julho é o Dia Mundial do
Manguezal. Temos dia para tudo na civilização ocidental: Dia das Mães, dos
Pais, dos Namorados, do Amigo, da Criança, do Idoso, dos Avós, do Abraço, do
Professor, do Comerciante, do Industriário, do Funcionário Público, do Índio,
da Amazônia, da Mata Atlântica, do Meio Ambiente etc., etc. Dia pra tudo e dia
pra nada. Quando nos lembramos de alguém e de algum ecossistema num só dia, e
não em todos, é porque esse alguém ou esse ecossistema não merece a devida
atenção. Escrevi esse artigo em homenagem ao Dia Mundial do Manguezal para
tentar convencer sobre a importância dos manguezais durante o ano todo.
Convencer não sei bem a quem. Os
manguezais do Norte Fluminense ficam para outra ocasião.
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