REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA (II)
NÃO QUE
EU TENHA SIDO UM MAU PROFESSOR DE HISTÓRIA. EU FAZIA O QUE TODOS QUERIAM:
ESCOLA, LIVROS, PLANOS DE CURSO PREVIAMENTE ESTABELECIDOS, PAIS DE ALUNOS E OS
PRÓPRIOS ALUNOS. ERA PRECISO MINISTRAR CONTEÚDOS COM VISTAS AO VESTIBULAR. SE O
PROFESSOR NÃO MINISTRASSE CONTEÚDOS, ATÉ MESMO OS ALUNOS QUE DETESTAVAM
HISTÓRIA (E ERAM QUASE TODOS) RECLAMAVAM. NÃO HAVIA AMBIENTE PARA UMA REFLEXÕES
SOBRE O PROCESSO HISTÓRICO. HOJE, SEM ESSES COMPROMISSOS, POSSO LIVREMENTE
PENSAR A RESPEITO DO QUE APRENDI E ENSINEI. POSTO MEU SEGUNDO ARTIGO DA SÉRIE
COM ILUSTRAÇÕES.
Reflexões sobre a história (II)
Arthur Soffiati
A divisão da longa jornada humana em pré-história e
história, tendo como marco divisório a escrita, além de simplista, não se
sustenta. A história da humanidade começou bem antes que seu principal ator, o
Homo sapiens, se constituísse como espécie que caminha sobre dois pés, tem as
mãos liberadas para tarefas de transformação, coluna vertebral que lhe permite
marcha ereta e um cérebro hipercomplexo cujo funcionamento produz emergências
como mente e consciência.
Se reunirmos todas as espécies formadoras da
família do Homo sapiens, que os cientistas denominam de família dos hominídeos,
seria preciso um salão de festa, pois ela ultrapassa vinte espécies. E tudo
indica que vai aumentar com novas descobertas. Até espécies fantasmas já foram
detectadas no genoma humano.
Se nossos primos mais próximos – os grandes e
pequenos macacos – já foram surpreendidos produzindo instrumentos para
complementar sua anatomia e se essa produção pode caracterizar cultura
material, podemos supor que a ferramenta é anterior e exterior aos hominídeos,
o que significaria concluir pela existência de cultura imaterial e material
entre esses primos mais próximo e em todos os hominídeos.
Mas não cheguemos a tanto. Os indícios de cultura
material estão nitidamente associados ao Homo habilis, que viveu em torno de
1.450 mil anos antes do presente. O primeiro grande invento foi a produção de
fogo pelo Homo erectus, entre um milhão e oitocentos mil anos passados. O fogo
não foi inventado, pois ele já existia na natureza. O que o Homo erectus
inventou foram as técnicas de produzir fogo e o seu emprego no endurecimento de
pontas de lança, na conquista de cavernas, no prolongamento do dia e no cozimento
da carne para alimentação. O fogo, enfim, foi a revolução mais democrática da
história humana, algo a ser explicado em outro momento.
O Homo erectus já devia viver em sociedade. Tanto o
fogo quanto instrumentos relacionados a ele indicam vida social. Até dez mil
anos antes do presente, todas as sociedades hominídeas viviam da coleta, da
pesca e da caça. Todas elas eram nômades, seminômades e até sedentárias,
dependendo da oferta de alimentos pela natureza. Como o material para a
fabricação de ferramentas mais durável usado pelos integrantes dessas
sociedades é a pedra, denominou-se essa fase da história humana (e não
pré-história) de paleolítico, ou seja, pedra antiga.
Mas essas sociedades usavam outros materiais para
confeccionar seus instrumentos, como madeira e osso, por exemplo, só que, pela
fragilidade, eles se decompuseram. Assim, restaram as ferramentas de pedra.
Depois do Homo erectus, veio o Homo neandertalensis, que revelou já contar com
a emergência da consciência da morte por ter construído sepulturas. Com o Homo
sapiens, por volta de 40-30 mil anos, o desenvolvimento de uma sofisticada
tecnologia de coleta, pesca e caça, liberou-lhe tempo talvez para a divisão
técnica do trabalho. Assim, foi possível uma certa especialização que permitiu
a realização de esculturas e de pinturas de um realismo notável. As pedreiras a
céu aberto ou as cavernas eram usadas como superfície para as pinturas. Tanto
elas quanto as esculturas tinham um caráter ritualístico. Portanto, a primeira
fase da história humana não é a pré-história, mas o paleolítico. Mesmo assim, o
nome não é dos mais felizes. Mas ficamos com ele por falta de algo melhor.
Por volta de 10 mil anos antes do presente, um
grande aquecimento natural da Terra, notadamente em seu hemisfério norte, representou
um desafio que foi respondido por algumas sociedades paleolíticas com a
domesticação de plantas e de animais selvagens. Nasceram, assim, a agricultura
e o pastoreio. Ambos permitiram a fixação estável dessas sociedades. Ou seja, a
sedentarização. Tal estabilidade abriu caminho para a invenção da cesta. Esta,
coberta de argila, originou a cerâmica, grande marco no processo histórico
humano. Acrescentem-se o polimento da pedra, o domínio de certos metais e a
invenção da roda. Pintura e escultura continuaram a ter caráter ritual, embora
sofrendo mudanças culturais.
As sociedades que se sedentarizam graças à
agricultura e ao pastoreio receberam o nome de neolíticas, ou seja, pedra nova.
O nome também não é dos melhores, porque houve uma diversificação de materiais
além da pedra e que sobreviveram à ação do tempo. Mesmo assim, neolítico é mais
apropriado que pré-história ou baixa pré-história. A história humana não é um
rio, com parte alta e baixa.
E as sociedades que não inventaram a agricultura e
o pastoreio? Continuaram com um modo paleolítico de vida, extinguiram-se ou
passaram a atacar as sociedades neolíticas. A partir de 10 mil anos antes do
presente, a história humana se bifurca em sociedades paleolíticas e neolíticas.
É bem verdade que o modo neolítico de vida exerceu forte atração sobre o modo
paleolítico. A partir de então, as sociedades paleolíticas começaram a declinar
por não conseguirem se adaptar às mudanças climáticas e por ataques das
neolíticas e civilizadas. Hoje, ainda existem remanescentes paleolíticos. Todos
eles, e são poucos, estão ameaçados de destruição num mundo globalizado. O
exemplo mais notório de paleolítico íntegro, em meu entendimento, é a sociedade
que habita a ilha de Sentinela Norte, no oceano Índico. É um exemplo tão íntegro
que pouco se conhece a seu respeito.
Antropólogos e arqueólogos questionam hoje a
existência de um neolítico abaixo da linha do equador, o que discutiremos no
próximo artigo.
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