OS INTELECTUAIS E O CORONAVÍRUS


Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 14 de junho de 2020
Os intelectuais e o coronavírus
Arthur Soffiati


Slavoj Žižek nasceu em 1949, na antiga Iugoslávia, e se tornou um filósofo marxista bastante conhecido na atualidade. Polêmico, ele se mete em todos os assuntos, da cultura pop à alta filosofia. Fala de cinema com naturalidade e analisa com desenvoltura a obra de Hegel. É comunista, mas não fundamentalista. Em seu mais recente livro (Pandemia: Covid-19 e a reinvenção do comunismo. São Paulo: Boitempo, 2020), ele se declara “ateu cristão confesso”. Pode parecer estranho, mas não é. Reconheço dois tipos de ateu: o anárquico, como Richard Dawkins, que concluiu pela inexistência de Deus pela biologia, e o filosófico. O marxismo é um dos avatares cristãos do ocidente, ao lado do liberalismo. Nada de estranho no diálogo cristianismo e marxismo.

Žižek não é um filósofo tradicional e formalista. Pelo contrário, está sempre pronto a discutir questões emergentes, como o atentado às Torres Gêmeas, em Nova Iorque, o politicamente correto e a covid-19. Opina sobre filmes que o agradam e o desagradam. Da minha parte, considero-o meio confuso e contraditório ao discutir questões atuais em seus livros. Vejo nele também o desejo de estar sempre na mídia como uma espécie de show man.
No livro mencionado, ele vê na pandemia de 2020 uma oportunidade para o nascimento de um comunismo reinventado. Quem crê religiosamente em alguma doutrina ou princípio tem facilidade de ver indícios fortes da volta de Jesus, do Demônio, do Comunismo, do Anarquismo ou do crescimento econômico. O entusiasmo acaba dificultando a análise das condições objetivas da realidade. Ele declara no livro: “Hegel escreveu que a única coisa que podemos aprender com a história é que não aprendemos nada com a história.” De fato, quando se olha esperançoso para o futuro na expectativa de vislumbrar algum sinal de boa nova, o passado não é tão importante. Contudo, para um historiador, pelo menos para um historiador como eu, o passado é como o lastro de um navio. Sem ele o navio aderna. Podemos trocar o lastro velho por um novo, mas essa operação leva décadas e até séculos.
Žižek examina pouco as origens da pandemia. Ele incorporou a questão ambiental em suas análises, o que representa um avanço para a maioria dos marxistas, que continuam no século XIX, alheios às novas questões. O autor escreve que o vírus não é “um inimigo tentando nos destruir; ele simplesmente se autorreproduz com automatismo cego (...) para compreender sua disseminação, é preciso levar em conta a cultura humana (hábitos alimentares), a economia e o comércio globais, a espessa rede de relações internacionais, os mecanismos ideológicos de medo e pânico. O desenvolvimento tecnológico nos torna mais independentes da natureza e, ao mesmo tempo, em outro patamar, mais dependentes dos caprichos da natureza.” (...) quando a natureza nos ataca com vírus, ela está, de certa forma, nos devolvendo nossa própria mensagem. Essa mensagem é: ‘O que vocês fizeram comigo, eu agora farei com vocês.’”
Não existe capricho da natureza. Tal afirmação antropomorfiza a natureza. Ela não é caprichosa como a mocinha de um romance do século XIX. E, estranhamente, ele anota: “Nossa mídia noticiou amplamente que um dos efeitos colaterais da epidemia do coronavírus foi uma enorme melhora na qualidade do ar na China central – e agora até mesmo no norte da Itália. Mas e se os padrões climáticos dessas regiões já estiverem acostumados ao ar poluído, de tal forma que um dos efeitos do ar mais limpo pode ser a produção de um padrão climático diferente e muito mais destrutivo nessas regiões (mais secas ou enchentes, por exemplo)?”. Trata-se de uma declaração impensada e sem embasamento científico. Pelo menos, ela está expressa na forma de dúvida.                                                                
Ingressando no mundo humano, o vírus progrediu mais rapidamente que o vírus da gripe espanhola, a pior pandemia que afetou a humanidade até o momento e que não mereceu a mínima atenção de Žižek. Mas ele associa bem a globalização (metrópoles, aglomerações humanas, desigualdades sociais e rapidez nos transportes) à pandemia.
Vem então a parte que mais o atrai: o futuro. O capitalismo neoliberal está em crise. Ele não poderá continuar como é depois da pandemia. Žižek repudia a centralização estatal, como a da China, e o neoliberalismo dos Estados Unidos. Por um lado, ele não vê qualquer sinal de abertura na China, mas vê, estranhamente, sinais de comunismo em países ocidentais para enfrentar a crise.  “Medidas que parecem ‘comunistas’ a muitos de nós hoje terão de ser consideradas em nível global: gerenciamento da produção e da distribuição para além das coordenadas do mercado. “Precisamos de solidariedade incondicional e de uma resposta globalmente coordenada, uma nova forma daquilo que certa vez se chamou de comunismo.”. Enfim, o que Žižek vê como sinais de um novo comunismo são medidas de emergência dos governantes para combater a pandemia. Ele está confundido estado de bem-estar social com o novo comunismo.
E Ernesto Araujo, ministro das relações exteriores do Brasil, no seu fundamentalismo retrógrado, usou o último livro de Žižek como indício de que a covid-19 é uma espécie de conspiração comunista mundial...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

SUGESTÕES DE FILMES PARA A QUARENTENA

CINEMA EM TEMPOS DO CÓLERA

RIOS E CÓRREGOS DO SUL CAPIXABA