DO ITABAPOANA AO PARAÍBA DO SUL
Do Itabapoana ao Paraíba do Sul
Arthur Soffiati
Se eu pudesse sair de casa para
testemunhar os fenômenos relacionados a cursos d’água na faixa costeira que se
estende do rio Itabapoana a Barra do Furado, sem dúvida que eu já a teria
percorrido com muita atenção. Da foz dos rios Itabapoana, em toda sua extensão
divisa entre os Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, até o Paraíba do
Sul, predominam dois terrenos: os tabuleiros com, pelo menos, 5 milhões de
anos, e uma restinga nova, formada em torno dos últimos 2.500 anos.
Essa extensa costa não é cortada
apenas pelos rios Itabapoana, Guaxindiba e Paraíba do Sul, como
superficialmente pode-se concluir. Entre os rios Itabapoana e Guaxindiba, ainda
aparecem as pegadas de córregos que devem ter sido mais pujantes ainda no
século XIX, quando a maior parte do território hoje correspondente ao município
de São Francisco de Itabapoana era coberto por pujantes florestas, embora elas
já estivessem sendo derrubadas e queimadas como se não fizessem falta.
Entre os rios Itabapoana e
Guaxindiba, sucediam-se os córregos Salgado, Doce, Guriri, Tatagiba, Buena,
Barrinha e Manguinhos, além de dois mais muito mutilados. O desmatamento, a
intensa mineração, o barramento desses córregos e a abertura de rodovias trouxeram
como consequência a sua incapacidade de manter suas barras abertas para o mar.
Território de São Francisco de
Itabapoana. Legenda: restinga (amarelo); tabuleiros (ocre); cursos d’água: 1-
rio Itabapoana, 2- lagoa Salgada, 3- lagoa Doce, 4- Guriri, 5- Tatagiba-Açu, 6-
Tatagiba-Mirim, 7- Buena, 8- Barrinha; 9- sem nome, 10- Manguinhos, 11-
Guaxindiba, 12- canal Engenheiro Antônio Resende, 13 a 17- córregos barrados
naturalmente pela restinga
Os terrenos de restinga costumam ser
porosos por se constituírem de sedimentos arenosos. Mesmo assim, chuvas intensas
encharcam o lençol freático, provocando o acúmulo de água na superfície. Os
alagamentos em áreas arenosas ocorrem, em São Francisco de Itabapoana, entre a
foz do rio Paraíba do Sul e a foz do rio Guaxindiba. Neste trecho costeiro, não
existem saídas para o mar. Quando chove muito, como aconteceu no verão deste
ano, as águas pluviais se acumulam nas praias de Sossego e Santa Clara, sendo
necessária a abertura mecânica de canais para que elas fluam para o mar.
Neste verão, o rio Itabapoana ganhou
muito volume de água, em grande parte acumulada na lagoa Feia do Itabapoana,
pouco conhecida ou confundida com a grande lagoa Feia descrita pela primeira
vez em 1632 no Roteiro dos Sete Capitães. Quase em sua foz, o estreitamento do
rio pela ponte que liga a RJ-196 a ES-060 levou as águas do rio a se alastrarem
pela restinga de Marobá, já no Espírito Santo.
Enchente no rio Itabapoana,
verão de 2020. Foto: Defesa Civil de São Francisco de Itabapoana
Agora, em maio de 2020, era de se
esperar que o rio tivesse retornado ao seu novo normal, que consiste em
situação bem semelhante à do rio Paraíba do Sul: baixa vazão de água doce,
forte ação do mar sobre a foz, com seu desvio para o sul, e dificuldade de
navegação de embarcações de médio calado. Contudo, não é o que está
acontecendo. A vazão reduziu-se como esperado, mas a entrada e saída de barcos
de médio calado ocorre normalmente numa foz hoje encurvada para o sul, algo que
deve se estabilizar.
Logo abaixo do rio Itabapoana,
corria outrora um córrego em cuja margem esquerda supõe-se que Pero de Gois
ergueu a Vila da Rainha, o mais antigo núcleo europeu na região e um dos mais
antigos do Brasil, entre 1539 e 1546. Dele restou apenas uma extensão do
povoado na última queda d’água do Itabapoana, hoje dentro dos domínios da
pequena central hidrelétrica Pedra do Garrafão. Essa extensão – um porto do
século XVI – mereceria o tombamento pelo IPHAN e sua abertura para o público. O
córrego na margem do qual teria se erguido a Vila da Rainha hoje é uma lagoa
alongada conhecida pelo nome de lagoa Salgada.
A atividade minerária barrou sua
foz, impedindo que a água acumulada consiga atingir o mar. O mesmo aconteceu
com o córrego que fluía pouco abaixo dele, hoje conhecido por lagoa Doce. Ambos
estão no âmbito da enseada do Retiro, área que merece ser transformada numa
Unidade de Conservação municipal. Contudo, a água acumulada dentro da lagoa
Doce encontra caminho para chegar até o mar.
Em seguida, corre um curso d´água
maior, de nome Guriri. Ele nasce pouco abaixo da zona serrana e corta todo o
território municipal. Embora muito adulterado, ele ainda alcança o mar,
despejando nele água da chuva acumulada no seu trecho final. Pequenas canoas
podem navegar nesse trecho, embora ele não tenha mais valor para a pesca.
Entre os rios Itabapoana e Paraíba
do Sul, avultava no passado o grande e imponente rio Tatagiba, conhecido como
córrego Baixa do Arroz em sua nascente. O Tatagiba desembocava no mar por uma
grande foz que a mineração de terras raras fechou. A água doce acumulada na sua
bacia verte hoje com grande força por uma vala que o próprio rio cavou com
ajuda de braços humanos. O volume ainda é considerável.
Em seguida, situa-se o córrego de
Buena, cujo trecho final é engrossado por dois afluentes. Já houve muita
polêmica por sua causa. Durante a estiagem, sua foz se fecha, mas pode se abrir
com água de chuva acumulada.
Em direção ao rio Guaxindiba,
encontra-se um filete de água que passa despercebido. Fica difícil reconhecer
nele um curso d’água, ainda que diminuto. Além do mais, ele foi cortado nas
imediações de sua foz, como se separasse a cabeça de uma cobra do seu corpo. No
entanto, fiquei surpreso por ele ter chegado ao mar durante as chuvas deste
verão a ainda mantendo sua antiga foz aberta até agora.
Já próximo ao rio Guaxindiba, corre
o pequeno e maltratado córrego de Manguinhos. Quando sua bacia enche, contudo,
sua força se volta para as obras feitas pela prefeitura. Ele já arrastou um
conjunto de grandes manilhas em sua foz durante a impetuosa enchente de
2008-2009. Em 2020, seu fluxo voltou a alcançar o mar num espetáculo magnífico.
Chega-se ao rio Guaxindiba, que
nasce na zona serrana no interior de Campos e corre para o mar, atravessando
tabuleiros e cortando a ponta da restinga setentrional da região. Obras de
engenharia hidráulica executadas nos anos de 1970 abriram o grande canal
Engenheiro Antonio Rezende, ligando a lagoa do Campelo ao mar, no ponto em que
o rio Guaxindiba desaguava. Então, este rio passou a ser afluente do grande
canal. Hoje, o volume maior de água continental provém do canal, mantendo a
barra aberta e permitindo que barcos de médio calado ainda possam ancorar em
seu interior.
Canal Engenheiro Antonio Rezende
– rio Guaxindiba, maio de 2020 – Foto: Carolina de Cassia
O que se pode concluir com relação a
todos os cursos d’água enumerados é que eles têm calhas pequenas para o grande
volume de água recebido pelas chuvas do verão de 2020. Essa água ficou
acumulada ao longo dos rios e córregos, continuando a descer lentamente. Nos
tabuleiros, há baixadas que se transformam em enormes reservatórios de água.
Eles voltaram a se encher neste ano. A enchente afetou acentuadamente o
município de São Francisco de Itabapoana, causando inundações e estragos
materiais. Na ocasião, escrevi um artigo sugerindo a utilização dos cursos
d’água aqui apontados. Eles funcionaram e continuam funcionando a despeito da
população e do poder público. Agora, a sugestão é outra: essa água que continua
fluindo para o mar em pleno maio deveria ser reservada no continente, pois São
Francisco de Itabapoana se destaca pela aridez. A umidade é fundamental para a
economia e para a fertilidade.
Por fim, o rio Paraíba do Sul, que foi
usado como divisa entre São João da Barra e São Francisco de Itabapoana quando
este se emancipou do primeiro. De todos os rios que a Capitania, Província e
Estado do Rio de Janeiro sucessivamente colocou total ou parcialmente em seus
limites, o Paraíba do Sul é o maior deles. No passado, era pujante e visto
pelos viajantes europeus como mais volumoso e belo que o rio Reno. Com o tempo,
as matas de sua bacia foram sendo suprimidas. O rio principal e seus afluentes
foram interrompidos por barragens. Finalmente, o golpe mais duro veio com a
transposição de 2/3 de suas águas para o pequenino Guandu. Há quem entenda que
essa transposição não afete o fenômeno de fechamento de seu braço principal
pela força do mar. Outros especialistas apontam exatamente a transposição como
o principal fator desse fechamento.
A bacia do Paraíba do Sul encheu
bastante esse ano. Houve rompimento de diques no afluente Muriaé e no próprio
Paraíba do Sul no seu trecho final em ambas as margens. O braço principal,
fechado pela primeira vez por força do mar, permaneceu vedado por seis meses. O
grande volume teve dificuldade de abri-lo novamente mas conseguiu. Em 24 de
maio último ela voltou a se fechar como eu previra. Se os outros rios
examinados acumularam muita água para calhas pequenas, o Paraíba do Sul, ao
contrário, tem grande calha para pouco volume de água. 

Principal braço do Paraíba do
Sul aberto em março de 2020. Foto: Defesa Civil de São João da Barra
Mesmo braço fechado em maio do
mesmo ano. Foto: Defesa Civil de São João da Barra
Lindo trabalho de extremo valor.
ResponderExcluirParabéns, Mestre!!
Me encontro aí dentro desse paraíso, observei o mapa e realmente meu córrego é o de Guriri
Obrigado. Sigo estudando
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