DO AÇU AO FURADO: A COSTA DE CAMPOS
Do Açu ao Furado: a costa de
Campos
Arthur Soffiati
Uma das mais antigas referências ao
cabo de São Tomé e à costa que, historicamente, viria a ser incluída no
município de Campos dos Goytacazes deve-se ao famoso navegador e cartógrafo
português Luís Teixeira em “Roteiro de todos os sinais na costa do Brasil” (Rio
de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1968) provavelmente de 1586. Ele
escreveu nesse documento sobre o cabo de São Tomé que ali “há uma restinga que
entra dentro no mar 3 ou 4 léguas e é todo banco de areia e dar-lhe-ei aquele
resguardo que me parecer que logo verei na serra de Santo André um pico muito
alto como um castelo e este é o melhor conhecimento que se tem. Há muito bom
mar para surgir, muito limpo de areias e assim mesmo fica da banda do nordeste
uma montanha muito grande e muito grossa com um pico muito agudo e delgado
todo.
A restinga dentro
do mar é um banco de areia resultante do processo de erosão do cabo pelas
fortes correntes marinhas. É estranho que Luís Teixeira não tenha reconhecido o
cabo pelo nome, pois ele está assinalado e nomeado na sua carta de 1586.
Cabo de São Tomé no mapa de Luís
Teixeira (1586) com o nome de Cabo Frio
Ultrapassado esse
perigoso banco de areia, que posteriormente teria um farol para alertar os
navegantes quanto ao perigo de um cabo que aparece no continente, mas tem uma
parte oculta no fundo do mar, Luís Teixeira observa que “terei aviso que me não
prolongarei da terra ao sul cerca de 3 ou 4 léguas que me pareça da terra em
torno de 12 léguas ao mar”. O estudioso de mapas e cartas navais Max Justo Guedes,
confirma cabalmente esta advertência do navegador escrevendo que “do cabo de
São Tomé até a ponta de Imbetiba, numa extensão de cerca de 50 milhas, a costa
é extremamente baixa e arenosa e tem a direção geral de WSW”.
Embora não
mencione a foz dos rios Paraíba do Sul e Iguaçu, que ficaram para trás quando
Luís Teixeira escreveu as linhas acima, ao afirmar que, depois do Cabo de São
Tomé, a costa é baixa e arenosa, parece que o navegador está dizendo
implicitamente que a costa acima do cabo de São Tomé era diferente, talvez por
ser cortada por desembocaduras de rios. Ao sul do cabo, Teixeira tem de se
afastar da costa para não encalhar.
Esse afastamento
não permitirá a ele notar algum recorte na costa, como possivelmente poderia
haver com a desembocadura das lagoas Paulista, Carapebus, Comprida e Cabiúnas,
que eram pequenos cursos d’água que desembocavam no mar pelo menos na estação
das chuvas. Teixeira estava distante da costa até chegar ao arquipélago de
Santana, defronte a foz do rio Macaé.
O trecho costeiro que viria a
integrar o município de Campos dos Goytacazes ainda não estava demarcado
fisicamente como hoje. Existia a foz do rio Iguaçu, que futuramente separaria
Campos de São João da Barra, mas ainda não havia a foz do canal do Furado, que foi
aberto em 1688 e receberia o nome de Barra do Furado. Posteriormente a barra do
Furado seria tomada como divisa entre Campos e Macaé. Nos anos de 1940, com a
abertura do grande canal da Flecha, que tomou a barra do Furado como foz, ele
passou a ser a divisa entre Campos e Macaé. Recentemente, com a criação do
município de Quissamã, desmembrado de Macaé, o canal passou a separar Campos de
Quissamã.
Luís Teixeira navegou ao largo dessa
costa. Ele a viu apenas de longe. Só com as três viagens dos Sete Capitães,
entre 1632 e 1634, a beleza dela pôde ser vista por terra. Só então chegaram as
primeiras informações da costa a partir do continente. O rio Iguaçu corria
então soberbo entre sua nascente na lagoa Feia e sua foz na atual localidade do
Açu. Seu curso era paralelo à costa e bastante próxima da praia formada por um
alto cordão arenoso que protegia o continente do avanço do mar.
Os limites da costa campista foram
definidos já no século XVII. Ao norte, a foz do rio Iguaçu e ao sul, a foz da
vala do Furado. Curioso que as barras do rio e da vala delimitam o trecho mais
estreito da costa, pois ao norte do rio a faixa de areia se alarga e forma a
maior restinga do atual estado do Rio de Janeiro. Ao sul da vala, a faixa
arenosa também se alarga na restinga de Jurubatiba. A faixa estreita ligando as
duas restingas tem 28 quilômetros de extensão.
Praia do Farol de São Tomé no
cordão arenoso que liga duas restingas
Quando a vala do Furado foi
aberta, em 1688, por José de Barcelos Machado, o rio Iguaçu sofreu o seu
primeiro baque. Agora, ele terá duas saídas para o mar. A original só
recuperava força quando a foz do Furado era fechada para o mar. Aos poucos, o
intrincado rio Iguaçu foi sendo mutilado até ser esquecido. No início do século
XX, Alberto Frederico de Morais Lamego e Mucio da Paixão discutiam se a foz do
Iguaçu era a foz do Paraíba do Sul ou de outro rio, com Mucio identificando-a
com a do Paraíba do Sul e Lamego concluindo que existia um rio esquecido e
outrora famoso conhecido com o nome de Iguaçu.
Desembocaduras dos rios Macaé e
Iguaçu, eis os limites das terras doadas aos Sete Capitães na forma de
sesmarias. Existem muitas informações sobre o trecho costeiro entre o rio Macaé
e Barra do Furado porque o caminho seguido por aqueles que partiam do Rio de
Janeiro em direção a Salvador entre os séculos XVII e XIX acompanhava a costa,
do Rio à praia do Farol, antes mesmo deste ser erguido. Da praia,
acompanhava-se o córrego do Cula por terra até Campos. Esse córrego não apenas
foi esquecido como sofreu muitas mutilações. Tantas que dele restaram trechos
insignificantes, sendo o mais visível o que se estende do trevo do Índio ao
canal Campos-Macaé. Ele foi tombado pelo Inepac, mas ninguém o conhece. A
importância dele reside no fato de ter sido o primeiro eixo da colonização
europeia no norte-noroeste fluminense. Ele serviu de rumo para uma estrada de
terra que se estendia da praia do Farol a Campos. Essa estrada se transformou
num eixo de povoamento. Em suas margens, ergueram-se a igreja de Santo Amaro, o
mosteiro de São Bento, o convento do Colégio jesuítico, várias igrejas,
engenhos de açúcar, lojas comerciais e casas residenciais. Mais tarde, usinas e
cerâmicas. Atualmente, é a rodovia Campos-Farol. O primeiro caminho da
colonização europeia está em franco declínio.
Planta de Manuel Martins do
Couto Reis (1785) assinalando o córrego do Cula em vermelho
Nos apontamentos de Luís
Teixeira, no século XVI, figuram também observações sobre a vegetação nativa: “À
orla do mar arvoredos de palmas e de outras maneiras de árvores”. Olhando do
mar, por sua caravela, para o continente, ele não apenas avistou, ao fundo, as
elevações da Serra do Mar, regionalmente conhecidas como Imbé, como também o monte
de Santo André em sua frente. Tudo indica tratar-se do morro do Itaoca, já
conhecido pelos navegantes como serra de São Tomé em alusão ao cabo de mesmo
nome. As palmas e outras árvores de que ele fala integram a vegetação de
restinga, com três faixas distintas pelo menos: junto ao mar até trezentos
metros para o interior, plantas herbáceas de pequeno porte; de 300 a 700
metros, plantas arbustivas; e daí para dentro, árvores. Provavelmente é a essas
árvores que ele se refere ao passar diante do cabo de São Tomé, onde a restinga
se estende por vários quilômetros a partir da costa.
Parque Estadual da Lagoa do Açu
assinalado em traços paralelos
Hoje, o cordão arenoso está no
mesmo lugar. Seu aplainamento permitiria a invasão da planície pelo mar.
Ninguém seria louco de abrir brechas nela. O rio Iguaçu, porém, foi todo
esquartejado, restando dele um trecho significativo entre a lagoa Feia e o
canal da Fecha e outro entre a rodovia Campos-Farol e a barra do Açu. Uma boa
amostra da vegetação nativa da restinga, como mangues, talvez campos salinos e
plantas de solo arenoso, está teoricamente protegida pelo Parque Estadual da
Lagoa do Açu. Enfatizo o teoricamente
porque as Unidades de Conservação não merecem muita atenção das autoridades no
Brasil. Entre o Farol de São Tomé e Xexé, há ainda uma expressiva faixa de
vegetação de restinga que deveria se incorporar ao Parque ou ser protegida pelo
poder público de Campos.
Vegetação de restinga entre
Farol de São Tomé e Xexé
O patrimônio cultural, por sua
vez, agoniza e desaparece melancolicamente, sendo substituído por construções
inexpressivas. Ainda há o que proteger, mas medidas nesse sentido não deverão
ser tomadas.
Mosteiro de São Bento
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