APOLOGIA DA DIFERENÇA
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 27 de abril de 2020
Apologia da diferença
Edgar Vianna de Andrade
À pergunta de um astrônomo sobre
como trataria o diferente, o xerife da cidadezinha esmagou com a bota uma
aranha do deserto onde ambos conversavam. Trata-se de uma cena de “A ameaça que
veio do espaço”, filme dirigido por Jack Arnold em 1953. É o terceiro filme
dirigido por ele. Nascido em Los Angeles em 1916, no meio da indústria
cinematográfica, Arnold se tornou um gênio do cinema B. É possível ser talentoso
no cinema A, B e “trash”.
A base do roteiro não é ninguém
menos que Ray Bradbury, fonte de inspiração para muitos cineastas,
principalmente para François Truffaut, que filmou “Fahrenheit 451”. Arnold ia
direto ao assunto. Numa casa em pleno deserto, um casal de namorados vê um fogo
cruzando os céus e se chocando com a Terra. Tudo leva a crer que se trata de um
meteoro. Mas o astrônomo entra na cratera enquanto sua namorada o aguarda. No
fundo, tem a impressão de ver um ser.
Logo chegam o xerife e a imprensa. O
astrônomo passa a ser ridicularizado por afirmar que o meteoro é uma nave
espacial. Aos poucos, seus passageiros se apossam dos corpos de moradores da
cidadezinha para fazerem reparos na nave espacial avariada. Até mesmo a namorada
do astrônomo tem seu corpo imitado pelos ETs.
Por fim, um encontro entre os
espaço nautas e o cientista esclarece que houve um problema na nave e que seus
tripulantes não queriam se mostrar aos terráqueos por saber que não estavam
preparados para lidar com o diferente. De fato, os moradores da cidade se
reúnem e invadem a mina em que a nave estava escondida. Tarde demais. Mesmo
usando dinamite, os terráqueos veem a nave partir e os humanos aprisionados
serem soltos.
Em 1954, Arnold dirige “O monstro da
Lagoa Negra”, filme que se tornou um clássico e chegou mesmo a ser elogiado por
Ingmar Bergman. O diferente agora é um ser anfíbio antropoide remanescente de
eras geológicas passadas que sobreviveu não se sabe como. Ou era hermafrodita
ou a fêmea não foi encontrada. Arnold não escapa dos clichês do cinema
estadunidense. Os cientistas são sempre norte-americanos e os trabalhadores são
locais. Dois polos são logo definidos: um membro da expedição formada para
encontrar o ‘monstro’ é bruto e caçador. O outro é um cientista que compreende
o diferente. Entre ambos, a bela mocinha cientista já com pendores feministas,
mas ainda dependente de homens e que facilmente grita quando se assusta.
O ser anfíbio sente-se atraído pela
moça. Depois de muitas peripécias, o cientista mau morre nas garras do
‘monstro’ e os que sobraram da expedição deixam-no em paz. Em 1955, Arnold
aproveitou o sucesso do filme e dirigiu “A revanche do monstro”, já seguindo o
modelo das franquias. Nessa onda, John Sherwood produziu “A criatura caminha
entre nós” (“The creature walks among us”), de 1956, formando uma trilogia. A
aura do anfíbio não estava encerrada. Guillermo del Toro deu continuidade ao
seu drama com “A forma da água”, de 2018, arrebatando quatro Óscares no ano
seguinte.
Em 1955, Arnold volta com aquela
aranha esmagada no deserto. Ele dirige “Tarântula”. Novamente numa cidade do
interior, um cientista preocupado com o crescimento populacional da Terra
trabalha na produção de superanimais para fornecer alimentos. Estamos, mais uma
vez na história do cinema, diante de um homem bom que acarreta o mal. Um amigo
dele morre com deformações. O médico da cidade não se convence de que a morte
se deu por acromegalia, doença gerada por disfunção glandular que aumenta as
extremidades do corpo e o deforma. Chega à cidade uma bela moça que vai
trabalhar como estagiária do cientista. Ninguém sabia que uma aranha cobaia
havia sido inoculada com o soro do crescimento e que fugira para o deserto.
Mais uma vez, o ambiente inóspito. Mais uma vez, o romance, agora entre a bela cientista
e o médico.
A aranha ganha proporções
gigantescas e começa a atacar o gado e as pessoas. Ela é a diferente nesse
filme. Mas agora não há piedade. Ela é uma grande ameaça para a cidade. É
preciso matá-la e, para tanto, a aeronáutica entra em cena com napalm. Em
filmes em que a natureza ou o desconhecido ameaçam a humanidade, o perigo quase
sempre fica restrito a uma pequena cidade.
Em 1957, Arnold se consagrou na
ficção científica com “O incrível homem que encolheu. Não há mais nenhuma
ameaça verdadeira ou suposta à humanidade. Mas há uma denúncia. Provavelmente,
a radioatividade representaria uma ameaça. Doze anos antes, duas bombas
atômicas tinham sido lançadas sobre o Japão pelos Estados Unidos e a corrida
militar da guerra fria acumulava artefatos nucleares. Por que uma nuvem
radioativa misteriosa não podia atingir uma pessoa e provocar o seu
encolhimento?
Foi o que aconteceu com um homem de
1,85 metros. Por mais que a medicina tenha sido acionada, ele começou a
encolher e se tornar o diferente da história escrita por Richard Matheson,
autor de “Eu sou a lenda”. Sua esposa e seu irmão acreditaram que ele foi
devorado pelo gato da casa. Mas ele caiu no porão e vive entre novelos,
agulhas, pregos, ratoeiras e uma aranha. Ela agora não cresceu como em
“Tarântula”. Foi o homem que diminuiu. Ele terá de lutar com ela e se conformar
com a sorte de sumir. Será um átomo ou uma partícula subatômica, tão pequena
como grandes são os astros.
Arnold ainda dirigiu faroestes e a
comédia “O rato que ruge”, com o iniciante Peter Sellers. Mas seu período áureo
foi a década de 1950, e seus filmes mais importantes foram os comentados aqui.
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