AMOR E CRUELDADE NA LITERATURA DE RUBEM FONSECA
Amor e crueldade na literatura
de Rubem Fonseca
Arthur Soffiati
Quando me convidavam a falar sobre
literatura e meio ambiente, eu analisava a obra de Rubem Fonseca, entre outras,
mas nunca escrevi sobre o tema quando ele era vivo. Agora, que ele morreu no
último 15 de abril, faço algo de que não gosto: escrever sobre um autor como se
fosse uma homenagem póstuma. Ou seja, valer-me de sua morte como motivação para
escrever sobre o que falei durante anos.
O primeiro livro de Rubem que
adquiri foi “Feliz Ano Novo” (Rio de Janeiro: Artenova, 1975), na edição que
foi retirada de circulação pelo regime militar. Na verdade, a primeira. Tenho
hoje uma raridade, portanto. Confesso que não consegui ler o livro, pois seus
contos retratam muita violência. Li críticas e assisti a palestras sobre a
literatura dele, considerada inovadora na ficção brasileira por seu realismo e
brutalismo.
O primeiro livro dele que li de
ponta a ponta foi “A grande arte”, também 1ª edição (Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1983). Trata-se de um romance em que o famoso detetive Mandrake é o
personagem central. Inteligente, charmoso, conquistador de mulheres (ele não
precisava usar seu charme, pois elas se ofereciam). Mandrake revela um traço
que os humanistas estritos classificariam de cruel: ele está empenhado em
decifrar crimes para os quais os policiais encontram dificuldades. Portanto,
ele está interessado em fazer justiça em favor de vidas humanas ceifadas por
criminosos geralmente sórdidos e maníacos.
Em “A grande arte”, ele desvenda o
assassinato de uma mulher e leva o delegado Licurgo ao apartamento onde se
encontrava o corpo. Lá, Mandrake revela seu amor pelas pequenas criaturas
animais. Sua preocupação não é tanto com a vítima, mas com um peixinho que está
morrendo de fome e de falta de ar num aquário em que todos os outros estão
mortos. Segue-se um diálogo entre ele e o delegado:
“Posso
pegar uma panela na cozinha?”, perguntei.
“Pra
que diabo você quer uma panela?”
“Pra
tirar os peixes mortos do aquário.”
“Não,
não pode mexer em nada.”
“Espera
aí, Licurgo, fui eu quem descobriu o crime.”
“E
daí? Só criou problemas para mim.”
“Vê
este peixe negro? Resistiu um longo tempo e talvez só aguente mais alguns
minutos. Quero tirar os peixes mortos e dar um pouco de comida para ele.”
“Os
peixes mortos ficam. Vou mandar examiná-los.”
“Eles
não foram assassinados.”
“Você
está começando a chatear.”
“Quero
apenas salvar o peixinho.”
“Licurgo
achou na cozinha o vidro com o rótulo Hipromin-Staple Flake Food for Tropical
Fish – e ele mesmo pulverizou a superfície da água do aquário com o pó
levemente granulado que estava dentro do vidro. O peixe comeu dando investidas
curtas e bocadas sôfregas.”
“Uma
mulher morta e nós preocupados com a merda de um peixinho. Ainda por cima peixe
dá azar.” Licurgo olhou a panela cheia de peixes mortos.
“Tudo
dá azar”, eu disse. “Vamos sair daqui, não aguento esse cheiro.”
No romance “Vastas emoções e
pensamentos imperfeitos”, 1ª reimpressão (São Paulo: Companhia das Letras, 1988),
um homem é preso num porão escuro para confessar onde escondera pedras
preciosas. Ele não entra em pânico. Ao contrário, lembra da sua infância,
quando brincava no porão da sua casa com ratos, aranhas, escorpiões e lacraias.
“Eu passava todo o tempo que podia dentro do porão, olhando os ratos, as
lacraias, as aranhas, os escorpiões. Considerava aqueles animais – sim, são
animais como nós, não são insetos – os meus únicos e verdadeiros amigos.”
Ele revela conhecimento sobre
esses animais. Na verdade, Rubem cria situações para exibir suas pesquisas,
pois ele mostra sempre uma obsessão em seus romances, seja por facas, por
óperas, por escritores etc. O prisioneiro explica que a aranha-caranguejeira é
uma andarilha errante que não tece teia. Sua picada é um pouco dolorosa, mas
não faz muito mal. Ele grita para uma lacraia a fim de assustá-la, pois não
queria feri-la. Ele sofreria muito se a matasse.
O homem aprisionado no porão sempre
brincou com escorpiões de maneira cautelosa, diferente da maneira como brincava
com ratos e aranhas. “Vi muitas fêmeas parirem bebês escorpiões vivos e andarem
pelo chão com as costas cheias deles (..) o escorpião é um solitário, o mais
misantrópico dos animais (...) só se aproxima do seu semelhante para foder ou
para lutar até a morte.” Escorpiões não se suicidam quando em situação de
perigo, ele explica desfazendo o mito.
Depois de cruzarem, a fêmea mata
o macho e suga suas entranhas, deixando apenas a casca, pensa ele. “...desde
criança eu sabia que os escorpiões me olhavam também principalmente quando eu
lhes falava no porão da minha casa: os escorpiões podem ter até doze – doze! –
olhos, e quem tem tantos olhos assim tem que ser muito perspicaz.”
No porão, “De tempos em tempos
eu me levantava e batia com os pés no chão; depois batia com a cadeira no chão,
tudo com cuidado para não ferir qualquer dos animais.”
Uma crônica de Carlos Drummond de
Andrade também revela essa curiosidade amorosa pelas pequenas criaturas. Olhando
para um minúsculo inseto, ele observa que também era observado e pergunta quem
examina quem.
Em “O cobrador”, 3ª edição (São
Paulo: Companhia das Letras, 1989), o conto “Encontro no Amazonas” ilustra bem
o que poderíamos classificar de crueldade pelo prisma do humanismo. No
princípio, tem-se a impressão de que um homem de aspecto marcante atravessa o
Brasil de sul a norte de forma muito camuflada e discreta, enquanto dois
policiais o perseguem. Ambos param em Belém colhendo informações sobre o homem.
Um deles, soube que o suspeito esteve no museu Emílio Goeldi examinando peixes.
Um perseguidor se desloca para Manaus para cercá-lo, pois supõe-se que ele
tenha subido o rio Amazonas embarcado. O outro fica em Belém igualmente
visitando o museu. Lá, ele comenta consigo mesmo: “Fui até a jaula dos animais.
Dentro de poucos anos não existiria mais nenhum, toda a fauna amazônica estava
sendo dizimada. Quando me viu, a onça começou a brincar; corria e rolava de
barriga para cima, como se fosse um gato. Outro animal muito bonito e elegante
era a suçuarana, uma espécie de leopardo; seu pelo lilás lavado brilhava na
claridade matutina. Os macacos, porém, pareciam animais tristes, infelizes e
maníacos. Havia um que escondia o rosto agarrado nas barras de ferro. Suas mãos
eram parecidas com as minhas. O rosto e o olhar do macaco tinham um ar de
desilusão e derrota, de quem perdeu a capacidade de resistir e sonhar.”
Não sabemos de quem se trata. O
autor não lhe dá nome. Talvez seja um policial sensível à natureza como o
detetive Mandrake. Depois de um breve envolvimento sexual com uma jovem
residente em Belém, o presumível policial vai atrás do suspeito numa embarcação
que se dirige a Manaus. Em todos os lugares em que para o navio repleto de
passageiros pobres, ele pergunta sobre o homem extraordinário em algum aspecto.
Talvez um naturalista. O possível policial nunca larga uma pasta. Mesmo se
envolvendo com uma mulher casada no navio.
Finalmente em Oriximiná, ele
obtém de um menino informação sobre o suspeito. O possível policial se dirige a
sua casa. Abre-se uma porta e aparece um homem com 2,30 metros de altura e
cabeça branca. Cumprimentam-se. O suposto policial tira uma pistola com
silenciador e mata o homem. Não era policial. Era um matador profissional frio
e implacável, mas que se preocupava com a destruição da Amazônia, com a
extinção da sua fauna e que se identificava com os macacos, primatas como os
humanos.
O mesmo livro tem ainda dois
contos em que a preocupação com a natureza aparece ao lado de taras e
violência: “Pierrô da caverna” e “Almoço na serra no domingo de carnaval”.
Posteriormente, consegui
adquirir a primeira edição de “Os prisioneiros”, seu livro de estreia (Rio de
Janeiro: GRD, 1963), de “A coleira do cão” (Rio de Janeiro: GDR, 1965), “O
homem de fevereiro ou março (Rio de Janeiro: Artenova, 1973) e “O caso Morel”
(Rio de Janeiro: Artenova, 1973). Como no passado anterior a 1970, Rubem
Fonseca começou modestamente publicando em pequenas editoras. Não como agora em
que autores obscuros começam lançando seus livros por editoras famosas. Nomes? Não
vou mencionar.
Comentários
Postar um comentário