A REPRESENTAÇÃO VISUAL DAS EPIDEMIAS
Folha da
Manhã, Campos dos Goytacazes, 10/22 de abril de 2020
A
representação visual das epidemias
Até
cerca de 10 mil anos antes do presente, a humanidade já havia conquistado todos
os continentes, vivendo em pequenos grupos sociais que se sustentavam com
vegetais e pequenos animais coletados, com a pesca e com a caça. Essas
sociedades não haviam ainda domesticado vegetais e animais. Portanto, era
necessário um constante deslocamento para conseguir alimentos. Os historiadores
classificaram essas sociedades de paleolíticas, palavra que significa “pedra
antiga”. Seus integrantes lascavam a pedra ou usavam lascas já encontradas na
natureza para usar no corte de alimentos, na fabricação de instrumentos e na
guerra. Não é uma designação adequada porque essas sociedades também usavam o
osso, a madeira e outros materiais para fabricar seus utensílios. Porém, como a
pedra perdurou por ser mais resistente, o nome “paleolítico” se consagrou. Em
face de seu grande nomadismo e de seu modo simples de vida, essas sociedades
acumulavam poucos resíduos, geralmente degradáveis, e não corriam tanto risco
de sofrer epidemias, embora a vida fosse muito perigosa.
O
aquecimento climático natural a partir de 11.700 anos passados derreteu grandes
geleiras, elevou o nível dos oceanos e lançou um desafio aos grupos humanos. A
maioria deles continuou com o modo de vida nômade. A minoria respondeu ao
desafio com a domesticação de plantas e animais. Nasceram, assim, a
agricultura, o pastoreio e a sedentarização. Originou-se o neolítico, com o
polimento da pedra, a cestaria, a cerâmica, a tecelagem, a metalurgia, a roda
etc. A concentração de pessoas e a produção de alimentos atraíram animais
transmissores de doenças, como insetos e ratos, por exemplo. A domesticação de
animais aumentou o contato deles com humanos, facilitando os contágios. Os
historiadores entendem que as epidemias surgiram com a sedentarização.
O
passo seguinte foi a especialização. Aos poucos, nas sociedades neolíticas, a
maioria das pessoas dedicou-se às atividades rurais, que garantiam o alimento,
enquanto uma minoria cuidava do governo, da religião, da defesa e do comércio.
Nasceram, assim, as primeiras civilizações, com a divisão territorial do
trabalho: campo e cidade. No campo, estavam os agricultores e pastores. Nas
cidades, estavam os governantes, sacerdotes, militares e comerciantes. Todas as
civilizações, e foram mais de vinte, conheceram epidemias resultantes da
sedentarização, da concentração de pessoas e do contato íntimo com animais.
Que
se saiba, ainda não existe um estudo geral das epidemias em todas as
civilizações. Nem mesmo na civilização helênica (Grécia e Roma), da qual o
mundo ocidental é herdeiro direto, esse conhecimento é detalhado. Ele deriva
mais de relatos de época que chegaram até nós do que por documentos
arqueológicos. Os estudos das grandes epidemias costumam restringir-se ao mundo
helênico e ocidental e ocidentalizado. Normalmente, esses raros estudos se
concentram nas maiores epidemias conhecidas, como a “peste de Atenas” (428
a.C.), a “peste de Siracusa” (396 a.C.), a “peste Antonina” (século II d.C.), a
“peste do século III d.C.”, a “peste Justiniana” (542 d.C.) e a famosa “Peste
Negra”, na Europa ocidental, no século XIV da era cristã.
Quem
sobreviveu às doenças contagiosas na Europa Ocidental adquiriu anticorpos, mas
europeus do século XV, também imunizados naturalmente, transportaram micróbios
para a América no final do século, com as grandes navegações. Transportaram
também os vetores das doenças, como mosquitos, moscas, ratos etc. No continente
americano, encontraram povos que desconheciam as doenças europeias. É o que o
historiador Alfred Crosby denominou epidemias em solo virgem. Essas epidemias
mataram muitos indígenas e ajudaram nas guerras de conquista.
Uma
epidemia causa sempre uma ruptura no cotidiano de uma sociedade. A norma dá
lugar à anomalia, como estamos verificando agora com a pandemia causada pela
Covid-19. Esse estado de exceção
constitui o que Victor Turner conceituou como drama social e que foi invocado
pelo antropólogo Carlos Valpassos, da Uff/Campos em artigo publicado na Folha.
O drama marca a sociedade e se transforma em tema a ser abordado por escritores
e artistas. Como as epidemias na literatura estão sendo abordadas com bastante
competência pelo professor Sérgio Arruda, também aqui mesmo na Folha,
proponho-me a verificar brevemente como elas foram vistas pelos desenhistas e
pintores.
Não se conhece registro iconográfico da
“Peste de Atenas” na época em que ocorreu. Ela foi recriada imaginariamente por
Michiel Sweerts, pintor e gravador flamengo do
período barroco, que se destacou com seus retratos, como foi comum entre os
pintores flamengos. Ele nasceu em Bruxelas, em 1618, e morreu em Goa, domínio
português na Índia. Sua vida foi itinerante, trabalhando em Roma, Amsterdã,
Pérsia e Índia. Dele é um quadro sobre os danos da peste em Atenas.
Peste
de Atenas (1652)- Michiel
Sweerts
O mesmo aconteceu com a Peste
Antonina. Só se têm notícias dela por registros escritos. Somente Jules-Élie
Delaunay, que nasceu em 1828, interessado em temas greco-romanos, retratou-a no
quadro “Praga em Roma”, exposto em 1869.
Praga
em Roma (1869) – Jules-Élie Delaunay
A Peste Negra proveio do centro da Ásia,
provavelmente trazida pelos mongóis, que, na época, ligavam oriente e ocidente
tanto quanto os muçulmanos. Tratou-se de uma epidemia de peste bubônica
transmitida por pulgas que picavam ratos e humanos. Os micróbios não eram
conhecidos. Acreditava-se que a doença era causada por miasmas e pela
respiração. Daí, os curandeiros usarem máscaras. Estima-se que a epidemia tenha
matado entre 75 e 200 milhões de pessoas. Tanto em sua época como
posteriormente, ela mereceu registros iconográficos, tal a sua devastação. Tais
registros, na época da epidemia, geralmente não contam com a assinatura do
autor. No século XIV, ainda não era comum o artista que imprimia sua marca
individual. Por mais que a obra fosse criada por um artista, ela expressava
mais a cultura reinante que a visão pessoal.
Representação
assustadora da morte durante a Peste Negra – autor desconhecido
Representação
das vítimas da Peste Negra – autor desconhecido
Enterro
de mortos pela Peste Negra – tapeçaria de Tournai de autoria desconhecida
Padre
abençoando vítimas da Peste Negra – autor desconhecido
A
Peste Negra marcou profundamente a sociedade europeia. Ainda nos séculos XV e
XVI, ela motivava pinturas. No século XV, um autor desconhecido pintou o
magnífico e apavorante quadro “O triunfo da morte”. Ele é atribuído a Guillaume
Spicre da Borgonha, artista pouco conhecido. Antonio Pisanello (1395-1455)
também pode ter sido o pintor dessa obra. Ele foi um dos mais representativos
pintores da primeira fase do renascimento italiano.
Triunfo da morte (cerca de 1446), autor
desconhecido podendo ser atribuído a Guillaume Spicre da Borgonha ou a Pisanello
No
século XVI, o espectro da Peste Negra ainda rondava os artistas. O genial Pieter
Bruegel, o Velho foi um deles. Vivendo entre c.
1525/1530-1569, ele foi o mais representativo pintor renascentista flamengo.
Sua visão social se revelou avançadíssima para a época, destilando aguda
crítica. A peste negra chegou aos seus pincéis em “O triunfo da morte”.
Triunfo da morte (1562) - Pieter
Bruegel, o Velho
Bernardino de Sahagún nasceu na
cidade do México em 1499, pouco tempo depois da chegada de Cristóvão Colombo.
Ele era novo quando o México foi conquistado por Cortez. Sahagún se tornou
frade franciscano. Conhecendo o espanhol e o náuatle, ele pôde salvar muitos
valores culturais dos povos nativos do México. Escreveu vários livros que
ajudaram a preservar a cultura nativa. A mais importante e conhecida é
“História geral das coisas da Nova Espanha”, toda ela ilustrada com desenhos ao
estilo asteca. Ela só foi publicada depois de sua morte. O desenho abaixo
mostra como se dava a infecção dos índios em contato com os europeus.
Varíola
vitimando indígenas mexicanos no século XVI – “Historia
general de las cosas de la Nueva España”, de Bernardino de Sahagún – 1793.
Embora a Peste Negra tenha marcado
época, outros surtos a sucederam. Não alcançaram a sua dimensão destruidora. As
posteriores tiveram âmbito local, regional e mesmo nacional e não foram tão letais.
No Brasil, as epidemias eclodiam a partir de endemias há muito conhecidas e que
foram combatidas por sanitaristas a partir do fim do século XIX. Angelo Agostini, nascido na Itália em 1843,
transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde morreu em 1910. Foi um dos maiores
desenhistas do segundo reinado. Além da cartunista e chargista, ele inaugurou a
história em quadrinhos no Brasil com o famoso personagem Nhô Quim. Até o
momento, é o segundo quadrinista mais antigo do mundo. Registrando a maioria
dos acontecimentos de sua época e seus personagens, não escapou do seu olhar as
epidemias de febre amarela que eclodiam a partir de endemias.
Cartum de Angelo Agostini. Carnaval ameaçado por
epidemia
Passaram-se cinco séculos depois da Peste Negra para que outra epidemia
se transformasse numa pandemia de âmbito mundial. Foi a Gripe Espanhola.
Acredita-se que seu epicentro tenha sido os Estados Unidos. Ela encontrou
ambiente favorável com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Foi escondida
pelos países envolvidos no conflito até que a Espanha, neutra na guerra, a
revelou. Daí seu nome. Ela atingiu o mundo todo em 1918 em três ondas. Os
cálculos mais otimistas acreditam que ela tenha matado 17 milhões de pessoas.
Os mais pessimistas, até 100 mil habitantes em todos os continentes.
Egon Schiele, pintor austríaco que viveu entre 1890
e 1918, filiou-se ao expressionismo, movimento fortemente alemão. A morte de
seu pai por sífilis o marcou muito. Sua companheira foi Valeria Neuzil, que se
tornou sua modelo. Mas casou-se com Edith Harms. Grávida de seis meses, ela foi
uma das vítimas da Gripe Espanhola. Schiele a retratou antes de morrer no
famoso quadro “A família”.
Egon Schiele – “A família”
Também o célebre pintor Edvard
Munch (1863-1944) registrou a pandemia depois de ter se curado da gripe, com
cabelos ralos, pálido e agasalhando-se com cobertores. Ele se autorretratou
durante a doença julgando que morreria, mas sobreviveu.
Edvard Munch - "Autorretrato
após a Gripe Espanhola" (1919)
A
pandemia causada pelo Covid-19 já está motivando cartuns pelo mundo todo. Ainda
é cedo para examinar os efeitos que a ela exercerá sobre a literatura e as ates
visuais. Por ora, fiquemos apenas com o cartum do português Vasco Gargalo. O
desenho de humor sobre o novo corona vírus merece um trabalho especial.
Cartum de Vasco
Gargalo
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