AQUELA CURVA ABERTA
Aquela curva
aberta
( https://www.praiafaroldesaothome.com.br/2020/03/aquela-curva-aberta.html?fbclid=IwAR0V7Bif79U0jwwO00tAAs0yqQHuj6rUSYh8VdbGmERYmcJI8JJPDA6Hr-0)
Arthur
Soffiati
Faz muitos anos que eu a vi pela primeira vez. Não
foi no terreno, mas numa imagem de satélite. Parecia o seio de uma mulher sem o
mamilo. Eu mesmo brincava com as pessoas ao expor a imagem, alertando que não
se tratava de uma mamografia. Depois, muitas vezes a vi em mapas gerais e
temáticos. A grande curva estava lá. O ponto mais proeminente é o cabo de São
Tomé, a ponta do seio sem bico. Na verdade, o bico foi encoberto pelo mar. Ele
sofreu desgaste e ficou meio dissolvido sob o mar. É o que se chama de parcel
em linguagem técnica. Ele está supostamente no meio da curva. O litoral ali faz
uma inflexão para oeste. A linha de costa orienta-se em direção ao sul e, de
repente, volta-se para oeste formando o cabo.
Imagem aérea
do cabo de São Tomé
Vários autores dizem que ele foi atingido pela
expedição de 1501, na qual estava Américo Vespúcio. A curva foi batizada com o
nome de São Tomé por ter sido atingida no dia dedicado a ele: 21 de dezembro. Como muitos santos
passaram a ser festejados nesse dia, tiraram São Tomé e o jogaram no dia 3 de
julho. Conta uma lenda que São Tomé andou por aqui. Ele foi condenado a
converter pessoas ao cristianismo em terras do oriente por duvidar da
ressurreição de Jesus. Nos primórdios do cristianismo, oriente era tudo o que
ficava distante, inclusive o continente americano, que ainda não era conhecido.
Quando
os europeus chegaram por aqui, confundiram a lenda indígena de Sumé com São
Tomé. Sim, ele chegou aqui não se sabe como. Pregou o cristianismo aos gentios.
Ninguém lhe deu atenção. Contam que, nos seus acessos de fúria, ele batia os
pés e seu cajado no chão com tal indignação e força que deixava pegadas e
marcas da bengala nas pedras. Por aqui, não havia pedras. Desgostoso, São Tomé
saiu do continente e andou sobre o mar exatamente pelo cabo que receberá seu
nome futuramente. Ele sumiu. Nunca mais foi visto. Os povos americanos
decepcionaram o santo ao não lhe darem ouvidos.
E
a curva continuou lá, majestosa. Não é propriamente um cabo ou uma ponta. Quem
a atravessa a pé não a nota. Apenas do alto ela é vista. Estudos recentes de
geologia mostram como se formou a planície da qual ela é a proeminência mais
destacada. Podemos tomar a foz do rio Paraíba do Sul e a barra do Furado, na
foz do canal Flecha, como seus limites. A curva aberta, aquela coisa certa
aparecerá em qualquer mapa ou imagem aérea. Se começarmos na foz do Paraíba e
terminarmos na lagoa de Carapebus, lá estará a curva.
Suponho
que essa proeminência tenha sido formada pela força de um braço do Paraíba do
Sul que começava na altura de onde se ergueria Campos alguns milênios mais
tarde e que foi registrada pelos antigos com o nome de Grande Canal ou Córrego
do Cula. Ainda hoje, examinando um mapa geológico, é possível ver os rastros
desse braço. Ele deve ter travado uma luta hercúlea com o mar e ter sido
derrotado. O braço do rio avançou no mar, mas acabou retido por ele. Assim,
surgiu uma extensão da costa que virou cabo. O Cula foi contido por um paredão
de areia e formou o majestoso banhado da Boa Vista, que é, ao mesmo tempo, o
engordamento do rio Iguaçu. No final, discretamente, o Cula alcançou o mar pela
barra do Canzoza, nome que todo mundo esqueceu.
Podemos
ainda traçar uma linha reta da foz do rio Itapemirim à foz do rio Macaé que lá
estará a curva. Impávida. Os mapas a mostram, mas os pés a escondem. Parodiando
Caetano Veloso, em vez do tempo, é melhor dizer que o espaço a esconde. O cabo
de São Tomé é inapreensível aos olhos que buscam enxergá-lo no local. Só mesmo
do alto ou do mar, ele pode ser percebido.
Ecorregião de São Tomé
No
século XVI, o grande navegador e cartógrafo Luís Teixeira singrou as costas da
América do Sul, do Rio Grande do Norte ao estreito de Magalhães. Ele deixou um
roteiro descrevendo os acidentes do litoral. Do cabo de São Tomé ao rio Macaé,
anotou ele, existe uma longa linha livre. Se ele assinalou a longa costa livre,
deve ter notado que, antes dela, existem desembocaduras de rios. Mas não há, no
roteiro, qualquer registro do rio Paraíba do Sul, de Gruçaí, Iquipari e Iguaçu.
A Barra Velha e a Barra do Furado ainda não existiam. Trata-se, por suposição,
de um registro implícito.
Por
várias vezes, percorri de jipe o espaço arenoso entre a margem direita do
Paraíba do Sul, começando na foz, até Barra do Furado. Por duas vezes, fiz o
mesmo caminho a pé. O cabo some. Não se percebe a grande curva aberta que ele
faz de norte para oeste ou vice-versa. Estamos na maior restinga do Rio de
Janeiro. O terreno é arenoso.
Busco
informações antigas sobre ele e não as encontro. Quem vive num lugar não se
apercebe dele. São os forâneos que nos informam a respeito. Mas não há as
informações que desejo porque, vindos do Sul ou do Norte, os viajantes tomavam
uma estrada de terra entre o Farol de São Tomé e Campos. A parte da restinga em
que fica o cabo de São Tomé está de fora do trajeto. Imagino o que Maximiliano
de Wied-Neuwied ou Auguste de Saint-Hilaire escreveriam sobre essa parte da
restinga. Que informações riquíssimas eles deixariam...
Mas
é a própria natureza que informa. A tese de Alberto Ribeiro Lamego está
superada pela de quatro geólogos que estudaram a formação da planície. Lamego
era um épico e amava a planície com todos os preconceitos reinantes no seu
tempo. Os quatro geólogos são frios. Eles mostram por datação do terreno que a
planície se formou nos últimos 5.100 anos antes do presente. De longe, em seus
laboratórios.
Não quero ser técnico nesse relato. Falo do meu
amor por essa curva aberta. Do Paraíba do Sul até Barra do Furado, existem seis
saídas para o mar, se contarmos com o grande rio. As outras cinco são as lagoas
de Gruçaí, de Iquipari, do rio Iguaçu, a Barra velha e a Barra do rio Furado,
hoje transformada no canal da Flecha. Pouca gente sabe disso. Basta fazer uma
pergunta de chofre para verificar o desconhecimento. Pode ser que um estudioso
mais atento responda à pergunta, mas demorará um pouco. Mesmo assim, duvido que
ele conheça a Barra Velha.
Braço
principal do delta do Paraíba do Sul
A saída do Paraíba do Sul é a mais larga, embora
sempre tenha sido problemática para a navegação por ser rasa. Manuel Martins do
Couto Reis e Antonio Muniz de Sousa deixaram registrada essa observação. Couto
Reis foi um observador apaixonado e um cartógrafo primoroso. Ele anotou num
antológico mapa todos os detalhes do sul da lagoa Feia. Aqueles canais
naturais, aquelas ilhas que eles formavam. Ele detalhou um mundo que nós
perdemos.
Esse cartógrafo fantástico escreveu sobre a vala do
Furado, aberta pelo capitão José de Barcelos Machado em 1688. Ele era herdeiro
indireto de um dos Sete Capitães. Imagino que ele tenha se perguntado por que
as águas da lagoa Feia, em tempos de cheia, vinham do Norte por uma intrincada
rede de canais que se curvavam para leste, acabavam se concentrando em alguns
canais, sendo o principal o rio Iguaçu, e alcançavam o mar pouco acima do cabo
de São Tomé. Couto Reis visitou o final do rio Iguaçu e verificou que ele não
chegava ao mar. O rio do Veiga, seu último afluente, também não. Ele disse que
as águas do Veiga vertiam para o norte e para o sul movidas pelos ventos.
Alguém precisa escrever um dia sobre os ventos da planície. Eles também são
lindos.
Mas voltemos à curva aberta, aquela coisa certa.
Descendo a linha costeira a partir do Paraíba do Sul, chegamos à lagoa de
Gruçaí. Pouco abaixo dela, corre a lagoa de Iquipari. Pelos mapas, podemos
verificar que elas se ligavam ao rio Água Preta, que começava no rio Paraíba do
Sul e corria para o Iguaçu. É comum haver afluentes, mas os defluentes são mais
raros. O rio Água Preta era ativado quando as águas do Paraíba do Sul
engrossavam com as chuvas. Elas extravasavam para o rio Iguaçu e acabavam no
mar. No meio do caminho, as águas das cheias entravam por dois braços do delta
que também alcançavam o mar: o de Gruçaí e o de Iquipari. Esses dois braços
saem do rio Água Preta, paralelamente à linha de costa, e correm boa parte no
sentido perpendicular a ela até se dirigirem para o norte por força da corrente
marinha predominante.
Lagoa de Gruçaí
Naveguei esses dois canais, hoje em forma de lagoas
alongadas que só abrem suas barras por força de braços ou de máquinas. A de
Gruçaí foi urbanizada e recebe muito esgoto. Embora seja mais longa que a de Iquipari,
não se pode ir muito longe navegando em suas águas. Um solitário pé de mangue
branco e um pequeno bosque dessa planta são indício de que ela tinha ligação
permanente ou temporária com o mar. As plantas de mangue são grandes
navegadoras. Elas devem ter saído do Paraíba do Sul em estado de semente e ter
entrado no antigo braço, hoje lagoa, quando ela se abria para o mar. Das quatro
espécies, apenas uma resiste ali com dificuldade.
A
de Iquipari está menos doente. O volume hídrico é maior que a de Gruçaí, embora
esta seja mais longa. A barra também é aberta por força de braços e máquinas. A
água das enchentes não tem mais força para romper a língua arenosa. O indício
mais claro de ligação da lagoa com o mar são as plantas de manguezal. Já
encontrei em seu interior exemplares de mangue branco, vermelho e siribeira. Há
muito tempo, não a navego, mas parece que só o mangue branco sobrevive em águas
rasas e na areia molhada.
Caminho para o sul e me deparo com o espúrio canal
aberto para entrada e saída de navios. É um estaleiro que nunca deveria macular
a beleza do seio arenoso. Nunca entrei lá.
Tenho medo de chorar. Apenas pergunto se o mangue penetrou nesse largo,
comprido e fundo canal. Antes do grande porto do Açu, eu transitava livremente
pela praia. Agora, tenho de contornar a aberração da empresa para chegar à
barra da lagoa do Açu, que foi o belo rio Iguaçu antes da abertura da Barra do
Furado. Por duas vezes, naveguei esse rio até o banhado da Boa Vista. Além de
maravilhado, fico impressionado com a beleza dessa agora lagoa alongada. Prova
de que foi um rio. Até perto do banhado, as margens são ornadas com plantas de
mangue de quatro espécies: branco, vermelho, siribeira e de botão. Não escondo
minha emoção ao descobrir que, no arquipélago de Galápagos, essas espécies
estão presentes. Senti Galápagos perto da minha casa.
Lagoa do Açu
Continuo
minha viagem real e imaginária. Quando não posso caminhar, imagino. Sempre ao
sul, agora dobrando a oeste, passo pela Barra Velha. De um lado o mar. Do outro
o Lagamar. O único vestígio que encontro da ligação da lagoa com o mar é uma
fímbria de água salgada que passa sob a espessa duna e entra na lagoa. Uma rara
informação dá conta de que era preciso romper essa duna com força braçal ou com
máquinas para que água excedente da lagoa vertesse para o mar.
Lagoa do Lagamar
Chego
ao final da minha excursão na Barra do Furado, ligação da água doce continental
com o mar. Ela não existia até 1688, quando o capitão José de Barcelos Machado
a abriu. Esgotada a água doce acumulada no continente pelas chuvas, o mar logo
a fechava. Foi assim durante quase quatro séculos com os jesuítas, governantes,
ruralistas e pescadores.
A
barra foi fixada, ou quase, quando o Departamento Nacional de Obras e Saneamento
abriu o canal da Flecha e substituiu a antiga vala do Furado. A foz do canal da
Flecha foi prolongada dentro do mar com dois espigões de pedra. As correntes
marinhas passaram a acumular areia no espigão direito e a erodir a praia a
partir do espigão esquerdo.
Mas
já escrevi muito sobre isso tudo. Não vem muito ao caso para mim por não haver
mistério ocultando o que o capitão e o DNOS pretenderam fazer. O mistério
existe no manguezal da margem esquerda do canal e do trecho do rio Iguaçu entre
a lagoa Feia e a comporta do Furadinho. Talvez não me reste vida suficiente
para desvendar o mistério do mangue da capelinha de São Miguel porque o mangue
da margem direita do canal eu vi nascer.
Barra do Furado
Mas
bem dentro aqui, como cantou Caetano Veloso sobre Santo Amaro, sua cidade
natal, nunca me esqueci. Nunca esquecerei aquela curva aberta, aquela coisa
certa, aquele amor que trago em mim por ti. Vão passando os anos e eu não te
perdi. Meu trabalho é te traduzir. Aquela curva aberta, aquele seio feminino
sem mamilo formado de areia. Mas não sei se conseguirei fazer a tradução.
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